Nascido em Ossela, a 24 de Maio de 1898, Ferreira de Castro, viveu muito
jovem, com apenas 12 anos e sozinho a experiência da emigração para o
Brasil. Parecem ter sido diversos os motivos que o impeliram a tal
aventura: a curiosidade despertada por aquele mundo longínquo e distante
de que lhe falavam os livros, o desejo de se afirmar perante uma
rapariga mais velha, por quem se apaixonara e, claro, uma situação
económica precária, já que o seu pai falecera muito cedo e ele era o
mais velho de quatro irmãos. Aliás, nesta esteira, convém referir que,
do ponto de vista histórico, a sua partida coincidiu com o início de uma
forte vaga de emigração para o Brasil, que culminou em 1912. Segundo
Bernard Eméry, em 1911, 59 661 portugueses saíram do país, e mais de 80%
rumou ao Brasil (1993: 25). Aliás, este país mantém-se como forte
destino de emigração até ao início dos anos sessenta, sendo depois,
maioritariamente, preferidos os países da Europa.
Essa
experiência vivida entre 1911 e 1919 marcou o crescimento e
amadurecimento do jovem Ferreira de Castro. A sua passagem para a vida
adulta, nas condições mais adversas do “exílio”, será transposta para
dois romances, vários anos depois: Emigrantes (1928) e A Selva
(1930).
Nesta
sequência, Emigrantes (1928), a obra na qual nos centraremos,
transfigura a dura vivência da emigração, encarnada em Manuel da Bouça,
agricultor de 41 anos, analfabeto, que decide emigrar para o Brasil,
devido à pobreza, com o objectivo de juntar dinheiro para adquirir
alguns terrenos e dar à filha um bom dote. Impeliu-o o mesmo sonho, que
durante tanto tempo alimentou a alma de muitos camponeses do interior de
Portugal, a busca de riqueza, de uma vida melhor, que parecia encerrada
numa palavra mágica: Brasil. Tal como é referido:
“Era um sonho denso, uma ambição profunda que cavava nas almas, desde a
infância à velhice. O oiro do Brasil fazia parte da tradição e tinha o
prestígio de uma lenda entre os espíritos rudes e simples. […] Viam-no
erguer-se refulgente, ofuscante em moedas do tamanho do sol, ao
fundir-se na linha do horizonte, precisamente para os lados onde devia
ficar o país maravilhoso”.
(Castro 1980: 32).
Constatamos, deste modo, o peso que assume a visão do Brasil como “Terra
Prometida”, enraizada na tradição histórica que marcou a exportação do
ouro e de outras riquezas, após os Descobrimentos, para Portugal. Nesta
medida, a ambição pelas riquezas do Brasil “vinha já dos bisavós, de
mais longe ainda; coisa que se herdava e legava, arrastando-se pela vida
fora como um peso inquietante.” (Castro 1980: 32-33). Assim, face a essa
visão do país de emigração investido de uma aura maravilhosa, mítica, o
país nativo assumia-se como um espaço de trabalho árduo e inglório, de
pobreza e miséria. No entanto, associava-se à visão do Eldorado o
receio dos perigos que seria necessário enfrentar para o atingir.
Com
efeito, após a árdua tarefa burocrática para tratar da documentação
necessária, a viagem de vários dias, em péssimas condições, que o autor
experimentou na pele, tal como as suas personagens, assumia-se como um
verdadeiro “Cabo das Tormentas” que era necessário enfrentar. Neste
caso, Manuel da Bouça, embora personagem individualizada, acaba por se
assumir como símbolo dos emigrantes portugueses que partiam devido à
pobreza, para assegurar a sua subsistência e a da família, na terceira
classe de navios cheios de gente, para uma longa viagem, em terríveis
condições.
Por
conseguinte, nas condições desumanas da viagem, a multidão heterogénea,
agoniada, metaforizada na palavra “rebanho”, seguia alentada pelo sonho
de fugir à miséria da terra de origem, escravos, no fundo, da ambição,
da ilusão do “Eldorado”: “E todos com o mesmo sonho doirado, com o mesmo
sonho a corroer-lhes as entranhas, a enroscar-se-lhes nos mais
arreigados sentimentos.” […] (Castro 1980:92).
