MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Uma colagem de Elisa Scarpa é a base da capa deste último livro de poemas de Maria Azenha, subordinado ao título de A loucura das facas. Título agressivo, a implicar perigo de morte, não tanto por facada, isso é representação simbólica, antes por doença, a provocada pelo SARS-Cov-2, e esta nota não pretende ser interpretação; de facto, em nota de fim de livro, a Autora deixa expresso que este conjunto de poemas foi elaborado durante o confinamento. Temos assim uma névoa de revolta contra Deus, um teto baixo de nuvens negras a pressagiar desastre, uma atmosfera de tragédias à espreita ao voltarmos a página. Tragédias e situações do concreto que a poesia absorve como tal, como poesia, mas na qual se rasga uma aberta para contar. E é desta vontade de absorver histórias nos versos que me vou ocupar.
A short story é hoje novidade como micronarrativa. Na verdade sempre existiu em nós a vontade de síntese, de condensar em pequena forma, desde o soneto (pequeno som), ao haiku, enfim, exemplificação do conceito de que o mínimo é o máximo, como o minimalismo celebrizou. Esta maneira de apresentar algo como um transgérnero fica patente logo à entrada do livro, quando as palavras desaparecem, ficando apenas um sinal, marca de campa, num seriado vertical que dá entrada no livro ao poema visual. Tem por título, precisamente, “Sars-cov-2”, e é a mais cabal demonstração da micronarrativa. De facto, o que podemos fazer, no caso, face ao visível? – Contar, claro, aritmeticamente falando. Mas não é preciso contar em sentido matemático para sermos confrontados com o contar narrativo, essa história que nem precisa de palavras para exprimir o luto, a ideia de cemitério, a dor de quantos perderam filhos, pais, amigos, numa doença dita sindemia, isto é, uma doença contagiosa provocada pelo nosso modo de vida que atenta contra a Natureza e discrimina socialmente. O facto leva a doença a atacar sobretudo aqueles que não têm meios para fazer confinamento, e nem sequer para lavar as mãos com a frequência aconselhada pelos serviços de saúde. Enfim: a Covid-19 é uma doença que vitima sobretudo os mais pobres. Vejamos então esse poema visual, aberto às nossas próprias pequenas histórias, pequenas na forma mas grandes na densidade emocional.
Esta saída da poesia para outros géneros não é incomum em Maria Azenha, excelente poeta com uma vertente muito próxima da rua, da realidade quotidiana, do que acontece aqui e ali, seja o mendigo da esquina, seja uma ida ao supermercado. Num estilo muito pessoal, um lado da sua obra pode ser considerado de combate, combate político contra a injustiça. Aliás, um dos poemas do livro, “Poeta à civil”, não deixa dúvidas quanto à missão, ou mesmo profissão de soldado assumida pela Autora.
Os elementos de micronarrativa são transmutados pelo registo lírico, em geral num enquadramento surrealista. Por vezes, como acontece n’ A loucura das facas, a short story torna-se mais evidente, talvez pela frequência das ocorrências. Vejamos outro caso, em que se verifica a transfiguração em registo surrealista, mas cujo ponto de partida é uma singularidade do quotidiano, uma notícia de crime. O homicídio implícito desencadeia toda uma investigação policial na nossa mente, uma grande narrativa, aqui condensada em sinais mínimos. Caso criminal que ultrapassa, claro, o fait divers, para solicitar outro tipo de análise.
Túmulos sem mármore
Cabeça de mulher encontrada dentro de saco de plástico.
Saco de plástico encontrado no bolso de um homem.
Esse homem outrora escreveu uma redação
com uma frase
a frase foi encontrada na barriga da mãe.
pg.53
Em princípio, o conto e o romance, além da narrativa, caracteriza-se ainda por duas grandes formas, a descrição e o diálogo. Implícito ou explícito, o diálogo aparece com abundância na poesia de Maria Azenha. No caso de “A porta”, em termos literais, o falante é a porta. Uma porta com cabelos, que sai da parede, e o esboço de narrador designa por “mãe”. Outra história a contar, e que talvez deva ser contada, com esta temática quente, a da mulher com filhos.
Como habitualmente, Maria Azenha oferece-nos um belo livro, cheio de segredos, denso de afetos, por isso excelente para nele a exegese se comprazer em boas descobertas. A primeira delas, quanto a mim, é a persistência da temática materna, que se sobrepõe à da sindemia. Ficam mais três poemas, para fruição nossa e eventual comprovação da leitura efetuada.
A porta
O meu cabelo cresceu, diz a porta.
A porta cresce com o cabelo.
O cabelo cresce com a porta.
Durante a noite o cabelo tapa-lhe os pés.
Ninguém sabe o que os pés fazem lá dentro.
A porta com o cabelo caído pelas costas
está na estação certa.
A mãe sai da parede limpa os olhos
com uma canção de mel.
Penteia os cabelos negros da porta
com um pente longo de neve.
pg.57
λ
Herança
A cadeira herdada da mãe é uma triste herança
que não tem culpa de nada
a filha
pálida de medo
ajoelhada
passeia a cadela
até matá-la.
pg.63
λ
No chão do medo
Em criança tinha muito medo da morte.
Agarrava-me às saias de minha mãe e escondia os olhos.
Esperava assim que ela se fosse embora
E nunca mais me voltasse a procurar.
Agora, à noite, os relógios
acordam a transpirar de medo.
pg.65
λ
O poeta esconde a mão
O que é uma árvore?
É Nossa Senhora vestida de verde.
De que cor é ela?
É verde. E amarela.
O que é uma mulher?
É a lava do infinito.
E um telemóvel?
É o eco duma toalha de prata.
O que é a Noite?
É um verso do Caos.
Quem é Deus?
Um músico obcecado pelos séculos.
Quem é o teu irmão?
A branca de neve vestida de candelabro.
Onde fica a Europa?
Nas escadas do metro.
[…]
MARIA AZENHA
A loucura das facas
São Paulo/Pontevedra, Ed. Urutau, 2021