A.M. GALOPIM DE CARVALHO
Deixei passar o Dia Mundial da Filosofia e, ao ler agora um texto de Helena Damião, de 16 de Novembro, alusivo à efeméride, parece-me oportuno deixar aqui algumas reflexões em torno deste tema.
O pensamento, todos sabemos, é um produto imaterial do cérebro e o cérebro é matéria, é oxigénio, hidrogénio, carbono, azoto e umas pitadas de outros elementos químicos Não tem dimensão física. Não tem volume nem massa, nem peso, nem cor, não é quente nem frio e não ocupa espaço. Para ele não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras materiais. É ubiquista, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, aqui e nos quasares mais longínquos, nos confins do Universo, a milhares de milhões de anos-luz.
Não surgiu da noite para o dia, por obra e graça divina. É o culminar de uma evolução da matéria surgida com o começo do Universo, há cerca de 13 800 milhões de anos.
O cérebro, cuja estrutura vai sendo a pouco e pouco desvendada, adquiriu, na espécie humana, complexidade que lhe permite pensar, criar conhecimento. Feito dos mesmos átomos do universo que conhecemos, o cérebro humano, aceite como fruto dessa evolução, além de coordenar toda a actividade vegetativa do corpo em que está inserido, é matéria que atingiu o superior patamar do pensamento, criando e combinando ideias a partir das percepções que os sentidos lhe fornecem do mundo físico que o rodeia.
Através dele, o homem adquiriu capacidade de intervir no seu próprio curso e no da Natureza que o criou e lhe permite viver, seguindo por caminhos ditados pela sua imensa capacidade de decisão.
Na sua possibilidade de obter conhecimento, de deduzir, inferir e de o transmitir, o cérebro humano, surgido à superfície da Terra, é a expressão mais complexa de uma dinâmica própria da evolução da matéria, na qual foi consumida a totalidade do tempo do Universo, os ditos cerca de 13 800 milhões de anos.
Pelos testemunhos que deixaram, sabemos, sem sombra de dúvida, que os nossos antepassados pré-históricos exerceram actividade psíquica, ou seja, que pensaram. Se tivermos em atenção a evolução do ser humano, desde o mais antigo primata, até ao “Homo sapiens” actual, passando pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, as perguntas que se ocorre fazer são:
– Em que patamar evolutivo da hominização surge o pensamento mais elaborado do que o dos animais vulgarmente tidos por irracionais?
– Foi no do “Neanderthal”, aparecido há umas centenas de milhares de anos, ou foi só no do “Cro-Magnon”, que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?
Cingindo-nos ao “Homo sapiens”, a Pré-história ensina que, ao longo da sua evolução física e psíquica, este nosso antepassado observou, experimentou e estabeleceu relações de causa-efeito, transmitindo aos descendentes o saber que foi acumulando, servindo-se para tal da linguagem de que dispunha, de início o gesto e, mais tarde e progressivamente, a fala. Fez tudo isto e muito mais antes dos sumérios terem iniciado a arte de escrever, há cerca de 5000 anos.
E foi só, a partir do momento em que passou a viver em grupos progressivamente mais alargados, que se deparou com questões associadas aos valores morais, estéticos, políticos e religiosos. Foi nesta caminhada que surgiram os primitivos filósofos, designação genérica pela qual são habitualmente referidos matemáticos, geógrafos, historiadores, astrónomos e outros pensadores desse tempo.
Foi o confronto entre a realidade que se lhes deparou e as ideias que, a partir dessa realidade, foram formulando, que conduziu o pensamento no caminho de uma ciência embrionária que, nessa fase, se confunde com a filosofia, no sentido de interesse ou preocupação pelo saber. É nesta fase que a filosofia ganha o estatuto de “mãe de todas as ciências”. Foi a admiração e, por vezes, a perplexidade decorrentes de tudo o que os sentidos traziam ao seu conhecimento, que desencadearam neles esta atitude mental que está na base do maravilhoso edifício do conhecimento científico e tecnológico que temos ao nosso alcance.
Certos historiadores, classificados por alguns como “orientalistas”, defendem que a filosofia grega teria sido herança e posterior desenvolvimento de uma sabedoria vinda de povos orientais. Tem havido controvérsias sobre a origem desta forma de organização do pensamento, se na Grécia, se em civilizações orientais mais antigas, na Pérsia, na Índia, na China…
Actualmente parece haver unanimidade em considerar a Grécia como o berço da filosofia, o que parece ser confirmado por estudos recentes, com ênfase nos arqueológicos.
Terá sido, então, que foi entre os gregos que começou a audácia e a grande aventura do pensamento. Terá sido no decurso do século VII a. C., com o desenvolvimento e progresso nos trabalhos diários, que alguns gregos começaram a esboçar explicações racionais que foram conduzindo à progressiva rejeição das explicações míticas da realidade.
É hoje consensual que a filosofia, como superior elaboração do pensamento, nasceu da recusa ao carácter sobrenatural dos mitos, que então dominavam as crenças, não só da sociedade grega, mas de toda a Ásia Menor.
A passagem de uma mentalidade fundamentada em crenças de carácter religioso, a uma outra, assente no raciocínio, marca, pois, o início da filosofia.
A filosofia surge, assim, como uma espécie de rompimento com a visão mítica do mundo grego. Enquanto que os mitos não dispunham de qualquer suporte racional, a filosofia inaugurava o discurso abstrato e universal, amparado na reflexão e argumentação, formulando concepções do mundo isentas de contradições e imperfeições no que respeita o raciocínio lógico.
Ao contrário da religião, baseada na fé, que não contesta, respeita e, praticamente, não se afasta da tradição e dos textos sagrados, a filosofia serve-se exclusivamente da razão para aceitar ou rejeitar as teses que se lhe deparam.