LUÍS DE BARREIROS TAVARES
Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros – entre eles O Acto de Escrita de Fernando Pessoa e 5 de Orpheu (Almada – Amadeo – Pessoa – Santa Rita Pintor – Sá-Carneiro) – e com publicações em várias revistas. Vice-director da revista Nova Águia e membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor e colaborador regular da revista Caliban e Editor das edições-vídeo “Passante”. É jornalista freelancer e artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.
1. Sobre os poemas curtos
“Se não houver espanto, não há poesia”
(Ferreira Gullar)
“E, perante o triunfo da beleza, apenas abro, de espanto, os meus braços…”[2]
(M. T. R.-Leal)
Os poemas são apresentados por ordem cronológica, deixando a sequência trazer por si mesma os seus acasos de nexos e ramificações de caminhos diversos. Poemas breves, por vezes brevíssimos, chegando a duas palavras apenas: “Árida imagem” (poema VIII). A poesia é um lugar de poiso e voo livre do pensamento e da palavra.
Na sua organização cronológica, não organizados por temas ou palavras e pertencentes a vários cadernos, despontam no seu conjunto possibilidades de reflexão. Reflexão livre por virtude dessa disposição.
Na sua construção concisa, eles inscrevem-se numa linguagem poética onde o pensamento se pauta, por vezes, em palavras que ecoam o filosófico, o existencial: “Grande nada”, “O conhecimento da realidade”, “presença”, “ninguém”.
E, principalmente, o questionamento do pensar a palavra que desponta poeticamente como espanto[3]. Palavra frequente em Manoel Leal, como neste passo de um inédito: “Não abdiques, dá-me a tua mão (o calor calá-lo), perante o cavalo do espanto.” Abordagens não raras no poeta. Como em dois poemas ainda inéditos onde se diz: “Ser só é ser pessoal, / intransmissível, espacial em uníssono”; “Vejamos as coisas: em sua essência, / em sua absurda materialidade.”
A inquietação face à loucura perpassa toda a obra do poeta: “Ninguém descobriu ainda a matemática dos manicómios.”[4]
Também a dimensão erótica pontua alguns poemas: “Bebedor de nocturna e esquiva saliva, / tua boca principia quando me beija…” (V); “Acordar o gesto elegante de uma mulher: / seus seios são frutos que trinco suavemente.” (VII). O vocábulo “dia” surge em sete poemas, uma vez no plural. É a celebração do tempo no seu decurso mais imediato enquanto espectáculo dos sentidos: “Não sei o nome do dia / sei que límpido se perfaz e desenha” (XVII). E enquanto dias dos tempos da infância: “Aquele rumor antigo dos dias / Ei-lo no deslumbrado jardim da minha infância…” (XIII). Ou de outros tempos antigos, do imaginário e do sonho: “e o dia é uma visão antiquíssima…” (XV).
Luís de Barreiros Tavares – Alverca – 11-11-2021
2, Sobre a escrita e os manuscritos da década de 70
“Escrevo demorando-me nas palavras”
(Bernardo Soares, Livro do Desassossego)
“Ora esta escrita (errada? errante)
na página (sub)jaz; ora crepita na cripta do corpo
que no corpo da escrita se perfaz.”
(M. T. R.-Leal, A Composição da Presença, 1972)
Observemos a caligrafia nos manuscritos apresentados (Figs. 1, 2, 3, 4). Foi em toda a década de 70 – estendendo-se um pouco nas décadas de 60 e 80 – que o poeta adoptou exclusivamente esta letra, “semelhante à de imprensa”, como alguém disse. São dezenas de cadernos, alguns com mais de 100 poemas e prosas poéticas. A par de uma lentidão de escrita – só muito lentamente se escreve com aquela letra –, há uma espécie de tempo da palavra e para a palavra, para o movimento da sua inscrição. Manoel Leal leva ao ponto máximo a citação de Pessoa na escrita de Bernardo Soares (ver epígrafe). No entanto, Pessoa também escrevia rápido, por exemplo, no dactiloscrito e na pessoa de Campos: “Num jacto, à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem” (carta a Adolfo Casais Monteiro, Lx. 13-1-1935). Ou a caneta: “Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei / A caligrafia rápida destes versos, / Pórtico partido para o Impossível.” (Tabacaria).
