JOAQUIM SIMÕES
Nos finais de 2015, durante uma tarde à beira-Tejo com a cantora brasileira Lúcia Helena Weiss, falámos muito das raízes e influências comuns da música popular do Brasil, em especial do choro e da valsa, e do fado, pelo qual ela se apaixonara na primeira vez em que visitou o nosso país. Do diálogo que mantivemos nos meses seguintes ao seu retorno ao Rio, surgiu-me a ideia de revisitar as melodias ouvidas na minha infância e parte da juventude – quer na rádio quer na voz da minha mãe, cantando-as (maravilhosamente) enquanto fazia a lida da casa – e tomar nota do que hoje me diriam.
Ao longo de 2016, coleccionei assim quinze poemas que me surgiram após voltar a ouvi-las e adaptei mais cinco, escritos anteriormente (alguns publicados aqui, no Triplov), por corresponderem ao que as músicas me sugeriram. Enviei-os à Lúcia, à medida que me iam sucedendo, e assim se foi enraizando em nós, cada vez mais, a ideia de ela vir a moldar esses novos fados na confluência das tais raízes que ligam ambas as tradições musicais.
Submeti meia-dúzia ao critério de Carlos do Carmo, que teve a gentileza não apenas de me comunicar o seu apreço por eles como a de os entregar pessoalmente no Museu do Fado, para integrarem o “banco de poemas” que nele se encontra à disposição dos fadistas. O que nos levou – mesmo tendo em conta as vicissitudes a que, cá e lá, tudo o que se liga à concretização de um trabalho desta natureza estará sujeito, ainda que atenuadas as distâncias físicas pela tecnologia actual – ao reforço da intenção de o levar a cabo.
Por agora, aqui fica o que as vinte melodias do fado tradicional me disseram em forma de poemas, estilística e tematicamente tão diversos como elas. O título de cada poema é sempre precedido pelo nome do fado a que corresponde, cujas várias interpretações e diferentes letras que foram tendo ao longo dos anos podem ser ouvidas no Youtube, bastando para tal colocar esse nome.
Fado Alberto – Alma
Calaram-se os poetas da idade
Do sonho que nos salva e atormenta
Como a seiva de um sol que nos invade
De sombras com que queima e alimenta
Envelheceu de novo a novidade
Tornou-se mais astuta e violenta
E a lua cobre as ruas da cidade
De sementes de sal e de tormenta
Entre o deve e o haver da sorte incerta
Procuro um rumo em mim novo ou antigo
Que me leve p’ra sempre à porta aberta
Da casa onde o amor sonha comigo
Acima do silêncio deste dia
Em que o Tempo nos calca e nos agarra
Tão delicada como a maresia
Abrindo o coração como uma garra
Rugindo ora a dor ora a alegria
Soa uma alma em forma de guitarra
Fado Bailarico – Fado do Chocolate
Disseste que o chocolate
com que pintaste os meus lábios
era feito com o amor
de cem mil segredos sábios.
Mas também foste deixando
e demorando os teus dedos,
como quem quer misturar
mais um, em tantos segredos.
Saber é saborear
o gosto que a vida tem,
se lhe soubermos juntar
o sabor de um outro alguém.
Só que eu fiquei sem saber
ao que me soube no fim:
se aos dedos se ao chocolate,
se mais a ti ou a mim.
Por isso, agora nem sei
o que me sabe melhor:
se ao que sabe o chocolate
se o que tu sabes do amor.
Fado Cravo – Fado do silêncio
Faz-se silêncio a saudade
Quando a ausência nos invade
De um penoso encantamento
E emudece a ternura
Na mão que outra mão procura
Por carinho ou num alento
Perde a voz a amizade
Abandona-se à verdade
De um abraço ou de um olhar
Escorre em silêncio o desgosto
Em sulcos na foz do rosto
Que o Tempo virá secar
Torna-se muda a alegria
Se a própria luz do dia
Tem menos brilho do que ela
Enobrece o sofrimento
Que ao recusar o lamento
Só o silêncio revela
Fica calada a emoção
Para ouvir o coração
Batendo descompassado
E se a vida de ser tanta
Nos embargou a garganta
Chamam ao silêncio fado
Fado da Adiça – Carta
Fui eu bater, acordado,
à porta de um sonho meu,
abriste tu e disseste
que ali só vivia o teu.