A
chegada à terra estrangeira é marcada pela curiosidade e pela ansiedade,
perante o novo mundo que surge. Todavia, após o desembarque, as
formalidades, a burocracia e a quarentena a que estão obrigados os
membros do “rebanho” (como são múltiplas vezes referidos), inicia-se a
“saga” de Manuel da Boiça para encontrar um emprego remunerado por um
salário condigno. Neste contexto, esta personagem recria a desilusão
sentida pelo jovem Ferreira de Castro para encontrar o emprego desejado.
Manuel começou a sentir os seus sonhos a desmoronarem-se, ou melhor, a
serem adiadas as ambições que trouxera, quando apenas conseguiu trabalho
num cafezal na Fazenda de Santa Efigénia, perto de Ribeirão Preto, onde
a remuneração era má e as condições de trabalho muito duras.
Acentuava-se a ideia de injustiça social, pois o proprietário esbanjava
dinheiro com as mais belas mulheres do Rio e de Paris, enquanto os
trabalhadores eram profundamente explorados, entregues quase a um
trabalho escravo. Assim, os senhores das terras desfrutavam de absoluta
autoridade sobre os seus trabalhadores como acontecia com o coronel
Borba e o feitor Capristano, representantes do poder despótico sobre os
mais fracos, que tinham como única hipótese a resignação.
Na
relação com o “outro”, Manuel da Boiça, devido à sua pouca instrução e
ao facto de não saber ler, revela por vezes problemas uma certa
incomunicabilidade. Para além das saudades, a personagem é invadida pelo
remorso, o sentimento de culpa, porque o baixo salário não lhe permite
enviar dinheiro à família. Arrepende-se pois do destino escolhido.
Na
segunda parte do romance, Manuel, terminado o trabalho, parte para S.
Paulo, alimentando novas esperanças. Assim, ao acompanharmos o
protagonista, nesta experiência urbana, constatamos que o futuro que lhe
é oferecido continua a ser mesquinho e o salário apenas lhe assegura a
subsistência. Posteriormente, ele sabe do falecimento de Amélia, sua
esposa, e da perda dos terrenos que hipotecara. A obsessão de regressar
à terra natal esmorece, mas não se apaga.
Por
fim, conseguiu pagar a viagem de regresso com o anel roubado a um
cadáver com que se deparara durante os conflitos revolucionários em que
participou na cidade de S. Paulo.
No
entanto, não é só ele que volta tão pobre como partiu, com os sonhos
desfeitos, visto que é acompanhado, de regresso, no navio “Andes” por
uma nova multidão ainda mais miserável do que a que fizera a viagem
anterior. Neste caso, a turba desumanizada sob a metáfora do rebanho,
mostra-se agora inteiramente desprovida de vida, passando a ser apenas
“carne”: “O “Andes” transpunha a barra com o seu carregamento de carne
humana, exausta, quase morta, que a América devolvia à Europa [….]”
(Castro 1980: 255).
Porém, o
regresso ao país natal não lhe traz a alegria imaginada. Pesa-lhe o
fracasso, a vergonha, o receio que os seus conterrâneos descubram a sua
situação económica, a antevisão das humilhações. O Eldorado que
procurara não havia passado de um mero sonho.
Assim, o protagonista manteve na terra a ilusão de que a sorte lhe havia
sorrido, embora nem sequer pudesse comprar a sepultura da esposa.
Contudo, decidiu partir para Lisboa, pois concluiu que mudara, a sua
nova identidade redesenhara-se, redefinira-se no seio da realidade
distante, no contacto com a cultura e o povo longínquos, na dureza da
vida que experimentara. Por isso, sente-se desintegrado, inadaptado na
sua aldeia, cuja visão lhe acentua a desilusão, não lhe acendendo no
espírito a alegria que havia imaginado, pois “Haviam-se tornado
irreconciliáveis o homem que se adaptara a outra atmosfera e aquelas
jeiras verdes que não encontravam amor no seu coração de repatriado.”
(Castro 1980: 288).
Em suma,
constatamos que, em Emigrantes, o sonho do Eldorado é
desmitificado, de forma bastante realista, através da trajectória
empreendida por Manuel da Bouça. Aliás, neste ponto, convém recordarmos
que o autor também não encontrou, em Terras de Vera Cruz, a fortuna
económica, mas um leque de vivências que constituíram o húmus da sua
posterior actividade literária. Não obstante, apesar de todos as
dificuldades e desilusões, o Brasil acaba por ser delineado como um
espaço de encontro, de construção de conhecimento e de reconstrução da
identidade pessoal, apesar do naufrágio de todas as ilusões. |