PEDRO ANDRADE
A VANGUARDA FALA POR SI

Pedro de Andrade, sociólogo, é um dos nossos colegas no CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Aí lidera dois projectos importantes: "Literacia científico-tecnológica e opinião pública: o caso dos consumidores dos museus de ciência" e a revista "Atalaia-Intermundos". Que ele está longe de se confinar a estes dois tópicos, é o que vamos ver.


ESTELA - Pedro, antes de nos termos encontrado no CICTSUL, eu conhecia-te de outras paragens. Tinha de ti a ideia de um desconstrutor de utilidades, algo à maneira de Duchamp, não por causa do ready made, porque tu constróis em vez de usares o já feito, mas porque construíste aparelhos desinvestidos da sua funcionalidade normal. Corrige-me se estou esquecida: na "Alternativa Zero", por exemplo, apresentaste uma máquina para ver filmes a correr de trás para diante...

PEDRO - Essa desconstrução de utilidades de que falas resumiu-se, para mim, a um percurso em que a minha alternativa foi, por assim dizer, alternar entre várias actividades possíveis, aquelas que podia ou sabia fazer melhor do que outras. Todos nós possuímos, de uma maneira ou de outra, mais tarde ou mais cedo, alguma coisa que sabemos fazer bem, aquilo que chamaria uma ‘Arte Nativa’. A arte nativa é, pois, uma actividade que coincide com a natureza de cada um de nós. Esta competência individual funciona, muitas vezes, como uma alternativa à arte-nativa dos outros, ou mesmo trabalha enquanto diferença em relação à nossa eventual segunda ou terceira arte-nativa. Assim sendo, e desconstruindo o termo ‘alternativa’, uma arte nativa de uma pessoa desvela-se como que uma espécie de alter-nativa ou alteridade às artes nativas dos outros ou às nossas. Isto significa que as coisas, na sua própria essência, são alternativas às restantes. Nesta ordem de ideias, a exposição Alternativa 0 foi, a meu ver, uma fusão abrangente de alternativas mais particulares. É preciso encontrar essas artes nativas plurais e polifónicas no fundo de nós próprios, na nossa raiz, mas sem patinar nelas. Dito de outro modo, as artes nativas são os nossos fundamentos sem fundamentalismos.

Mais concretamente, no meu caso, passei pelas seguintes artes nativas alternas, ou seja, as actividades diferentes entre si mas coincidentes com a minha natureza profunda. Quando estava a adolescer, ocupei-me a fazer Arquitectura desde os 17 anos até aos 20, na ESBAL e no Istituto Politecnico di Milano (Itália), paralelamente à Pintura, Escultura (também na ESBAL), Literatura (IADE), Cinema (IADE), Teatro (IADE e Teatro Primeiro Acto em Algés), e Música (canto no Coro Universitário de Lisboa, guitarra clássica na Academia de Amadores de Música, aulas de composição dodecafónica com o Jorge Peixinho).

Depois do ano em que estive em Itália (1971-72) a estudar urbanismo, fui para Paris, onde, na rodada seguinte e alterna de vida, até 1977, tirei uma licenciatura de Sociologia, em que, desde o primeiro ano, para além das disciplinas sociológicas, tinha aulas de opção em Arte, Música e Literatura no computador, quando ainda se usavam cartões perfurados e ainda não existiam micro-computadores, mas apenas os mainframes e os mini-computadores, sendo uns e outros gigantescos em relação aos micros de hoje.

Essas experiências polifónicas de aprendizagem foram complementadas pelo meu ingresso na Paris Film Coop, cooperativa de cineastas e artistas underground, onde conheci o Lyotard ainda do Discours /Figures e ainda não o da Condition Post Moderne de 79.

Aí também produzi (1975) o 'Cinema Sabotado Espacial' ( ver a figura acima, que é um extracto do Catálogo da Paris Film Coop, um dos documentos indispensáveis para a arqueologia dos computadores e do ciberespaço). Tratava-se de uma operação de intervenção e invenção estéticas que visava minar a projecção temporal-sequencial-tradicional do filme, territorializando-a em múltiplos espaços textuais de escrita e de leitura artística. Para isso, construí-o a partir de colagens de segmentos de película, em ângulos de 45º, 90º, etc., ou em múltiplas direcções. Desta forma, escrevia o filme segundo regras de montagem novas. Quanto à leitura do filme, o ‘espectador’ percorria-o sem passar necessariamente por um início ou por um final, mas escolhendo os trajectos do seu olhar aleatoriamente, pelos vários fotogramas (imagens da película). Um dos efeitos conseguidos nessa leitura era a sobreposição física, em ‘espaço real’, das imagens de dois segmentos de película. Assim sendo, a continuidade temporal enriquecia-se com a contiguidade espacial, o que é impossível num filme convencional. Estes atalhos de leitura funcionavam como uma espécie de dobras do tempo einsteiniano, já que a curvatura do espaço e do tempo do filme, derivada dos desvios e nós da película que engrendrei na montagem, permitia a passagem, em ‘tempo real’, entre os vários presentes e passados da narração.