Sem saber, surpreendido,
o que pensar, respondi:
pode ser a tua porta,
mas sei que ele mora aqui.
Negaste outra vez, depois
convidaste, num sorriso:
Entra, mas só há o meu,
aquele de que preciso.
Entrei, não vi nenhum sonho
nem onde pudesse estar;
ninguém, além de nós dois,
sentados, a conversar.
Dei-te um beijo, à despedida,
mas vou voltar. Percebi:
muito mais do que de um sonho,
eu gosto mesmo é de ti.
Fado da Azenha – Sou da Mouraria
O sol assoma à viela
Quando estendes à janela
Fados que a noite encantou
Com voz feita claridade
Dás alegria à saudade
Que um dia alguém te deixou
A luz do luar pintou
Nas ruas por onde andou
Sombras de almas errantes
Mas quem passou a essa hora
Só viu amantes de agora
Iguais aos que havia dantes
Vibra sobre o casario
Entre o castelo e o rio
O azul do meio-dia
E o eco no coração
Bate forte num refrão
Que diz “Sou da Mouraria!”
Fado da Defesa – Fado da ilusão
Para a Luísa, no seu aniversário
Ontem, mal tinhas saído,
sonhei que havias partido
p’ra não voltares, nunca mais.
E doeu-me tanto, tanto,
que acordei com o meu pranto
entre soluços e ais.
Hoje, ao te ires embora,
fui contigo até lá fora,
dei-te um beijo, já na rua.
Disse: Não sei, ninguém sabe
o destino que lhe cabe,
mas serei p’ra sempre tua.
Olhaste p’ra mim e riste:
Esse sempre não existe
nem o nunca, só o aqui.
Sonhaste, depois voltaste,
mas, enquanto te afastaste,
não saí de ao pé de ti.
Fado das Horas – Amor amor
Amor, amor verdadeiro,
amor a perder de vista,
é amor que é, por inteiro,
palhaço malabarista
– que amor que não ri nem brinca
consigo mesmo, contente,
é amor que não é sério
ou, então, que está doente.
Todo ele é, de uma só vez,
acrobata trapezista,
feito bicho-carpinteiro
em pose de equilibrista
– que amor que em si mesmo anda
como de si dividido,
não é amor, não é nada
mais do que tempo perdido.
O amor só desilude
quem não é ilusionista,
engana quem não vê nele
senão um contorcionista
– que amor que apenas nos dá
a ver o que está presente
não é amor, é cegueira
de alguém que a si próprio mente.
(…)
(…)
O amor é o domador
dos punhais que a vida lança,
com eles traça a figura
da mãe da nossa esperança
– que o amor é o artista
da maior habilidade:
a de ensinar a vida
a tornar-se Eternidade.
Só pode saber quem é
o amor quem o deixar
ser tudo aquilo em que ele
se vê ou se quer tornar
– que amor que é amor não tem
preguiça, tempo a perder,
p´ra ser, na pista do Tempo,
tempo da vida a valer.
Fado dos sonhos – Fado da minha rua
Quantos sonhos aqui moram,
Na rua por onde vão
Passando outros por mim?
Que sonhos, os que a fizeram,
Espalharam pela calçada,
Nas paredes, no jardim…?
Já quantas ruas morreram
E ruas novas surgiram,
Assentes sobre o seu pó…?
Cada cidade é um sonho
Feito de sonhos, que o tempo
Mais tarde varre sem dó.
Não sei se a vida é um sonho
Ou tem por fado sonhar
A vida que se pressente.
Nem sei que sonho me trouxe
Para morar neste canto
Das ruas da minha gente.
