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Revista TriploV
de
Artes, Religiões e Ciências |
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DORA GAGO..... |
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Horácio Quiroga: palavras de amor loucura e morte… |
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A Literatura Uruguaia é
praticamente desconhecida em Portugal. No entanto, ultimamente, algumas
editoras têm dado a conhecer algumas obras e autores, como é o caso de
Juan Carlos Onetti e de Horácio Quiroga.
É precisamente sobre a obra deste autor que incide o presente texto.
Primeiramente, antes de abordarmos, em traços muito gerais uma das suas
obras, importa delinear, em breves pinceladas, alguns aspectos da sua
vida, transpostos, posteriormente para a sua escrita, ou nela
reflectidos, através do filtro da imaginação, às vezes como sucede com
os espelhos que deformam as imagens. |
As marcas da tragédia |
Horácio Quiroga nasceu em Salto, Uruguai, a 31 de Dezembro de 1878. O
seu espírito inquieto impeliu-o para a capital, Montevideu, a 21 de
Março de 1900. Posteriormente, embarca para Paris, via Génova, onde
permanece dois meses. Regressa à capital uruguaia, onde vive as
experiências modernistas, juntamente com outros poetas de espírito
boémio. Publicou em 1901 aquela que foi considerada a primeira obra
modernista do Uruguay: Los arrecifes de Coral, onde o verso e a prosa se
mesclam, num clima alucinatório, cujo primordial objectivo era
escandalizar.
Estas aventuras literárias terminam abruptamente quando Quiroga,
acidentalmente, assassina o seu amigo Federico Ferrando, em 1902.
Mais tarde, radica-se em Buenos Aires e compra uma propriedade em
Misiones, junto à selva. É nesse espaço marcado pelo percurso do Rio
Paraná, pela bravura da meseta e da selva, numa incessante procura de si
próprio, que produzirá a parte mais significativa da sua obra,
convertendo-se num grande contista, que ultrapassou largamente as
fronteiras da América do Sul.
Na Argentina colaborou nas principais publicações periódicas: La Nación
e Caras y Caretas. O seu primeiro livro de contos, intitulado El Crimen
del Outro (1904) revela notória influência de Edgar Allan Poe. Seguem-se
Los Perseguidos (1905); Historia de un amor turbio (1908); Cuentos de
Amor Locura e Muerte (1917); Cuentos de la selva (1918); Los desterrados
(1926); Pasado Amor (1928); Suelo natal (1931); Mas allá (1935), entre
outros.
Na verdade, a tragédia foi uma constante na vida deste autor, que se
reflectirá, por vezes, nas situações absurdas, fantásticas e cruéis que
povoam os seus contos. Senão, vejamos: muito jovem, perdeu o pai,
afeiçoando-se estreitamente ao padrasto que se suicidou, após ter ficado
paralítico na sequência de uma hemorragia cerebral; a sua primeira
esposa, Ana Maria Cires, incapaz de se adaptar à vivência na selva,
suicidou-se em 1915, após uma violenta discussão com o escritor,
deixando-o com a responsabilidade de educar os seus dois filhos. Em
1927, voltou a casar com Maria Elena Bravo, de quem terá mais uma filha.
Por fim, Horácio Quiroga põe termo à vida, num hospital de Buenos Aires,
a 19 de Fevereiro de 1937, onde se encontrava internado, devido a um
cancro. No entanto, a sua tragédia lançará os tentáculos rumo ao futuro,
visto que o mesmo destino terão, mais tarde, os seus três filhos. |
O homo faber: a loucura e a paixão
universal da palavra |
Quiroga nunca se reduziu à condição de mero espectador da vida e foram
múltiplos os seus interesses: a Química, a fotografia, o cinema, a
construção civil e a carpintaria (ele próprio construiu a sua casa em
Misiones) foram alguns deles.
