Planetarium

 

NICOLAU SAIÃO


Na Antologia “Poemas sobre Hiroxima” de Carlos Loures, recentemente falecido, e Manuel Simões. Segunda edição este ano, 2022.


 
Quem sabe se nos faria falta
 
um vulto bexigoso. À beira-mar com
 

lembranças de Agosto, perfeitamente

inútil. Uma rua incaracterística, a silhueta

dum arbusto raquítico. E lembremos também

Copérnico, o que morava

en un lugar muy frio del Norte, cerca

del Mar Báltico, com sus

ojos sin duda azules que miraban

com frecuencia el cielo; furtivamente num

recanto da paisagem, o brusco cessar-fogo e

a velha gravura das casas uma a uma

destruídas: cerejeiras, murmúrios, os prestígios

do lume, a maré selvagem entre

os blocos de granito. Mortos

biologiquement recommandables. Como

apartar de mim posso este perfil, esta

árvore fantasma sur une butte legère au milieu

des vignes, o recorte exacto dum

mármore florido sobre a mesa: pequena

figura simbolizando Vénus ou Frineia? Agora

a areia entrou em mim, cinzenta

e queimada como os troncos das oliveiras na vertente sul

de Monforte: a horta e o mundo. E de ti, Hiroxima

edifício implacável, a mão nos prende

onde Marte pontificou: um rabisco

indecifrável. Transcrevo, com

minúcia: “ António S., cidadão de Estremoz, não grama

cabrões mas gosta de putas. Telefone número tal ”. Uma

parede lusitana como tu, Japão

jamais tiveste. Portugal, minha

retrete ligeiramente lírica,  Lisboa

terra de lobos e galegos, macabra rota

onde África e Europa se contemplam! Nesse dia, Hiroxima

desse Verão abominável, repleto à mesma hora de

frutos e de escombros, um militar octogenário era

levado frente a testemunhas, algumas delas

antigos internados de Ravensbruck. Diria depois

maitre Isorni, seu defensor, que de facto no tribunal

“o único ouvinte atento, do princípio ao fim

foi o Marechal”. Mas as

palavras transfiguram pouco a pouco

a sua penumbra própria e é

uma face tremulante que me cola pálpebras e retinas, um

lento arrepio de horror. Fevereiro, meu mês

febril e irrequieto. Já

Caius Julius Caesar olhara com espanto (se

espanto lhe era permitido) essa

curiosa estação de ventos e cadáveres. Crepuscular

um ponto, naquela hora

nocturna – o nascimento meu, o cogumelo

da bomba antes tombada, tortuosa

e exígua. Meus anos

paralelos aos anos de criança sem

lábios e pernas, modelos puros

geométricos modelos em

unidades de radio de la orbita

terrestre: claridad y sencillez. Rosas, crisântemos

me oferecerão um dia, numa manhã talvez

que quero distante – a porta lentamente entreaberta

para que alguém nos chame, de onde

nada se vê nem ouve. Hiroxima, a clara

presença de ameixas nos meus campos de Arronches

– quem te a não consentiu? Em latim se diz

quomodo vales, locução liminar de

desprezo de habitante para habitante, cidade

de losangos e presságios: doce cidade

inteiramente ardida.

 

Que ninguém se debruce

intensamente sobre a metamorfose

des couleurs: móveis e

tecidos luminosos, tudo o que está

sur le blanc ciré des murs, a sua

subtil e fresca agonia. As madeiras da sala, as

recordações: Ana, Manuela, Inês e ainda

o escalpo de um velho vulto

abatido entre a cozinha e a sala de jantar. Mas isso

foi há muito, agora

nem amor nos socorre, pedra arcaica

sobre a cómoda que um tio louco nos doou. A ti

Hiroxima me encomendo. Alma e vela

barco veloz, os rostos pouco a pouco

voando, cinza e carne funérea. No

Luxemburgo de repente lembrei

imagens e ladainhas: em Portalegre vi

o filme interrompido, mon amour, por assobios

gargalhadas, traques e

um olho deitado abaixo ao parceiro do lado – razão

minha de assim seguir andando livre e altivo

pelas ruas de tantos anos.

                                                                                                                

Sim, existe

a originalidade lusa na tradição canalha: touros

de lide de bom peso, figuras de Le Nain, quando

o entardecer da plaza cai na nossa

cabeça: pensáveis vós, portuguesinhos, que tínheis

os melhores matadores? Mas agora

este nojo que conservo no peito é como um

pássaro apodrecido – e todavia

tanto pássaro que existe, do mocho ao bico-grosso

do pintassilgo verde ao tentilhão – é, digamos, um verme

americano. Um verme de Oriente e Ocidente. Copérnico dissera

que podia prescindir dos cinco círculos. Amor

façamos-lhe a vontade. Na arena afinal luzem no sangue

bandarilhas e estrelas. Quando

 

ouvirei outra vez a tua voz, a sombra

dum ciclo de minuto a minuto abandonado

sucesión de los dias y las noches

enigma que se alcança

por uma virilha, uma anca, uma

côxa lambida?

 

nicolau saião