Fado Isabel – Poemas
Poemas são só as notas
à margem da nossa vida,
esconjuros de feiticeiro,
troços de rota perdida,
brasas que voam do lume
do mistério que arde em nós,
grito de prazer, queixume,
pranto alegre, riso atroz,
preces surdas para domar
o Tempo que nos devora,
vingança pura a brilhar
com a beleza da aurora,
[Poemas são só as notas
à margem da nossa vida,
esconjuros de feiticeiro,
troços de rota perdida,]
piruetas e magias
de iludir o desencanto,
ilhas secretas que emergem
do fundo de um mar de espanto…
Que poemas como barcos
à descoberta da vida
esses canta a minha boca
se anda na tua perdida.
Fado Licas – Sem mais
O sol ora se ergue ora se deita;
e assim, tal como ele, também nós
passamos na cadência que sujeita
a vida em que soa a nossa voz.
Vêm e vão a sede, a fome, o sono…
Vêm e vão de novo… E o coração,
do qual, embora meu, não sou o dono,
bate o tempo da minha duração.
Nisto algo me encaminha sem caminho,
dentro e fora do corpo em que me enleio,
em que me acho e perco, quer sozinho
quer tendo outro corpo de permeio.
Voltarei ao mistério de onde vim,
de onde trouxe este modo de aqui ser.
E o que sou não chega nem p’ra mim…
De meu, só o amor p’ra oferecer.
Fado Loucura – Testemunho
Entre o céu
O chão e o mar
Uma gaivota faz seu
O destino de voar
Como ela
É toda a gente
Pois ninguém sabe o seu fim
Nem manda em si no que sente
Se uma guitarra
Embala as águas do Tejo
Num dedilhar de cigarra
Trinando o cio no brejo
Há uma voz
Que cala num eco fundo
Na minha como se o mundo
Falasse de todos nós
Não me deem
A escolher
Outras vidas ninguém vive
Outra maneira de ser
(…)
(…)
Nem me deem
Mais valia
Que o valor de cada um
É o que restar em poesia
Quem canta tem
O fado nesse cantar
É a alma a navegar
No caminho que aí vem
E se um poeta
Se cruza com ela à proa
O fado faz-se uma seta
Que salva a vida a Lisboa
Fado Maria Vitória – À flor do destino
Encontrei-te no caminho
Na rua do Capelão
Mas não chegaste sozinho
O meu destino juntinho
A ti vinha pela mão
Uma flor de rosmaninho
Jazia triste no chão
Foste erguê-la com carinho
E pousaste-a de mansinho
Dentro do meu coração
Desde então se não te vejo
E te espero a toda a hora
O perfume do desejo
Faz-me cantar como beijo
O fado que canto agora
Fado Menor do Porto – Fado do menino Fernandinho
(para Teresa Silva Carvalho e em memória de Fernando Pessoa)
Foste, aos poucos, desenhando
o mapa da nostalgia
de ti, que vais entranhando,
bebendo a sombra do dia.
Marinheiro abandonado
nas Índias do teu querer,
ficaste desempregado
da profissão de viver.
O sol não te aquece a alma,
que sentes, mas não conheces,
fingindo que a dor acalma
se pões em versos as preces.
E a Deus, se existir, não pedes
a mera felicidade:
pedes o riso feliz
do brincar com a Verdade.
