Carlos Garcia de Castro
“Eléctrico chamado desejo”

Um padre antigo de barrete em cruz,

denso de preto, vastidão de sarja,

sentou-se ao pé de mim austeramente

e às pregas pombalinas da batina.

 

Foi de manhã, o dia era de sol.

 

Impante, de amarelo, o carro eléctrico,

em liberdade, galaró pimpão,

sorvia nos carris relâmpagos domésticos

que só de isqueiro de trazer no bolso.

Havia humor até nos solavancos

das curvas mais brejeiras entre as casas

que tinham penduradas às janelas

roupas de cor e fraldas das crianças.

Ardinas nas paragens acenavam

e assobiavam para algumas moças,

os lábios das pessoas tinham carne,

as meias das mulheres o olhar dos homens.

 

Porém o quadro de faiança azul

que nas vidraças se quebrava todo

fremente diluía-se e ficavam

os bancos encantados cá por dentro.

 

Trazia o padre uma bengala fina

envernizada que parecia um esquife

onde lançava a mão de velha morta.

 

Tamanho o frio se expandia à volta,

tal a presença universal e fixa,

tão separada, tão silenciosa,

que era um fantasma a sugestão do padre.

Alucinada e ao mesmo tempo calma,

como se alguém nos arcos de uma abóbada

gritasse a dor do gozo ou dum punhal,

tu ressurgiste assim no abandono

do nosso amor de lágrimas e assombro.

 

O eléctrico parou.

 

E o padre antigo de barrete em cruz,

bengala fina em sua mão de espectro,

 

somos nós dois por dentro na minha alma

e tu, nessa manhã,

como se num prato de farinha branca

de súbito caísse à luz do sol

 

uma andorinha morta.

 

 

Carlos Garcia de Castro

in “ Terceiro verso do Tempo”

 
 

CARLOS GARCIA DE CASTRO nasceu em Portalegre, em 1934. Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas, foi professor dos Liceus, de onde, na área das Ciências da Educação, ingressou no quadro da Escola do Magistério Primário de que foi director de 1976 a 1989. Transitou para o quadro da Escola Superior de Educação como director do Centro de Recursos e Animação Pedagógica. Leccionou cursos de especialização; aposentou-se dessa Escola na categoria de professor adjunto.  Foi  sócio-fundador  da CERCIPORTALEGRE (Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas). Estatuiu o Ensino Pré-Escolar oficial em Portalegre.  

Publicou Cio (1955); Terceiro Verso do Tempo (1963); Portus Alacer (1987); Os Lagóias e os Estrangeiros (1992); Rato do Campo (1998) e, recentemente, a antologia  Fora de Portas na Editorial Escrituras, de São Paulo (Brasil).

Colaborou em várias revistas literárias e culturais, de que se destacam Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian; Sol XXI, da Associação com o mesmo nome;  e outras da sua região como Ibn Maruán e o suplemento cultural Fanal. Participou nos cadernos Alfa, do grupo de universitários Amicitia. Nos Açores, produziu e apresentou o programa «Pensamento e Poesia» no Rádio Clube de Angra do Heroísmo (1959/60), e tem colaborado na revista Atlântida, do Instituto Açoriano de Cultura. Antologias: representado em Poesia/70, org. de Egito Gonçalves e Manuel Alberto Valente (Editorial Inova, Porto, 1971); Poetas Alentejanos do Século XX, org. de Francisco Dias da Costa, 1984; Cancioneiro/80, do Jornal de Letras, Porto, 1990-91; Poetas e Escritores da Serra de S. Mamede, org. de Ruy Ventura, edição Amores Perfeitos, Vila Nova de Famalicão, 2002.