GLADYS MENDÍA
(Apresentação e tradução)
Gladys Mendía (Venezuela, 1975) é escritora e editora. Tradutora do português para o castelhano, contando entre seus trabalhos de tradução a antologia poética de Roberto Piva intitulada “A catedral da desordem” (2017). Foi bolsista da Fundação Neruda (2003 e 2017) e participou do Workshop de Criação Poética com Raúl Zurita (2006). Publicou em diversas revistas literárias, assim como em antologias, sendo a mais recente “Temporary Archives, Poems by women of Latin America”, ed. Juana Adcock e Jèssica Pujol Duran, ARC Publications, 2022, Reino Unido. Seus livros são: “O tempo é a ferida que goteja” (2009); “O álcool dos estados intermediários” (2009); “A silenciosa desesperação do sonho” (2010); “A grita. Reescrita de As Moradas, de Teresa de Ávila” (2011); “Inquietantes deslocações do pulso” (2012); “O canto dos manguezais” (2018); “Telemática. Reflexões de uma adicta digital” (2021); “LUCES ALTAS luces de peligro” (2022) e seus mais recentes livros co-criados com Inteligência Artificial: “Fosforescência tigra”, “Aire” e “Memorias de árvores” (2023). Ela é editora fundadora da Revista de Literatura y Artes LP5.cl e LP5 Editora, desde o ano de 2004. É co-fundadora da Furia del Libro (Feira de editoras independentes, Chile). Como editora, desenvolveu mais de vinte e cinco coleções de poesia, narrativa, ensaio e audiovisuais, publicando mais de 500 autores.
De “Recuerdos de la casa azul”, 1996:
-Dod:
Quando a noite assaltava a casa
Ela ficava calada
Amava o acaso
Sem vista
Sem olhos
Sem alma Permanecia intacta para o mundo
Era como um gato rondando a lua
O silêncio da baía
Reprovava desejos perdidos
Enquanto atirava lembranças no penhasco
De seu cabelo
Pedras de lua semeavam o rumor do mar
Magia estática
Objeto intangível
Duplo acerto do silêncio
Adorava ver a música que não ouvia
A da rocha e a do mar
Aquela que sai da voz noturna e palpita no coração
Música que a despojava de algo parecido com o abismo
Esse abismo que carregam os olhares dos
velhos
Na realidade, os sonhos estão vazios de calor
Cactos mudos e estéreis
No meio de um deserto de espinhos
Seres decadentes irreconhecíveis
Com movimentos indecisos
Esmagam o ventre
Semeiam nele um vento amargo
Chamado desejo
De “Pradera de masonite”, 2010:
XVIII
Eva: guardo o sabor da maçã em minha língua,
faço círculos concêntricos em teu ombro,
tenho um sabor cítrico em meus lábios,
afundo as mãos na areia como quem busca
respirar, descubro o calor do sol enterrado em minha
têmpora, vou para os lados do mundo, encontro um
ácido docíssimo e o bebo como um ébrio.
Vejo o sol e me deslumbro, me deslumbro de gozo,
entendo as consoantes pelos gemidos e uma
vaga-lume narra histórias em teu pescoço, me olhas
como se quisesse me dizer algo, mas nos lábios o sabor
da maçã não cabe e não podes dizer nada;
torno-me lasca, sou uma rajada de sol, nos olhamos
no espelho do mar, sobre suas marismas,
sobre suas ondas infinitas.
Estamos ensombrecidos pelas nuvens ressentidas
das unhas e nos encontramos novamente
no ranger dos lábios, nos ferimos,
eu digo que te amo, não ouves, respiras, tateias,
experimentas outros frutos.
Desvaneces em fios de prazer.
O oceano profundo de teus seios emite um mantra,
é suave como a neve, são a neve;
um rangido de portas te abre, enquanto
nas mãos alguns caranguejos esfregam o horizonte;
te vejo, afinal: durmo doente por ti, Eva.
Eva-música.
Para sempre tu, Eva
De “Sirena de Tule”, 2013:
-Anastasio Rigor:
O tempo é uma tempestade, diz o livro. A que tempestade se refere?
Tu, tão vasta, tão ampla, como uma égua; tu, tão sozinha; sempre com
a ilusão no ombro, suspirando murmúrios a toda hora, tecendo
afanosas preces a não sei que Deus. Como me lembro de ti, Rubi,
sem mencionar teu verdadeiro nome. O livro diz O tempo
mata sozinho e é uma tempestade, e diz muitas outras coisas, mas
quando o leio, só entendo minha tolice. Assim são todas as mulheres.
E a tolice se tornou real quando teu filho nasceu morto.
Aquela noite com chuva e lama interminável, toda a cidade se
perdeu em um buraco de chuva; o filho estava mal posicionado, já tinha sido
dito por dona Prude. Nada pôde ser feito; naquela noite roímos
os dedos das mãos enquanto os relâmpagos nos enchiam de
medo. Isso é o verdadeiro rancor, a verdadeira raiva, a verdadeira
ação do tempo.
Eu fiquei sozinho; não posso dizer como fiquei depois dessa
noite porque a pele me escama. Leio o livro, tuas memórias que
começaste a escrever em Tepozoco, depois de um banho quente. As
primeiras palavras escritas eram teu corpo e a água que te havia
banhado: Que venham as garças que o amor detém, que venham as
flores que ao olhar seduzem, que venham no ar açucenas amêndoas.
