Poemas do Lar

PAULO BRITO E ABREU

«POEMAS DO LAR»: REVELAÇÃO E REVOLUÇÃO EM
JORGE TELLES DE MENEZES


I, A ESTROFE

Decaído, dejectado e refusado no mundo, o mesmo mundo é presentificação, re-apresentação, de Jorge Telles de Menezes, e quer isto apresentar, em magnetismo da Mnemósine, uma nova feeria das mágicas imagens. Ou como, na Luz, ou como quem aduz: se a génese é a Gnose e a Gnose é germinal, o engenho é generoso, o conhecimento ou «co-naissance» é um nascer em conjunto – e a esse conjunto, em toada ou sintonia, se chamava «Pantónicas». Ou melhor: se Orfeu é do refrão, e a Música é Museu, o Museu, dessarte, é templo das Musas – e aqui falamos, avocamos, Jorge Telles de Menezes; é dele, desta sorte, a voz e a vez. Dilucidemos, então, elucidemos o ledor: em morfose-metamorfose, Morfeu informa Orfeu, e o sonho é qual o êxtase, e dormir, ou sonhar, é ser Iniciado. Mitológica, portanto, etimologicamente, era, Museu, qual mavioso cantor; educado, mirificamente, por as Musas amáveis, ele era filho da Selene, da Selene e de Orfeu – e eis, com a Lua, o valor e alor, e eis agora aqui o lema do Jorge. Vem mesmo, no lance, a talho de foice: é Sintra, desta sorte, a montanha da Lua, e Orfeu foi fundador, o feitor e promotor dos Mistérios de Elêusis. E é força, no acme, aqui dizê-lo: como autor de milagres, como o liberador do Averno inconsciente, é Dioniso, para Jorge, o deus das Belas-Artes, ele é por isso o Liber Pater, o paraninfo e protector dos Poetas libertários.
Ciente fique, em consciência, o ledor: à ordem do dia se opõe, em Jorge, a paixão pela noite; se nós temos, em Apolo, o «Logos» da razão, nós temos, noutro pólo, o deleite e as delícias da imaginação; mui longe de serem, como em Malebranche, «a louca da casa», as imagens em acção são reingresso, ou regresso, ao fantástico mundo mágico-simbólico – e é por isso que o Menezes alteava Novalis, e é por isso que o sonho é a infância no homem. De tal forma que diremos: Jorge Telles de Menezes, o menino, afinal, do Espírito Santo. Um vidente amatório da Noite como nau, um homem sempre em busca do Eterno Feminino. Ou melhor: do natal, da natura, ou da Estrela no Homem. Quero eu dizer, e aduzir: do divino e do «daimon», da máscara e não da cara, do «pensamento selvagem» segundo Claude Lévi-Strauss. Do maioral, do mista e misticismo. E da magia, dos tropos e das metáforas, duma contracultura que anela, e apela, para a cultura de encontros – e eis, em tertúlia, o Tertuliano, eis em grama o Psicodrama de Jacob Levy Moreno, e não andamos, aqui, muito longe do grimório, da glossolalia e também da guematria. Pois no grémio, na graça, no grupo, me alembro de ter pensado, ao assistir a um simpósio, cenáculo, dos «Meninos da Avó»: «Na pedra de Heracleia, o Jorge cultiva, a fundo, a Gaia Ciência, que ele é garbo e grandioso, é magnetizador de alto gabarito» – e eis a senda, a carreira e a cruzada de Menezes. Que a Poesia, para o Jorge, é Pão da Vida – e se a Arte aratória é Arte oratória, a Palavra, aqui, é pau da lavra, a cruz é a espada e a espada o bisturi. E eis, agora, a rapsodomancia. Eis os tópicos, e tropos, de Jorge Telles de Menezes.