Aliás, afirmou um dia, na sua crónica “Un recuerdo” (1929), a propósito
de uma crítica acutilante de Alberto Zum Felde, aludindo à autêntica
pobreza das suas personagens, que se assumem como reflexo da sua vida:
“no respiran, por lo general, vida opulenta, y muchos de ellos, los de
ambiente desértico, no han conocido otra cosa que la lucha enérgica
contra los elementos de la pobreza”. Neste contexto, acrescenta: “…mis
manos han conocido tareas más duras e ingratas que la de sostener la
pluma, y no he pasado los años al vaivén de una hamaca”.
Neste âmbito, segundo
Noé Jitrik (1967), o escritor dominava bem a técnica de “fazer coisas”,
sendo um apreciador do lado manual da vida, reflectindo-se tal facto no
seu modo de entender a realidade. No entanto, as suas ideias
revelaram-se muitas vezes impraticáveis, tendo o seu gosto pela “acção”
confluído para a penetração no mundo real, assumindo-se como forma de se
desvendar a si próprio.
Por seu turno, seguiu
a escola modernista fundada por Ruben Dário, tendo sido um obsessivo
leitor de Edgar Allan Poe, R. Kipling, Guy de Maupassant e de
Baudelaire. A importância destes autores na sua obra transparece na
primeira frase do “Decálogo del perfecto cuentista”, dedicado aos
jovens escritores, onde afirma: “Cree en un maestro – Põe. Maupassant.
Kipling. Chejov – como en Dios mismo.” (2000: 171).
Destes modelos
literários parecem ter sido herdados alguns dos aspectos que povoam a
obra de Quiroga: de Maupassant colheu algumas histórias, temas e
aspectos da estrutura das narrativas; de Kipling, certos motivos e temas
literários, como é o caso da selva e dos animais; de Baudelaire,
determinadas imagens e um certo teor decadentista; de Poe, a inscrição
do fantástico nas narrativas.
Nesta esteira, atraíram o autor uruguaio os temas que abarcavam aspectos
estranhos da Natureza, fantásticos e por vezes aterradores e geradores
de sofrimento no ser humano, aliados, por vezes, à paixão e à loucura.
Neste contexto, a sua obra mais emblemática é Contos de amor, loucura e
morte, publicada, pela primeira vez em 1916, que abordaremos
sucintamente.
Esta colectânea é composta por quinze contos, dos quais emergem
poderosas imagens acerca da complexa relação entre a vida e a morte,
assim como da fragilidade das relações humanas e da existência.
Nela, podemos destacar o conto “insolação” como ponto alto da arte
“quiroguiana” de narrar. Esta narrativa parte da premissa de que os cães
podem ver a morte, quando ela procura a sua próxima vítima. O espaço da
acção é Misiones, no noroeste argentino, mais especificamente, uma
quinta, alcandorada naquela terra dura e hostil. As personagens centrais
são Mister Jones e os seus fox terrier (Old, Milk, Dick e Prince). Os
cães encontram-se personificados e, através da focalização interna,
penetramos nos seus sentimentos e receios. Então, o mais jovem, Old,
numa manhã, crê sentir a presença do dono. Os outros, apreensivos e
experientes, avisam-no de que se trata antes de uma representação da
morte, pouco tempo antes de surgir em busca de uma vida para ceifar.
Aterrorizados e nervosos, os cachorros ladram insistentemente a fim de
evitar a morte do dono. Pouco depois, perto do meio-dia, mister Jones
chega, caminhando sob o sol escaldante e implacável, sem se preocupar
com a ingestão de água, nem em repousar à sombra para evitar a
insolação. O desespero e a sensação de incomunicabilidade dos animais
são descritos, de forma minuciosa e realista: de um lado vêem o
verdadeiro mister Jones aproximar-se, enquanto que, no sentido contrário
surge cada vez mais próximo também, o outro, transportando em si a
morte. No momento em que as trajectórias se fundem, o homem cai
fulminado, ficando os cães votados ao desespero e ao abandono.
