Poemas de Radovan Ivsic

 

Nicolau Saião . Tradução

 

 

 

 

 

 


 

I

Sombria, ela está no vazio. O seu dedo acorda, hesita e depois transforma-se em peixe. Todo o seu corpo se ilumina. É a névoa, pensa ela.

 

II

Pesada, no redemoinho, ela é só uma ferida. Um grito abre a sua boca entreaberta, mas os dedos dos pés são borboletas que voam. É um raio, pensa ela.

 

III

Vermelha, ela está maravilhada: não são já escamas que cobrem o seu corpo, mas lábios pequeninos e incontáveis. Está embrulhado num lençol branco. É a neve, pensa ela.

 

IV

Tremendo, ela avança em direção ao abismo, embora queira afastar-se. Não é um abismo, mas um abutre que corre para a ponta nua do seu seio. Ela começa a rir. É a miragem, pensa ela.

 

V

Cidadão, tu tens o segredo de abrir as gaiolas. Junto com o primeiro tigre, desce as escadas do metropolitano. Eles estão logo no deserto. As lâmpadas apagam-se, mas no escuro não vai demorar muito para que dois olhos verdes se acendam. É o eclipse, pensa ela.

 

VI

Ofegante, ela acaba de chegar ao topo do penhasco mais alto. De repente, atrás de uma pedra, vê um olho e depois outro: milhares de pupilas ansiosas estão fixas nela. Rápida, começa a despir-se. Finalmente nua, sobe a encosta íngreme e relvada e desce para a planície, saltando sobre as mãos. É o ciclone, pensa ela.

 

VII

À noite, no musgo ela descobre as estrelas, os rastros de um cervo e finalmente uma fonte. Um arminho em fuga esconde-se na sua axila. É o cometa, pensa ela.

 

VIII

Com ciúme, ela vê as costas de um estranho que se contempla no espelho. Pega num machado debaixo do travesseiro e atira-o na superfície fria para aniquilar a sua enganosa profundidade. O estranho vira-se e examina-a para ver talvez a sua nova imagem. Não. É o terremoto, pensa ela.

 

NARCISSUS

1.

a noite inunda Narciso

com tufos de peixe

os ramos dos sonhos nas pálpebras da floresta

de galho molhado

e vento verde

 

a noite anda vestida com dedos sonolentos

arrepios nas folhas

e o rápido nascimento das pedras

 

o uivo da noite ecoado por camaleões

onde o narciso mergulha além dos tufos

de peixes

 

pedra sobre pedra na noite húmida na pedra

enxame onde a escuridão se separa e se afasta

 

avanços de Narciso

tira a colcha das sombras

escuta o medo dos escolhidos

enterra o vento

e uma árvore dormente

 

2.

o silêncio sugere

dentro da linguagem do tempo

de uma criança de outro tempo

o corte na visita das sombras

margem do rio de outro rio

margem de si

um espelho drena para o mar

 

embarcou no fogo na forma de um segredo

toca os ombros de Narciso

 

um rosário de medos garante um corpo de vozes antigas

uma cobra cega corre nas suas veias

uma estrela torna-se pedra

 

Narciso dentro da árvore do esquecimento

os seus pés são as raízes da árvore

imerso no sonho de outra pessoa

 

hora do funeral sem ossos

 

3.

na outra margem

voz de pedra primavera e asas perdidas

flutua através do corpo

um sol ferido preso na janela

a janela que está arrancada

revela o segredo do abismo

da nudez do vento e da sua memória líquida

a pele do labirinto no abandono de sonhos

orvalho ao alcance dos olhos

no reflexo a sombra do último sonho

na linguagem da água

nas pontas da carne

na parte de trás do outro lado escurece.

 

ELA E EU

Estamos sentados na margem de um rio,

ela e eu.

Ela fala comigo,

e o sussurro das suas palavras

transforma-se numa nuvem de cerejas

que cai sobre os meus cílios.

Calmamente respiro

e entro nas imagens

que ela de mim queria esconder.

Ela ri,

e então pega numa montanha

 

e coloca-a nos meus lábios,

entre os nossos beijos.

 

DE TUDO

De tudo o que sei

E que eu sei que tu sabes

De tudo o que vejo

De tudo o que ouço

Quando escuto o teu coração

De tudo o que tu me dizes

E que eu tanto amo

De tudo o que acontece

Quando fechas os teus olhos

De todos os sonhos

De todas as estrelas

De todas as nuvens

De tudo isso que sabes

O que me deixa mais feliz ainda?

De tudo isso que me deixa ainda mais feliz

É que eu sei que tu sabes

Porque tu sabes isso e eu também sei

 

Tu sabes que me amas

E eu sei que te amo também.

 

POEMA

Ainda que os teus seios sejam flores fugazes

as tuas coxas de erva balançam na minha mão

e os beijos são tão lentos como a claridade

lentos

E eu esqueço o peso e a dor

a tristeza das flores demasiado ao longe

para nos beijarem

e os meus dedos desfolham-se nas tuas espáduas

como se o vento os semeasse e eu morresse de ternura

em toda a parte

e de novo a minha mão corre o teu claro corpo

e os teus seios

que eu acaricio com o meu olho

nu

 

POEMA

Pouca água

vem e vai nas dobras da areia

ao lado das pegadas molhadas dos pássaros.

E de novo uma onda tudo cobre.

E como se nada tivesse acontecido,

a névoa arrasta-se no musgo,

abre caminho entre as densas samambaias.

Mas ao crepúsculo as palavras estão vivas,

são como um botão que fecha a respiração,

e as palavras nascem sem cessar.

Esmagadas, dobradas, espremidas,

envenenadas, sufocadas, podadas, ridicularizadas

as palavras contudo não morrem.

 

Talvez se conheçam sob os penhascos,

ou sob nuvens pesadas,

talvez nos desertos mais distantes

ou nos corações perdidos.

 

(Fragmento de “SER CAPAZ DE DIZER”) . (Tradução de ns)

 

Nascido em Zagreb em 1921, Radovan Ivsic viveu em Paris a partir de 1954.

A publicação das suas obras foi proibida na Croácia durante a ocupação alemã, mas também sob o regime comunista de Tito. Então, iniciou a tradução de obras de Rousseau, Molière, Apollinaire, mas também de Breton e Eluard (entre outros). Naquele ano, deixou a Croácia para se refugiar na França. Ali, juntou-se aos surrealistas e escreveu poemas, mas também peças (como “Airia”). A editora Gallimard lançou em 2004 uma antologia da sua poesia intitulada “Poèmes”.

Ao lermos este autor, somos de imediato tocados pela desconstrução a que procede da sua escrita, libertária e audaciosa dum ponto de vista formal mas igualmente de entrosamento poético, em que se expande com brio imaginativo e enorme domínio dum  lirismo que nunca cede a facilidades de estilo.

Faleceu em Dezembro de 2009, na capital francesa onde sempre morou. – ns