II, A ANTÍSTROFE

Mas o Autor, e promotor, de «Poemas do Lar», foi lançado no mundo, ele é «Dasein», ou Ser-aí, em projecto no mundo. E por isso, seguindo Marx e Rimbaud, ele o quer transformar, em mundificação. Quero assertar: no mundo da canção. E apostilando e epistolando, apostolicamente, pra aquilatar, adrede, a revolução, evolução, em Jorge Telles de Menezes, ouçamos o avito, e venerando, «Livro de Isaías». Fazendo ele a profecia, ou prognose, do messiânico reino, «Então o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora, e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente.» E afinal já falamos, em figura-fulgor, duma Utopia, ou Eu-topia, em Jorge Telles de Menezes. Que tem, precisamente, em Isaías, Ezequiel, os seus primeiros precursores. Quero eu dizer: se o Profeta é provençal, e é Poeta o professor, deriva, o Vaticano, a sua força, do projecto-vatícinio. Que o mesmo é firmar: da prospectiva visão. De uma obreira, de uma oblata, beatífica visão. De uma epiclese portugalaica, e pentecostal – e nos apraz citar aqui, no crisma e carisma, o Nume e o nome de Agostinho da Silva. De um império, prospecto, do Espírito Santo. Em «communio», por isso, com o «Mitsein», o «Dasein» de Menezes insiste, veramente, na Verdade do Ser, é que ele clareia, abertamente, na clareira do Ser. Ou em lhaneza de chão plano: se é linguagem, deveras, a Casa do Ser, as palavras, em Jorge, são «Poemas do Lar» – e é colaço, por isso, o Paulo Borges, e a Ecologia, em Menezes, é a Escola do escol. Se nós firmamos, visionamos, o Jorge sempre em busca do Eterno Feminino, essa voz que vem do ventre, e essa voz que vem de Vénus, ela é, pra Menezes, o útero materno. E o que é, dessarte, a Rosa da Anarquia, senão a morte, o passamento, o epicédio do Pai??? Se o Padre é, por isso, o mantenedor da simbólica lei, «o coração tem razões que a razão desconhece» – e se opõe, a essa lei, o princípio do prazer. Se opõem, na barca, as Copas ao Pau. Quero eu dizer, com Lacan e Rimbaud, que este Eu é um Outro, que o inconsciente, ele é, deveras, o discurso do Outro, do estranho, dessarte, e do estrangeiro, em Jorge Telles de Menezes. E ouçamos, por isso, ouçamos o Jorge: «O homem que cultiva a beleza deve viver fora dos muros da cidade, particularmente se for Poeta». O Poeta, por exemplo, para Grade, ele fabula, alegoriza, ele fala de outra cousa, o «allós» congraça o alienado. Ou melhor: pra retomarmos, fazendo-o nosso, um tema e emblema de Carl Gustav Jung, é peculiar, o Mito, ao lema e noema do homem primitivo – e contra a moral e sem o saber, o homem civilizado ainda arrasta, atrás de si, a cauda de um sáurio. Se o sonho é, por isso, uma pequena loucura, a loucura é, deveras, um grado e grande sonho. E se o Mito é, no fundo, um sonho colectivo, o sonho ele é, na verve, um Mito particular, a Psicanálise, a análise, o sonho do século. Sendo o Freud, pra Paul Ricoeur, o Mestre da suspeita, o Menezes retomou, fazendo-o seu, o rito e o mito da amada Selene. E se a Selene é do segredo, e o sagrado para o degredo, a Selene é desta sorte a divina Saudade, ela é entanto, numa Alice, o desdobramento em espelho – e esse espelho só ex-siste pra ser lunar, pra ser o lar, e espectacular. A propósito, então, do «leitmotiv» do Jorge, seja-nos lícito, aqui, citar a Musa, e a fusa, do pensamento «Beat» ou da «Beatlemania»: «When I find myself in times of trouble, Mother Mary comes to me. Speaking words of wisdom, let it be».
E muita Paz, e muito Bem. Sendo o Teatro Tapa-Furos o amável do Jorge, em lugar de pragmatizar, dramatiza, esse estro, uma Ontologia, ou Teologia, dos poéticos valores. Quero aventar: se a «persona», para o Jorge, é preternatural, o surreal não é só dele, mas sim do Poeta, ou Profeta, de todas as nações e de todos os tempos. Se o agro, aqui, é o sulco de arado, o versejar ele é diverso, o avesso e o reverso, é pintar a realidade com as cores, e corações, do saltimbanco ou pelotiqueiro – e aqui eis o «Bateleur», e eis aqui a mensagem de santelmo António Telmo. Esta forma de Magia, no nosso Amigo Jorge, não é falácia nem fútil, é transmundar e transformar, à guisa do Acrobata, a verdade em mentira e a mentira em verdade. Ou melhor: em «Alêtheia» de alumbrar, a Poesia é para Jorge o trasladar-metamorfose, ela é uma «ek-stática» insistência na Verdade do Ser. Ou melhor: nos fins do século XX, bastaria fazer parte dos «Meninos da Avó» pra o eduzir, o educar e seduzir: é que mais do que representar, a vida imita a Arte e a Arte imita a vida, e tem no «poster» o «teenager» a guitarra do cantor. Queremos nós aqui dizer: pra citarmos João Belo, em sua vez e a voz, «sou mais Eu quando Tu és a síntese de nós.»