Esta linha trágica, por vezes eivada de contornos fantásticos e mesclada
de loucura, repete-se igualmente em “A galinha degolada”, que relata a
vida infeliz de um casal cujos quatro filhos são sucessivamente
afectados pela meningite, que os converte em atrasados mentais.
Finalmente, nasce uma menina, Bertita, que parece quebrar a maldição. No
entanto, os irmãos acabam por degolá-la como se fosse uma galinha.
Por seu turno, em “O almofadão de plumas”, encontramos o jovem casal
Alicia e Jordán. Inexplicavelmente, ela principia a ficar anémica,
falecendo em seguida. Só depois se descobre que a sua morte foi
provocada por um grotesco e raro animal, alojado na sua almofada, que
lhe sugou, noite após noite todo o sangue.
Por outro lado, a tirania da natureza e o seu poder desumanizador
habitam a narrativa “À deriva”, onde assistimos à saga de Paulino, que
luta incansavelmente contra a própria morte inevitável, após ter sido
mordido por uma víbora.
Nesta esteira, “Os mensú” recria a vida dos “operários-escravos”
Cayetano e Esteban, que se aventuram, perseguidos pela doença, a loucura
e a morte, para uma nova vida, tentando escapar ao destino de miséria e
opressão.
Em suma, transpondo através da palavra, a essência da sua vida trágica,
Quiroga descreveu, com arte e humanismo, as vertentes mais dramáticas e
aterradoras da existência humana, abordando, corajosamente, temas
considerados tabu na sociedade da época. Proporcionou-nos, deste modo,
algumas narrativas, que, ultrapassando fronteiras, têm sido justamente
consideradas, como das mais brilhantes e transcendentais da Literatura
Hispano-Americana do século XX. |
Bibliografia: |
Garet, Leonardo. 1994. Encuentros com Quiroga, Montevideo, Acad.
Uruguaya de Letras/ Editores Associados.
Gonzalez, Waldo. ““El selvagen” Horácio Quiroga”.
http://www.somosjovenes.cu/index/semana152/quiroga.htmLópez, acedido
em 2010/02/04.
Jitrik, Noé. 1967. Horácio Quiroga, una obra de experiencia y riesgo,
Montevideo, Arca.
Quiroga, Horácio. 2000. 15 Cuentos e un decálogo (Selección,
prólogo y notas: Leonardo Garet), Montevideo, Ediciones del Pizarrón.
______________. 2003. Contos de amor, loucura e morte (trad. Ana
Santos), Lisboa, Ed. Cavalo de Ferro.
Zum Felde, Alberto. 1959. Índice crítico de la
Literatura Hispanoamericana,
México,
Editorial Guaranía, (Tomo II: La narrativa). |
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Dora
Maria Nunes Gago nasceu em S. Brás de Alportel a 20 de Junho de 1972.
É
licenciada em Ensino de Português e Francês pela Universidade de Évora,
mestre em Estudos Literários Comparados e doutorada em Línguas e
Literaturas Românicas pela Universidade Nova de Lisboa.
Foi
Leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai) no ano lectivo
2001/2002 e é professora na Escola EB 2,3/S Dr. Isidoro de Sousa em
Viana do Alentejo.
Publicou Planície de Memória (1997), Sete Histórias de Gatos
(em co-autoria com Arlinda Mártires – 1ª ed. 2004, 2ª ed. 2005); A
Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007);
Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de
doutoramento) -FCT / Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 - e tem artigos,
ensaios, poemas e contos dispersos por antologias, livros, revistas e
jornais portugueses.
Além
disso, tem apresentado diversas comunicações em Colóquios
Internacionais, encontrando-se a desenvolver, actualmente, mediante uma
bolsa da FCT, o projecto de investigação pós-doutoramento «Uma
cartografia do olhar: visões e ecos de Espanha e do Brasil na Literatura
Portuguesa do século XX (1927-1999), orientado pela Prof. Doutora Otília
Pires Martins do Departamento de Línguas e Culturas da
Universidade de Aveiro. |
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