Mas o que tem a ver aquela caligrafia de Manoel Leal com o dizer do poema? Ou “Esta caligrafia do grito – esta biografia ambígua do abismo”, como escreve o autor num texto em prosa poética de 1972[5]. Por outro lado, o que tem a ver essa sulcagem, esse traçar – grafar-gravar como inscrição de pura materialidade – aparentemente prévio à ideia, à idealidade e sentido do dito e do escrito? Embora os dois tempos e gestos pareçam cruzar-se. Será apenas a questão do metapoema, da metapoesia, da metalinguagem, etc.? Sobre o metapoema, leiamos este belíssimo passo que inicia um extraordinário poema de Ferreira Gullar (“Não-coisa”): “O que o poeta quer dizer / no discurso não cabe / e se o diz é pra saber / o que ainda não sabe.”[6]
Manoel Leal também escreve frequentemente nos poemas sobre o poema, e sobre a escrita do poema (ver, p. ex., a epígrafe acima), o metapoema[7]. Mas o que aqui nos interessa é algo mais e diferente. Deixaremos, no entanto, alguns pontos em aberto.
O tipo de letra é fundamental. Os seus efeitos e impressões são decisivos. A referência ao corpo na sua relação à escrita é central na poesia do poeta (veja-se de novo a segunda epígrafe). Mas o corpo, também, na sua dimensão erótica, por exemplo: “seus seios são frutos que trinco suavemente.” (poema VII).
Mas algo decisivo importa aqui observar. Ao escrever, Manoel Leal prime, imprime a letra, as letras. Elas vão surgindo separadas entre si. No papel vão-se construindo como palavras e versos: “Caracteres são dedos pois / descrevendo solitários ou frios / na lisura dum papel” (num poema ainda inédito de 1967). Mais, dir-se-ia que o manuscrito, tactilmente, afigura-se como um relevo de Braille no verso da folha (Fig. 5). Na frente da mesma, a escrita, materialmente, regista-se nos sulcos impressos no papel, como uma espécie de gravação (graphein, no grego, significa “escrever”). O poeta tacteia as inscrições. Ele vive e respira com os suportes materiais. Estes asseguram-lhe um vínculo ao mundo e à vida, mas também à dimensão do imaginário. É preciso que haja uma tactilidade e corporalidade a par do olhar que vai lendo-escrevendo-descrevendo: a mesa, o papel, o punho, a pele, a caneta.
Estes poemas formam escritos a caneta esferográfica, cuja ponta é mais incisiva e dura do que o bico de caneta de tinta permanente . Cinzel ou buril: “esculpe-se a palavra. forma-se o poema.”[8] De facto, o autor adoptou várias caligrafias e mais tarde usou caneta de tinta permanente, menos viável para aquele tipo de inscrição.
É certo que o interseccionismo do extraordinário poema “Chuva Oblíqua” (1914) de Pessoa nos dá uma outra visão: “E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena… // Ouço a Esfinge rir por dentro / O som da minha pena a correr no papel”.[9]
Mas em Manoel Leal há a pele e o papel. Escutemos este passo de um poema de 1970, onde se lê “intersecção” (influência muito provável de Pessoa), publicado num outro artigo em “Triplov”: “Cópula vertical de vogais e consoantes no papel na pele / intersecção intensa de passos e pássaros / o poema”[10]. “As recordações que placidamente recortamos / como em escamas de papel, / o apelo, a pele de quanto interdito recordamos, / nos lábios interrompidos do tempo, expele […]”, num poema de 1973, publicado numa edição crítica em “Pessoa Plural”.[11]
A voz, o pensamento e o gesto fazem corpo com o acto de escrita como poema. Mas o não-escrito[12] e o não-dito, ou o pré-escrito, das incisões, das cesuras na própria superfície de inscrição, numa espécie de génese e gravitação da letra, parecem ressoar um pré-sentido. Um escrever do escrever, digamos assim. Um desfrutar da escrita como tal (“esse ofício. fulcral. o de escrever. ainda aflora.”). Solo onde poisa e releva, nesse crivo, o sentido, o escrito e o dito do poema pela palavra, pelo nome.
Concluindo com um poema inédito, extra e não curto, de Manoel Leal:
A página de papel lisa
um sistema de sensações impossível
a faca de quem desliza
num mar roxo de pele.
E, ferindo a claridade,
a palavra pura pisa
o breve viver o barco branco
a fábula perversa essa regressa.
- T. R.-Leal – Lx. 24-8-88 – caderno Declive Amoroso
Luís de Barreiros Tavares – Alverca, 11-11-2021
18 poemas curtos – Inéditos de Manoel Tavares Rodrigues-Leal
“Cera,
lacrar o não-escrito,
que adivinhou
teu nome,
que codifica
teu nome.”
(Paul Celan)[1]
“Em busca da palavra perfeita que não há”
(M. T. R.-Leal)
I
A quem ofereci a rara rosa petrificada.
