Poemas vários

 

MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Notas de Luís de Barreiros Tavares


Poemas vários

Apresentam-se nesta série alguns poemas de teor reflexivo e variado. No sentido em que o tempo, a escrita, os movimentos do corpo, o movimento do pensamento, são abordados de modo mais abstracto ou especulativo, digamos assim. Onde, também, um certo anonimato, o silêncio, o instante, o som, o espaço, o grito e o riso pairam no pensamento numa certa atmosfera de interrogação metafísica e filosófica, sem abdicar da força do poema como pensamento primordial, próprio do poeta.


Nota do Triplov
Ver a Revista Triplov . série gótica . verão 2020 – tomo dedicado a Manoel Tavares Rodrigues-Leal


I

Não chamo

a madrugada

e a palidez

nascida carne

 

invento-as

com a poesia esmagada

pela febre

do meu grito

nas ruas

de silêncio obrigatório

 

Inédito – Lx. 30/3/66 – dactilografado numa folha de papel A4


II

Rir-me até morrer no rosto marítimo da tarde,

até romper os ritmos traídos em ausentes vozes.

Rir-me do soalho reticente do sol no olhar,

da cama onde principio a madrugada, da comida que não como.

Rir-me como lisa sinalização de líricas ruas,

movendo-me como verme, nasalmente insone.

Rir-me de circulares risos, da cirrose dos sorrisos.

 

Rir-me até, atento, resvalar para o maple do riso exemplar,

até levantar voo     do veludo vermelho    do dia,

até tripular o opulento avião de ávida e árida pele

 

Inédito – 8-10-69 – caderno Ensaio de Ausência
No manuscrito há outra data que não aparenta ser de revisão: 17-10-75.

Provavelmente subentendendo algum acontecimento ou momento marcante, como por vezes sucede.


III

 

Suspensa teia do tempo
se tece no interior do pensamento
e se se pensa o curso do tempo
(sua luta latente) mais se ateia
o fogo do pensamento
e se consome o som do tempo

 

Inédito – Lx. 20-7-71 – caderno A Composição da Presença


IV

Ora esta escrita (errada? errante)

na página (sub)jaz; ora crepita na cripta no corpo

que no corpo da escrita se perfaz.

como decifrar-te além a ferida do desejo o brando

branco fogo de água? como (quando?)

amar-te a morte na carne submerso

que na noite da escrita se inicia ou cessa?

 

Inédito – Lx. 30-1-72 – caderno A Composição da Presença


V

digamos centro. insciente.

se me. sob o sol. concentro.

que deus me persegue. e consente.

 

Inédito – Lx. 11-6-75 – caderno Voz Equívoca (As flores eloquentes)


VI

Que metamorfoses (ouses)

sobre a aglomeração de areias.

Que longínqua praia

se reconstrói. Se prata.

Sob o cais que múrmuro rio

se reflecte. Sob a luz ática e antiga.

 

Inédito – Lx. 22-2-75 – caderno Voz Equívoca (As flores eloquentes)


VII

Sonhem-se os ângulos imprevistos,

rasos, da casa,

ou a língua interdita ou a dança da boca baça.

 

Inédito – Lx. 8-10-75 – caderno Ensaio de Ausência


VIII

Sponte sua, meu alter ego

ergue-se e é re ou res.

A fortioiri, me penso em aquela fotografia,

memoriae labor.

Ámen, amor e desamor,

e as coisas que perecem, a pedido de quem e de que dia…?

 

Inédito – Lx. 24-6-76 – caderno Apresentação de Paula


IX

Que sintaxe de solidão,

se o instante é mera ilusão

de sentir sentimento estrangeiro.

E então urdo reino em retina.

O que é sábio, é abdicar, e da fina

areia saborear a sabedoria: e assim herdeiro

de outra idade, nesta, se aguça, ora se afina,

idade à mesa de, amor morto que sofro, que sou em sensação.

 

Inédito – Lx. 2-9-76 – caderno Luz de Dezembro


X

Meu rosto remonta à infância dos espelhos,
e que antigo rosto o revela?

 

Lx. 30-12-76 – caderno Elogio do Rigor


XI

 

Quando dobrares uma esquina,
numa clandestina cidade ocidental,
ora aos deuses e aceita o convite e caminha.

 

Inédito – Lx. 7-10-76 – caderno De Profundis et de Clamoris


XII

 

Navega ternura o puro instante.
Distante é o mármore do gesto
inscrito na mesa.

 

Lx. 26-8-77


XIII

 

Espelho do tempo insone,

o sou. Como um revólver. Tempo

cúmplice, interdito. Oh eu espero

a tarde antiga    a singela mão

a escrever, irradiante, o poema zero.

 

Lx. 16-10-78 – caderno Luz de Dezembro (publicado recentemente em “Pessoa Plural”)


XIV

 

Eu sei de um círculo exacto
que habita cada gesto intacto…
Bloqueado círculo, porém, onde viver é intruso tacto…

 

Lx. 26/1/81 – caderno Rumor de Inverno


XV

 

Oblíquo o gesto desliza,
e tudo é rumor ou brisa.

A sombra desenha o corpo,
e retém, vegetal, sua respiração.
Como o claro dia, a noite vem, e é aparição…

 

Lx. 15/5/81 – caderno Rumor de Inverno


XVI

 

Na mais ampla mesa do pensamento
repousa a ideia antiga do instante breve

 

Lx. 8-7-89 – caderno Uma Pequena Paz Talvez


XVII

 

Escreve, pois:

É a ausência a dois…

 

Inédito – Lx. 22/9/83


XVIII

 

reina uma. pequena, harmonia. na tarde.

uma. pequena ode. doméstica. desenhada

pelo verbo. e pelo ventre.

rente.

rumina-se a memória.         estéril.

ou intacta.                       o vento ágil. sopra.

sobre toda uma obra.       oblíqua

que nasce ou acaba.         orbe ou obra.

 

Inédito – Lxª 25/12/2008 – caderno A Anunciação da Morte