Entre papéis, fotografias, recortes de jornais, testemunhos de uma ordem plástica de outrora, a notícia súbita de uma exposição de Helena Justino, memória isolada dos tempos de Angola, de Luanda, e na deriva pelas coisas envolventes, artistas e também poetas, ou o lugar das histórias do interior na hipótese sucinta dessa frase emblemática – «adeus, até ao meu regresso» – tudo isso entretanto publicado com o rosto frágil da pintora, traz outra vez até à minha sede aquela pintura lírica, em parte aprendida no Porto, confrontada na altura com os sinais enigmáticos de uma África ensurdecedora. Digo isto assim, num só fôlego, não para reivindicar a minha intervenção nesse facto jubiloso, em 63, mas para traçar bem a distância que separa e afinal repara os significados de um encontro, a verdade desta presença medida e espiritual a que Helena chama «deambulações». São deambulações por caminhos afinal conhecidos, fruto de muitos saberes, passos atrás de passos, em números romanos, marca que distingue a verdade temporal, técnica expressiva de cada pintura, cada uma delas diferente das outras na semelhança de todas. E essa semelhança, marca subtil da própria identidade da autora, vive por enquanto através de organismos concretos e sugeridos, na demarcação veemente de uma geometria traçada a branco, quadrado ou planta do lugar que acolhe o ritual pictórico, abrindo aqui e além presumíveis entradas, portas capazes de descomprimirem a pressão esmagadora das matérias, enfim molduras conceptuais que explica no espaço a marcha em sentidos opostos das formas plásticas – mesmo se se tomar em conta a cruz cósmica dos quatro pontos cardeais e algumas constelações além. Porque as obras da série «deambulações» parecem oferecer-se ao espectador apenas de frente, parietais e alinhadas na vertical. Elas são, contudo, fruto de dois planos que se cruzam ilusoriamente entre si, respeitando de igual maneira a perpendicularidade que lhes é intrínseca, e propondo também ao nosso olhar a hipótese perceptiva do quadrado limite, projecto instalador no território, atravessado, para cima, para baixo, para os lados, ou de diante para trás e vice-versa, por corpos inomináveis, matérias, formas sugeridas, falsos efeitos de trompe l’oeil. Dialogamos assim com uma pintura de grande subtileza espacial, além da nobreza técnica que reitera vários saberes, e cuja profundidade lírica se concentra igualmente numa ordem cartesiana. Dialogamos também, dentro e fora da própria razão, com volumes simultaneamente concretos e virtuais, como se imitassem a preparação inicial dos suportes e os diluíssem na aparência do claro-escuro, entre a força desse valor e a realidade textural mais encoberta.
Desde a proposta «Sei um ninho», aliás muito ligada ao seu período criador no estrangeiro, conseguida internacionalização que haveria de superar, na obra, os habituais ostracismos nacionais, Helena Justino como que retoma o seu mistério inicial, o balanço entre a força, a claridade, a sombra e o sentido táctil da macieza e da aspereza, a ordem submetida ao convívio com diferentes devaneios nocturnos. Entre este ponto e certos limites já longínquos, a pintora reivindica para o seu modo de formar origens temáticas, ou temas aplicados posteriormente às formas plásticas apresentadas, bem como a ideia de mensagem, no sentido próprio da comunicação com os outros pela linguagem pictórica – a par de uma frequente pontuação africana indicadora de apelos por aquelas terras efectivamente mágicas ou encantatórias. A autora não deixa de referir, neste conjunto de autoavaliações, dois sentidos fundamentais do seu trabalho – o factor integrante da projecção poética, o qual arrasta a vibração lírica do próprio discurso, e o factor de reordenação dos sentidos coordenando as expectativas abertas.
Na fase dos compromissos inocentes e altruístas, Helena aflorou o neo-realismo; mas, a breve trecho, pôde contar com fortes influências de Resende e de Armando Alves, seus professores, além de outros, na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. E assim os estratos das aprendizagens de então, envolvidos por memórias de outros trabalhos de risco apurado ou solto, evoluíram em parte pelo neo-figurativismo, circunstancialmente na moda, e daí para um entendimento mais global da pintura enquanto forma de um importante entrosamento final, com o sentido principal de se reconhecer sobretudo europeia. O que importa para uma cartografia própria e livre, mas na lógica dos contextos vividos e da cultura contemporânea geralmente considerada. Portugal, os seus artistas, as deambulações de muitos deles, acabou integrado apaziguadamente num ecletismo bebido no exterior, reelaborado aqui, embora se possa afirmar que, entre nós, as práticas do domínio das artes plásticas não reflectem apenas influências diversas e alheias, pois qualquer avaliação demorada e justa nos permitirá encontrar nas artes e nas letras factores integrantes de uma natureza nostálgica, de teor neo-figurativa ou do âmbito da abstracção lírica.
Helena Justino sobretudo no interior desta dicotomia.
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