Não foi ninguém: afluente da vida que desemboca nos canais do grande nada.
Lx. 13-1-77 – caderno Os Passos do Amor
II
A quem ofereci a rara rosa petrificada
Não foi ninguém: afluentes de várias vidas que desembocam nos canais de carne e nada.
Lx. 13-1-77 – 2ª versão de I – caderno Os Passos do Amor
III
Cada dia intacto é nua metamorfose.
Lx. 30-4-77 – caderno A Secreta Primavera
IV
As pupilas da tarde nos iluminam
s/data – 1977 – caderno A Secreta Primavera
V
Saudade
Já teu corpo oscila e rumoreja…
Bebedor de nocturna e esquiva saliva, tua boca principia quando me beija…
Lx. 25-6-77 – caderno No Reino do Rigor
VI
O conhecimento da realidade tem de ser impossessivo: como no amor.
Lx. 21-7-77 – caderno Paisagens de Água
VII
Acordar o gesto elegante de uma mulher:
seus seios são frutos que trinco suavemente.
Cascaes – 10-8-77 – caderno O Novo Dia é recente. Caderno dedicado a Rimbaud
VIII
Árida imagem
s/data – 1978-79 – caderno Aqueles Dias Imperfeitos
IX
Ninguém descobriu ainda a matemática dos manicómios.
Lx. 11-4-80 – caderno O Comércio do Amor
X
A lonjura do mar equidistante do corpo
23-4-85 – caderno Memória do Mar
XI
Conversei? Não!…
Desaguei nos dons dos outros…
Lx. 16-12-86 – caderno Percurso
XII
“O poeta”
Em seus olhos infelizes
morrem, do dia, os infinitos matizes…
5-6-85 – caderno Memória do Mar
XIII
Aquele rumor antigo dos dias
Ei-lo no deslumbrado jardim da minha infância…
Lx. 31-12-86 – caderno Percurso
XIV
Mas,
a mão antiga do instante pousa
pousa rente ao muro do dia…
Lx. 4-1-87 – caderno Percurso
XV
Não sei saborear a solidão
e o dia é uma visão antiquíssima…
Lx. 23-7-92 – caderno O Uso do Cio
XVI
A juventude jorra em mim e no dia
(e eu penso nos joelhos) o puro prazer da alegria
Lx. 27-7-92 – caderno O Uso do Cio
XVII
Não sei o nome do dia
sei que límpido se perfaz e desenha
Lx. 13-11-92 – escrito na Biblioteca [Biblioteca Nacional onde o poeta trabalhou] – caderno A (Des)construção da Fala
XVIII
Sob o sol. Oscilo.
De penumbra. Ou presença.
Lx. 26-12-92 – (à Maria João, com saudade) – escrito na Biblioteca [Biblioteca Nacional onde o poeta trabalhou] – caderno A (Des)construção da Fala
Manuscritos
“esse ofício. fulcral.
o de escrever. ainda aflora.”
(M. T. R.-Leal, A Duração da Eternidade, 2007)
Notas
[1] De um poema de Paul Celan. Tradução Gilda Lopes da Encarnação, in Paul Celan, Não sabemos mesmo O que Importa – Cem poemas, Lisboa, Rel. D’Água, 2014.
[2] De um poema inédito (1981).
[3] Noutro plano, com Platão e Aristóteles o espanto inaugura o sentido do questionamento enquanto Filosofia.
[4] Sobre esta questão, nos planos da obra e da biografia, veja-se os nossos texto e poemas de Manoel Leal em https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:1117613/
[5] https://revistacaliban.net/o-espa%C3%A7o-da-aten%C3%A7%C3%A3o-an%C3%A1tema-poema-p%C3%B3stumo-manoel-t-r-leal-fdd2b28fdfcc
[6] Para a leitura do poema inteiro de Gullar: https://www.pensador.com/frase/NTUxMzE0/
https://escrita-fone.blogspot.com/search?q=Fernando+Pessoa%3A+A+escrita+e+a+terra+de+ningu%C3%A9m.
Textos incluídos em Luís de Barreiros Tavares, O Acto de Escrita de Fernando Pessoa, DG Edições – MIL, Lisboa, Setembro de 2015.
[8] Do seu livro em edição de autor A Imperfeição da Felicidade, 2007.
[9] http://arquivopessoa.net/textos/850
[10] https://triplov.com/22-poemas-ineditos/
[11] https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:1117613/
[12] Releia-se a epígrafe de Celan: “Cera, / lacrar o não-escrito, / que adivinhou / teu nome, / que codifica / teu nome.”