Fez no fim do ano
transacto 40 anos que o Poeta faleceu. Recordado foi-o por alguns, os
que sem dúvida amam a sua poesia luminosa e perturbadora na sua quase
ática simplicidade tão cheia de uma vivíssima interpelação ao mundo, às
coisas, aos pequenos fragmentos de uma existência cifrada em amarguras e
ocasionais alegrias de alguém que, tal como seu Pai Francisco Bugalho,
não viveu tudo quanto quis ou quanto merecia.
Mas, no geral do
que se convencionou chamar mundo das letras, não houve – porque
não podia haver num areópago de escada-abaixo como é o que nos rodeia –
conveniente celebração. O que é compreensível, pois os Poetas também
vêem medida a sua grandeza, frequentemente, menos pelo ruído que pelo
silêncio e a sua melhor honra está precisamente nisso. O mesmo se fez,
em diferentes lugares, com Bruno Schulz, com Hans Carossa, com Nuno
Guimarães, uma vez que as mundanidades literatas se dão mal e ainda bem
com os que só têm de seu o alto talento tão alheio a notoriedades de
baixo calibre festejadas pela pedantice literata de determinados
milieus societários.
***
Dizia o célebre
inquisidor-mor de Richelieu, com um cinismo não isento de senso de
humor, “Dai-me uma frase qualquer e conseguirei que ela ponha um
baraço ao pescoço do seu autor”. E embora se trate aqui de poesia e
de um poeta, talvez faça sentido suspender a respiração por uns
segundos.
Porque, com efeito, a
poesia é um perigoso ofício. E se não pelas partes de fora, pelo menos
pelas partes de dentro.
Será verdade que os
poetas são sobreviventes? Talvez sejam - sobreviventes do tal lugar
onde se acoita a verdadeira vida a que aludia, entre outros, o
sobrevivente de Charleville (Rimbaud). A poesia será também, assim, uma
certa arte das retiradas, a forma mais pessoal de combater a
adversidade. Quem diz pessoal diz eficaz. Eficaz, na verdade,
porque nisto de coisas de dentro temos de nos haver com presenças
muito mais perigosas que os habituais fantasmas do quotidiano. Daí que,
por vezes, como (não) queria Cristovam Pavia, só possa haver “saída
pelo fundo”. Pelo fundo, pelo meio, por cima, em suma e afinal: pelo
lugar onde, no encalço de Flamel, “os touros encantados que deitam
fumo e fogo pelas narinas” encontram finalmente a brancura da
verdade perseguida.
De Cristovam sei
muito pouco. Quer dizer, talvez saiba alguma coisa ou relativamente
muito – porque vou a ele inteiramente pelo coração. Como fascinado
leitor, primeiro, de uns raros poemas inseridos numa pequena antologia
algo precária e, depois, dum livro muito pundonorosamente feito, com os
seus poemas completos - publicados, esparsos e inéditos – que li
inteirinho num pedaço de tarde de verão, sentado sob uma das nogueiras
citadinas em frente do edifício barroco do antigo Hospital da
Misericórdia portalegrense.
Cristovam falava
(fala) de pequenas coisas, o que é indício de que o fazia de grandes
coisas: da morte do seu cão, da luz difusa batendo na parede da casa da
velha quinta alentejana dos ancestros, da recordação que sua mãe teria
na noite do seu hipotético e afinal sucedido funeral. Coisas assim leves
para quem julga que o poeta é uma espécie de artilharia pesada.
E porque o tom em que
o fazia é dos mais belos (e estou a lembrar-me da emoção em
Rilke, em Hesse, mas também em Marie-Noel), há-de encontrar sempre quem
através dele possa olhar as tardes de negrume e, simultaneamente, de
inteira claridade onde se vão reflectindo ora um rosto, ora um ombro,
ora uma mão escapando ao nevoeiro... |