Mentira. Os versos mentem mal porque agora estás morta.
Depois descemos, subimos até o adro, vimos o ar transparente
do vale, vimos o grande senhor Xinantécatl sentado, observando seu
reino de neve e todo seu bosque verde; bebemos daquele ar e nos
sentimos bem.
A tolice nos matou, Rubi, essa tolice dos corpos quentes,
inflados de desejo; a tolice de lamber cada parte do corpo
como um par de cães no cio; a tolice de querer ser outros. O
livro termina dois dias antes da grande chuva e do trovão da montanha,
aquele que nos deixou sem nada.
De “El aceite de las nueces”, 2022:
O eco do vazio
Quanto tempo, meu querido Sandro! Todo esse tempo
olhando para você, comendo um espaço vazio como solução salina
à distância.
Dê-me sua mão divina.
Tempo resplandecente. Anel de ouro. Pérola que é como
reflexo do filho que perdi.
Sandro, criança, meu pequeno menino, tenho que contar que
sou outra, pois me detenho diante do perigo e penso em
mares cheios de peixes todos os dias: os ouço:
aplaudo sua sinfonia de coral.
Imploro a você, Sandro. Tenho que contar que depois de sua
partida, não posso dançar e não posso consumir o sol do meu
riso. Acredito que o amor me murchou e que o
agudo sexo das noites terminou por morder minha têmpora.
Tenho as rugas do peixe, as canas do Himalaia. Mas
mantenho seu aroma. Cuido de sua raça extinta e da infelicidade
que eu te infundi.
Hoje, as espadas estão adormecidas, frígidas. As
lanças pontiagudas já não matam de dor. Sou uma triste
alma montada no potro do silêncio. Filho meu,
morto de verdade, esfole meu corpo como um cordeiro
sacrificial.
Não quero mais ouvir. Amo o momento eterno desta tua
visita fantasmal. Desprezo teu epitáfio por ser um remédio
caduco e só te percebo para anunciar minha fusão com um
mundo alheio ao desejo, ao amor, ao riso e a toda alegria.
Sandro, cachorro, filho desta Galya velha, cuidado com os
cães que custodiam a noite eterna; vislumbra o alvorecer
de Orion; nutre teu novo sangue com a luz do rio de todas
as estrelas, alento infinito. Sopro. Nó em minha garganta.
Cubo de prata. Punhos quebrados.
Adeus, meu menino. Continue teu sonho de deus, enquanto eu,
Galya-mãe, estarei soprando as cinzas de todo
conflito e de toda luta guerreira contra o
sentimento encontrado do não amor, como remédio e
revanche de toda perda, de todo fantasma existente.
Jorge Arzate Salgado (Toluca, México, 1966) é Doutor em Sociologia pela Universidade de Salamanca, Mestre em Pesquisa e Desenvolvimento pela Universidade Ibero-Americana e Bacharel em Sociologia pela Universidade Autônoma do Estado do México. Ele tem uma trajetória artística como músico, poeta, ensaísta e gestor cultural. Como poeta, ele publicou os seguintes livros de poesia: “Canciones para los piratas ausentes” (Edições do H. Ayuntamiento de Toluca/Centro Toluqueño de Escritores, Toluca, México, 1992), que ganhou o Prêmio de Poesia do Centro Toluqueño de Escritores em 1992; “Recuerdos de la casa azul” (Consejo Nacional Para la Cultura y las Artes/Fondo Editorial Tierra Adentro, Cidade do México, México, 1996), que foi agraciado com o Prêmio Nacional de Poesia Joven de México Elías Nandino 1966; “Pradera de masonite” (Bonobos Editores/Ediciones del Bicentenario, Toluca, México, 2010); “Princesa de Cristal” (Los Poetas del 5 Editora, Santiago de Chile, Chile, 2011); “Sirena de Tule” (Secretaría de Educación del Gobierno del Estado de México, Toluca, México, 2013; segunda edição em 2021), fruto da bolsa do Fundo para a Cultura e as Artes do Estado de México em 1997; “Como hilo luminoso, el mar. Antología personal (1992-2010)” (Fondo Editorial del Estado de México/Colección Letras. Summa de días, Toluca, México, 2015); “19/09/17. Poema en tres actos” (La Colmena. Pliego de Poesía núm. 98, México, 2018); “Poemas de animales dulces y libidinosos” (Ediciones Letras de Barro, Puebla, México, 2021); “El aceite de las nueces” (Ícaro ediciones, Guerrero, México, 2021), fruto da bolsa do Fundo para a Cultura e as Artes do Estado de México em 2012. Alguns de seus poemas foram traduzidos para o italiano, romeno, mazahua e braille. Jorge Arzate Salgado tem divulgado intensamente seu trabalho, participando de recitais de poesia, tanto presenciais quanto virtuais, em diversos países, incluindo México, Espanha, Chile, Argentina, Bolívia, Colômbia, Guatemala, Romênia, Equador e Cuba. Ele é membro do Centro Toluqueño de Escritores A.C. (CTEAC), do qual foi Programador de atividades entre 1997 e 1998 e atualmente coordena o Ciclo de poetas Contemporáneos do CTEAC. Desde 1994, ele atua como professor na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Autônoma do Estado de México. Devido ao seu trabalho científico nas ciências sociais, ele é membro do Sistema Nacional de Investigadores de México (SNI), nível II. Sua página web é www.jorgearzatesalgado.com, e seu e-mail é arzatesalgado2@gmail.com.