Um padre antigo de barrete em cruz,
denso de preto, vastidão de sarja,
sentou-se ao pé de mim austeramente
e às pregas pombalinas da batina.
Foi de manhã, o dia era de sol.
Impante, de amarelo, o carro eléctrico,
em liberdade, galaró pimpão,
sorvia nos carris relâmpagos domésticos
que só de isqueiro de trazer no bolso.
Havia humor até nos solavancos
das curvas mais brejeiras entre as casas
que tinham penduradas às janelas
roupas de cor e fraldas das crianças.
Ardinas nas paragens acenavam
e assobiavam para algumas moças,
os lábios das pessoas tinham carne,
as meias das mulheres o olhar dos homens.
Porém o quadro de faiança azul
que nas vidraças se quebrava todo
fremente diluía-se e ficavam
os bancos encantados cá por dentro.
Trazia o padre uma bengala fina
envernizada que parecia um esquife
onde lançava a mão de velha morta.
Tamanho o frio se expandia à volta,
tal a presença universal e fixa,
tão separada, tão silenciosa,
que era um fantasma a sugestão do padre.
Alucinada e ao mesmo tempo calma,
como se alguém nos arcos de uma abóbada
gritasse a dor do gozo ou dum punhal,
tu ressurgiste assim no abandono
do nosso amor de lágrimas e assombro.
O eléctrico parou.
E o padre antigo de barrete em cruz,
bengala fina em sua mão de espectro,
somos nós dois por dentro na minha alma
e tu, nessa manhã,
como se num prato de farinha branca
de súbito caísse à luz do sol
uma andorinha morta.
Carlos Garcia de Castro
in
“ Terceiro verso do Tempo”
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