O corredor
parece interminável, como o corredor de uma imensa biblioteca fantasma,
onde as estantes são celas empoeiradas e os livros são pessoas cujas
histórias foram apagadas pelas circunstâncias inevitáveis da imposição.
No início do
corredor, o carcereiro. Na sua ficha de trabalho consta:
cor branca -
palidez opcional
peso estável
na magreza - por parte de mãe
calvície
acentuada - por parte de pai
estatura
mediana - por parte de ambos
olhos fundos
- por parte da insônia fiel que o acompanha desde a infância
uniforme
preto - 40
sapato preto
- 42
as luvas
escuras de couro sintético seguram os pulsos algemados do rapaz.
Na sua ficha
de prisão consta:
cor: branca
cabelos:
muitos e ainda castanhos
estatura:
alta - por parte de pai e mãe
olhos: azuis
- anil
sexo:
masculino - até segunda ordem
uniforme:
cinza chumbo
boca: grande
que exclama
- Eu juro
que não estava sonhando, isso é um engano!
- Rapaz,
mantenha os olhos abertos e a boca fechada.
- Me solta,
eu sou inocente!
- Rapaz,
deixe-me explicar (com a voz serena que nunca muda de tom) no castelo
das ilusões, cercado por felicidades floridas, cortado por rios de
redenção 24h - purifique aqui a sua alma - todo mundo é inocente... mas
nesse lugar a coisa é diferente, aqui o mau cheiro da culpa aumenta na
mesma medida que o desespero, enquanto as horas são minutadas na cabeça,
enquanto as mãos trêmulas rabiscam os dias nas paredes da memória, até
que não existam mais paredes, nem memória, nem força que sustente o
corpo que vai sumindo dentro desse uniforme, olhe para mim, garoto!
- Eu não
quero, eu não...
Enquanto uma
das mãos segura os pulsos a outra vira o rosto do garoto para si.
- Você tem
olhos bonitos, menino (olhos nos olhos do detento)
você tem
lábios bonitos, menino (dedos nos lábios do detento)
e é por isso
que eu vou te avisar para segurar o grito, grite somente quando sentir
que esse som emitido para dentro está corroendo as suas vísceras, porque
esse corredor não é o começo do fim, como todos pensam.
O começo do
fim é o berro, eles escutam, rapaz. Você sabe quem são eles? (sussurra
no ouvido do garoto) são cardeais bem alimentados, com ouvidos atentos
grudados atrás da porta, esperando ansiosamente pelos pedidos de
socorro... e aí, eles cruzam essa passarela com a postura dos anjos, mas
por baixo dos hábitos fervem cães sedentos. Te levam para dentro do
santuário, onde se inicia o ritual orgiástico da fé, tiram suas roupas
para melhor exorcizarem seus desejos, salivam com as bocas abertas entre
uma profecia e uma chupada até que você caia de joelhos e o brilho dos
seus belos olhos escorra pelo chão formando um mar de lágrimas azuis, no
qual eles banham seus corpos suados depois do trabalho.
O carcereiro
tira as algemas, abre a cela, empurra o rapaz para dentro e passa a
chave no cadeado para trancá-lo.
- Sabe,
garoto... Proudhon dizia que a propriedade é um roubo, aqui a
propriedade (ele aponta para o rapaz) é uma dádiva muito esperada.
Com essas
palavras, ele desvia os olhos do menino e faz o mesmo caminho de volta,
rastejando como soldado no front. |