O cinema espacial definia assim uma temporalidade de leitura já não cronometrada nas duas horas regulamentares em sala própria, pelo projeccionista e pela empresa de exibição. Pelo contrário, o tempo de visionamento espacializava-se, isto é, ‘caminhava-se’ literalmente pelo tempo de leitura do filme. Igualmente, o espaço de visionamento temporalizava-se de uma nova maneira, os espectadores já não estavam sentados a comer pipocas, mas, através dos seus passeios exploratórios por todos os ângulos e pontos de vista desta escultura fílmica, tomavam a direcção do seu próprio tempo de leitura. Sem que o termo 'hipertexto' estivesse divulgado em 1975, este anti-cinema comportava-se um pouco como uma transtextualidade (Genette) essencialmente de tipo hipertexto (organizava-se como uma rede interactiva - se bem que ainda não digital - de relações e de circulações de sentido). Para além disso, mostrava-se também paratextual (introduzia a outros fenómenos estéticos e vivenciais, como o espanto diante de um objecto quotidiano, o filme, assim irremediavelmente sabotado); ou arquitextual (comprometia as vetustas classificações dos objectos e processos artísticos e segregava novas tipologias estéticas). Para além disso, um tal filme espacial apartava-se da noção unidimensional do filme, redimensionalizando-se em múltiplas projecções e em clones de si mesmo. Este último conceito foi ampliado no termo ‘clonação / clonagem social’ em 1997, no fascículo 3 da revista Atalaia, p.10, publicação que tu e o José Augusto Mourão também dirigem hoje. De um modo geral, um relato pormenorizado destas reflexões pode ser consultado no mesmo número, na p.112.

Neste balanço e link contínuo entre a Sociologia, a Estética e a Arte, em 1976 construí um aparelho electrónico, o ‘Cinema-Corpo’, que produzia sons e imagens sem a mediação da mão - que ainda é necessária em qualquer vulgar instrumento de música ou numa câmara de filmar ou de video - mas apenas com a humidade, a temperatura do meu corpo, que se conectava directamente aos fios da maquineta, através da boca e saliva, ou da humidade dos sovacos (lavados antes de experimentar a máquina, senão era um chinfrim de morrer, que ultrapassaria largamente o limite dos decibéis da poluição sonora ...). O som assim conseguido, produzido pelos meus fluidos corporais e desejantes - sem a tutela da Harmonia Clássica ou Dodecafónica ocidental, ou mesmo de Xenakis ou Pierre Boulez - ia desde o Dó ao Sol # (sustenido) neste primeiro aparelho. (ver as 4 próximas figuras abaixo, sendo a primeira igualmente retirada do Catálogo da Paris Film Coop, na sua segunda versão de 1976).

Esses cinema e música somáticos e rizomáticos, já que utilizam a humidade e a temperatura de qualquer parte do corpo, mais do que fazer funcionar a arte e a estética, faziam-nas transpirar. A máquina que maquinei, ligada (wired, connected) directamente a mim próprio, encerrava, assim, uma natureza arqueológica ‘Pré-Cyborg’. De notar (e denotar) que estas experiências foram realizadas muito antes, por exemplo, de o performer Stelarc, também em França, construir o seu duplo braço mecânico e robótico. Para além disso, nas minhas performances, usava por vezes esse aparelho agarrado à cintura através de um cinto, para, de algum modo, esse cinema poder coincidir com o meu próprio corpo, igualmente antes da moda recente dos computadores ‘wearable’. Entretanto, ao contrário da realidade virtual, em que a máquina oferece novas sensações ao homem, aqui pretendia-se humanizar a máquina, fazê-la ‘sentir’ sensações, fluidos e ritmos humanos, em suma, construir / desconstruir uma espécie de ‘Máquina Sensível’.