III, O EPODO

Se o trovar, dessarte, é falar segundo os tropos, toda a Arte, para o Jorge, é qual «mensonge», ou mentira, que se transforma, a pouco e pouco, em verdade promissora. «O que é uma mentira?», demanda Lord Byron. «Não é senão a verdade duma mascarada.» E afinal já falamos, aqui, do Teatro do Ser. Do fantasma, da ficção, do fetiche e do fantoche. Que o inconsciente do Jorge se exprime, prementemente, por meio, e através, das suas imagens. Nesse imenso Carnaval, ou «carrus navalis», que é o sonho acordado, sabemos que praticava, o Jorge, a escrita automática, o «automatismo psíquico» segundo André Breton. Que se apoiou, com força justiceira, no Pierre Janet. Mas versando, agora, os «Poemas do Lar», que não nos iludamos: os livros, para Jorge, são libertos e os livres. Ao ser Amigo do «otium», da escola e ABC, o Jorge era Amigo do refusado, do abaixado e «abaissé». Nós cremos, sinceramente, que a Poesia, para Telles de Menezes, é o mundo às avessas, que o Artista, ou artilheiro, libera o recalcado, e que a Arte, por isso, é qual arteiro anti-destino. E querendo, no artifício, com a força da crença, o dilema do Jorge ele reside, rapsodo, na «Origem da Tragédia», de Friedrich Nietzsche. E além das Dionisíacas, Amigo ledor, punha em práxis, o Jorge, o sátiro, o sabat, e a festa Saturnal. Pondo em prática, ademais, a «Quaker» «weltanschauung», o Jorge seguia, com «adresse», o preceito evangélico: ele humilhava o exalçado, ele exaltava o mais humilde. Sendo humilde, por isso mesmo, o pensamento radical e a força do humo – e não remembras, ó legente, Raul Brandão radicalista??? Ou melhor: tu não alembras, ó ledor, a «terra devastada» do nosso Amigo Jorge??? O Jorge que acatava, e aceitava, o panteão e Paracleto de Antero de Quental: se «o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo, a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno.» Se o Jorge, por isso, é da Geia, ora eis, aqui, a sacralidade, em natal, da deusa Natura: «A natureza era uma extensão de Deus, eu era uma parte de um divino corpo imenso como o próprio universo» – e aqui temos, adrede, o Pão e Vinho, o deus Pã encarado como a totalidade. Sejamos, agora, sincero: não era o Jorge que assertava, outrossim, que «cozer um pão é uma festa e uma celebração da terra»???
E epistolando na espécie da especulação: se a Pátria, entanto, é o princípio do Pai, a Natureza, ou nascitura, são as águas da matriz. Da Mátria, portanto, da Natália Correia. Bem perto, aqui, do paládio-paleta. Muito longe da Polícia, e dessarte dos patrões, contra o Letes e a lei da separatividade. E se a Cynthia mulher é a casa do homem, «o lar é condição para o aprofundamento do Ser», ele insiste, com Saudade, na «Alêtheia» do Ser – e por isso ele é o Betel, o bétilo, o «Beth», a marca segunda do alfabeto hebraico, e nós alçamos, alteamos e louvamos a Kabbalah fonética. A liga, afinal, a Língua dos Pássaros, o Livro do Mundo e o Livro da Vida. Se a salvação, portanto, vem das Mães, «um lar», para Jorge, «só existe no coração, ele é a pátria de todos os desterrados» – e não é, reincidindo, que são precisos «dois mil anos para sermos cidadãos de uma República universal»??? Jorge Telles de Menezes, no Querigma e no carisma, um cidadão do mundo, o verso alteado na unidade e «communio» da universalidade. Se «beber uma chávena de café», para ele, «é um acto revolucionário», apalavrar, para o Jorge, é lavrar por isso em Pã, a fim de que a sementeira em Cristo floresça. À revelação, dessarte, dessa Unidade primacial, se segue, bem cara a Abril, a clara e preclara revolução. Ou melhor: bem edível e edule, «o alimento vem da terra que cultivo, a paz que sinto é a minha única riqueza.» Queremos nós aqui dizer: ao manejo das armas se segue, bem cordial, o cultivo das Almas – e aqui eis o Sol e escol, e encerramos as prisões para abrirmos as escolas. E ratificando, rectificando e concluindo, com «Poemas do Lar» se aprimorou o Menezes, reproduziu-se, no germe, igual a si próprio. Muito longe, dessarte, da existência inautêntica, ou massificação, o escopo do Jorge, na linha do Rogers, foi «tornar-se pessoa», foi tornar-se, por isso, «persona» divina. E muita Paz e muito Bem. E terminando, na cita, com Eugénio de Andrade, foi dum Poeta que falei. E em responso, ou em resposta, que seja livre o rapsodo. E «que rompam as águas.»


Que Luz, 09/ 02/ 2019
IN HOC SIGNO VINCES
PAULO JORGE BRITO E ABREU