SARA F. COSTA
Casa
a casa morre através do verniz
adormecido da porta.
há nela uma música permanente
como uma funda tempestade.
há sombra de cetim
a consumir os olhos
e medo entornado muito devagar
por todos os segundos que a habitam.
a casa,
enquanto verbo,
é silêncio.
“Uma Devastação Inteligente”, Atelier Editorial, 2007
Domingo
hoje é domingo e as imagens escoam-me pelo queixo,
fazem poças de promessas
sobre a virtude.
eu diria que os dias são sensivelmente todos iguais:
todos se apresentam esmagados e inspiradores,
lumes horizontais no soalho,
brisas que ascendem pelas frestas das páginas
até à melancolia dominical.
o universo recosta-se no seu software complexo
mas fácil de manusear na óptica do utilizador.
é domingo e ninguém me conhece.
é como estar deitada sobre uma linguagem lunar,
torcendo-me para te alcançar a ausência,
diversificando a velhice ao fim-de-semana.
“O Sono Extenso”, Âncora Editora, 2011
Lis
sento-me na margem da tua infância
e recupero o gosto pelo esquecimento.
as minhas mãos traçam o momento
em que o teu corpo aberto colide com o mar.
imagino o oceano em que te deitas
e a forma como
a tua boca de areia se alarga
até à Praia da Vieira.
imagino os rascunhos de memória
que as horas vão largando
ao longo do caminho.
sinto-te um prolongamento do meu pensamento,
pensamento de água
volátil como a noite que te abriga,
fragmentário como o cheiro do teu nome de flor.
“O Sono Extenso”, Âncora Editora, 2011
Dizes-me que a fúria é concêntrica,
na tua memória a minha cabeça arde constantemente,
os nossos diálogos são vento
abraçávamo-nos na menstruação da neve,
o riso espalhava-se até à ponta das cicatrizes.
pela curva do rosto foste estendendo vocabulário:
beleza, idade, suspiros.
eu nunca confiei em Janeiro,
nem no meu corpo bordado.
aos poucos a dor humedecia
a história simplificava-se,
o oxigénio deslizava sobre as paredes
mas não era a mesma coisa
o Inverno imóvel,
a lingerie sensível,
a mão gloriosa parada na fornalha.
ardo às vezes
mas depois passa.
“O Movimento Impróprio do Mundo”, Âncora Editora, 2016
Uma poeta
nenhum poema é terrível
se o conseguires transportar às costas
deixa-me contar-te
a relação tenebrosa entre o olhar e o rosto
a beleza original dos escombros
escondida nos músculos dos planetas.
hoje somos raízes
e amanhã linguagem.
deita-te nas imediações da morte
na coluna da cratera
deixa vegetar aberta
a voz pálida de um prodígio sem audiência.
“O Movimento Impróprio do Mundo”, Âncora Editora, 2016
A literatura é uma fábrica
com miolos azuis
manhãs burguesas,
telefones ou telemóveis que vibram com os lábios
um automóvel, um prédio
um fascismo vulnerável
num horizonte proletário,
a lógica escorrega-me
diretamente da gargalhada,
mas o meu género é subgénero
asfixiado,
transpirado
transpira pelas paredes.
que venha o fado
ou então o gado, para facilitar,
talvez o gado.
“O Movimento Impróprio do Mundo”, Âncora Editora, 2016
Quarto
mergulho nos dedos furiosos da árvore,
num sussurro indígena.
os olhos ligados pelo músculo do medo.
tenho o quarto furado até ao fôlego
e a noite ordeira
circula-me por dentro.
pensar sangra e o sangue verte sobre
o sono dos objetos e
o chão absoluto
os nomes atirados contra a parede
constroem um lento orgasmo nas válvulas do silêncio.
“O Movimento Impróprio do Mundo”, Âncora Editora, 2016
Se vieres trabalhar todos os dias de fato,
sentes-te melhor.
aliás, se vieres trabalhar todos os dias de gravata
fazes o teu trabalho melhor.
se todas as noites escolhes a camisa
é porque sabes que o dia a seguir existe
se passares o blazer a ferro é porque
a angústia é uma coisa que se distrai
com horários e despertadores
relatórios de reunião,
gestão de clientes,
estratégias de marketing
se todos os dias todos
os dias forem de trabalho
já não gritas, não dói
não sentes, não mentes
se todos os dias o trânsito,
o cansaço, o infantário
as contas para pagar
se todos os dias os dias todos
num só e depois acaba.
“A Transfiguração da Fome”, Editora Labirinto, 2018
Catedrais Contemporâneas
esta é uma vila com mais de dez milhões de habitantes
são carros e gente e bicicletas
num caos perpétuo.
é certamente uma vila porque as pessoas têm mãos sujas
e expectativas de sobrevivência pelo seu próprio cultivo
da paz interior.
vidas de néon que constantemente atravessam estradas
em direção a catedrais contemporâneas:
os edifícios que tentam chegar a Deus
ou são os donos dos edifícios deuses sem causa?
passa por mim um fantasma global
cheio de violência nómada.
trocamos respirações poluídas.
o outro lado do mundo é igual ao outro lado do mundo.
“A Transfiguração da Fome”, Editora Labirinto, 2018
Ni hao!
queria dizer ni hao estou muito contente
por estar a aqui
mas toda a gente sabe que só a pele
é expatriada.
tudo o resto pede retorno, os ossos
as veias, os traços mais poluídos
dos sinogramas.
toda a gente quer dizer xiexie
mas não me sinto grata
por cavalgar o búfalo taoista
na parede do templo,
rodopio yin yang da minha frágil convicção.
toda a gente quer dizer jiayou
mas não há combustível
para dessincronizar os sentidos.
há apenas este atravessar de estrada sem tons,
este sabor a moedas,
este odor ao incenso do corpo.
vou de bicicleta de encontro ao poema,
como um Herberto Helder taoista.
de que me serve este passado ruivo,
esta voz a cigarro,
estas corridas em direção aos poemas,
de que me serve o poema por debaixo do rosto.
“A Transfiguração da Fome”, Editora Labirinto, 2018
Sara F. Costa (Portugal, Oliveira de Azeméis, 1987). É licenciada em Estudos Orientais e Mestre em Estudos Interculturais: Português/Chinês pela Universidade do Minho em parceria com a Universidade de Línguas Estrangeiras de Tianjin, China. Tem recebido vários Prémios Literários nacionais na área da poesia. Participou no Festival Internacional de Poesia e Literatura de Istambul 2017 e em 2018 fez parte da organização do Festival Literário de Macau e do Festival Internacional de Literatura entre a China e a União Europeia em Shanghai e Suzhou, China. Traduz poesia chinesa para português.
Livros publicados:
– A Melancolia das Mãos e Outros Rasgos (Pé de Página editores, 2003);
– Uma Devastação Inteligente (Atelier Editorial, 2008);
– O Sono Extenso (Âncora Editora, 2012);
– O Movimento Impróprio do Mundo (Âncora Editora, 2016)
– A Transfiguração da Fome (Editora Labirinto, 2018)