Fado Pedro Rodrigues – O xaile
O xaile com que enfeitaste
Os teus ombros eram linhas
Da história que imaginaste
P´rà tua vida e enredaste
Mais tarde nas que eram minhas
Entre os dois vamos fazendo
De um p’ra o outro, outra história
A de uma alma vivendo
Dentro das nossas crescendo
Feita de sonho e memória
E quando enfim acabar
O tempo que Deus nos deu
Para a podermos contar
Sei que ela se há-de enlear
Nos mundos que Ele escreveu
Fado Proença – Fado da mais-valia
Trouxeste no teu sorriso
a casa de que preciso
p’ra morar no meu viver
No olá que me disseste
o desafio que fizeste
ao que a vida pode ser
No rosto ecoava a Terra
onde a paz em vez da guerra
anuncia a novidade
E no olhar a lonjura
em que se espraia a ternura
com que se faz a Verdade
No teu caminhar a dança
de quando o corpo se entrança
no corpo da alegria
Deste-me a mão e depois
um beijo vale por dois
no ganho de cada dia
Fado Tamanquinhas – A lenda da Madragoa
(em memória de Cesário Verde, David Mourão-Ferreira e Ary dos Santos)
Uma sereia na margem
mais noturna da cidade
deu-lhe a sonhar a viagem
em busca da Vera Imagem
sonhada da Nova Idade
Mas de manhã quando o sol vem
trazer o dia a Lisboa
quem lhe abre a porta apressada
que já está muito atrasada
é a velha Madragoa
Soam pregões que nos dizem que há
vida fresca na Ribeira
Soam cores nos sabores
soa o perfume das flores
rindo rindo à nossa beira
E uma garganta sã
lava a canseira da lida
num fado que lhe alivia
e tempera de alegria
os fardos da sua vida
(…)
(…)
P’ra alimentares Lisboa
puseste no Tejo a mesa
enfeitada pelas redes
de esconjurar a pobreza
Tu és a Mãe-Madragoa
Numa modesta traineira
levas a sereia à proa
sonhando à tua maneira
uma lenda verdadeira
a que chamaste Lisboa
Fado Tango – Sonho de mim
Entre o que penso que sei
e o que sei do que sinto
fica tudo em que não dei
conta de quanto me minto
sobre o que nunca encontrei.
E o que procuro saber
do querer de outro de mim
é saber sem conhecer
o que fica por querer
que o querer não tem fim
Como não hei-de eu errar
aquilo que desconheço?!
Neste falhar-me, quem falha?
Como hei-de eu encontrar
o que nem sonho que peço?
Fado Três Bairros – Fado do poeta
Puseste em cor de alegria
E azulejos de poesia
A parede cá de fora
Prendeste o sol ao telhado
E à varanda o beirado
Onde uma andorinha mora
Na soleira por carinho
Puseste um degrau baixinho
Não fosse eu tropeçar
E na escada um anjinho
Apontando-me o caminho
Para não me enganar
Ao pé da porta um menino
Atacava um violino
Sempre que eu ia tocar
Lá dentro é que já não sei
O que havia não passei
Nunca do teu patamar
Afinal de mim querias
Só as palavras vazias
De te louvar a vaidade
Sou poeta não me queixo
Mas isto é tudo o que deixo
Nem sequer levo a saudade
Fado Varela – Absolvição
Desnudam-se as palavras no olhar.
As mãos tecem a rede do desejo.
Fazem-se as almas húmidas num beijo.
Emanam, carinhosas, sem cessar.
Depois, vão-se fundindo, devagar,
Frementes como água em rodopio,
Crescendo como cresce o desvario
Do rio que quer nascer para ser mar.
Gritam nelas a terra, o fogo, o ar.
Transmutam-se em semente e flor e fruto.
Cada uma é, da outra, o usufruto
No corpo que é um templo a latejar.
Tudo é altar, manjar, frescor e lume.
Amanhece o mundo. E um sorriso
Invade de inocência o Paraíso
Liberto do pecado do ciúme.
Fado Vianinha – Fado menino
Por qualquer mágico encanto
A noite muda-se em luz
Quando uma voz a seduz
Pela tristeza do canto
Um canto que é como dança
Que andasse nele escondida
Ou querer a própria vida
Ser de novo uma criança
De dentro da madrugada
Como quem está a rezar
Alguém se põe a cantar
Co’ a garganta avinhada
Uma frase repetida
Ao passar junto das portas
Não existem horas mortas
Todas elas são a vida
É nas vielas de Alfama
Que a luz da noite ecoa
Tornando a luz de Lisboa
No espelho do seu destino
É nas vielas de Alfama
Que o canto baila e arde
E onde nunca nunca é tarde
Para o fado ser menino
Σ