Estes trabalhos foram mostrados - até 1977, altura em que me dediquei mais à Sociologia - entre outros locais no Institute of Contemporary Arts de Londres, juntamente com a ‘Alchemical Art’ que então sintetizei; no Centro Pompidou; na Alternativa 0, dinamizada pelo insubstituível amigo José Emesto de Sousa, etc.. Estas obras foram também analisadas na 'História do Cinéma Underground' do Dominique Noguez, Ed. Centre Pompidou, em 1977. O Cinéma Corps serviu-me ainda para apresentar uma 'Poesia Corporal' em 1979, no atelier do Cerveira Pinto no Chiado, onde, com o Leonel Moura e o José Barrias, formámos, os 4, o movimento artístico 'Arta', ou Centro de Documentação da Arte Actual, isto é, voltado explicitamente para a informação estética no seio da obra de arte. Ou seja, naquela poesia corporal corrompida por fluxos desejantes emigrados para a máquina de fazer arte, circulavam dois textos. O primeiro era constituído pelas palavras do poema, o segundo era um sub-texto submarino e contaminatório, uma espécie de vírus estético que emitia o clone especular do primeiro traço que omitia, troca de traços operada através da troça segregada pelos sons corporais emanados talvez do meu 'olho pineal', para aplicar Bataille à intervenção estética.

Assim fazendo, procurávamos herdar mas também superar os pré-happenings dos anos 50 ('expanded cinema', entre outros), ou as experiências conceptuais dos anos 60 (Kosuth, etc), onde o ‘documento de arte’ e o ‘processo’ valiam mais do que o objecto artístico. Nomeei alguma desta atitude 'Arte Pós-Conceptual' no catálogo da Alternativa 0 de 1977, quando o termo ‘pós’ ainda quase se restringia à arquitectura pós-modernista, para, a partir de 79, se aplicar mais profundamente à Filosofia e às Ciências Sociais e Humanas, essencialmente a partir de Lyotard. Mais tarde, em 1997, apresentei estes bugs artísticos na Fundação de Serralves, na mostra “Perspectiva : Alternativa 0, promovida pelo Vicente Todoli e pelo João Fernandes, em homenagem à Expo alter-nativa de 1977.

ESTELA - Já que estamos na "Alternativa Zero", gostava de saber o que significou para ti e como a avalias, vinte e tal anos volvidos...

PEDRO - Antes de mais, trata-se de um ponto de viragem marcante na cultura portuguesa em geral e nas artes plásticas em particular: por um lado, é o contar de espingardas, é a reunião daquilo que de mais radical se fazia na arte de então. Mas, a meu ver, encerra um outro significado, consistiu numa espécie de presságio dos estéreis e repetitivos anos oitenta que se avizinhavam. Era preciso juntar as ideias num movimento estético, antes que elas se dispersassem sem regresso possível. Daí que me tenha identificado bastante com a Alternativa 0 e, em particular, com o insubstituível amigo José Ernesto de Sousa, a quem nunca é demais prestar homenagem. Num plano mais pessoal, para mim significou isso mesmo, o zero redentor, a ‘ou-topia’ (o não-lugar que permite recomeçar tudo de novo) em vez da ‘eu-topia’ (a versão mais badalada da utopia, o lugar perfeito, mas simultaneamente o fim da história à Fukuyama). Concretamente, esse momento coincidiu com o fim da minha actividade artística regular (se alguma vez o foi), porque queria fazer Sociologia em profundidade e a sério, e era cada vez mais complicado ocupar-me das duas coisas simultaneamente, principalmente com escassos meios em Paris, onde até então vivia. Aí está de novo a alternância entre alteridades, o necessário mas doloroso uso do interruptor entre artes nativas plurais.

ESTELA - Pedro, tu lideras um projecto importante no CICTSUL. Entre os trabalhos já apresentados, salientaria os que incidem na Feira dos Minerais e na museologia... Há alguma relação entre as exposições ou feiras num museu e as exposições de arte?

PEDRO - O Projecto que coordeno - apoiado pela Fundação de Ciência e Tecnologia, é um processo colectivo. Todos são co-autores, de uma maneira ou de outra. Tendo como título: 'Literacia científico-tecnológica e opinião pública: o caso dos consumidores dos museus de ciência' , o projecto procura relacionar a produção da Ciência ao seu consumo, através da mediação operada pelos museus de Ciência e das TIC na formação do conhecimento e opinião dos seus visitantes. Para além disso, conecta os museus tradicionais aos museus de Ciência virtuais. A Feira dos Minerais, que se realiza anualmente por iniciativa do Departamento de Geologia e Mineralogia do Museu Nacional de História Natural, foi utilizada pela nossa equipa como um pré-inquérito, para definir novas questões e testar outras. Assim sendo, trata-se de um estudo principalmente sobre os Museus de Ciência. Contudo, hoje em dia, a clivagem entre museus de Ciência e Museus de Arte, ou mesmo entre exposições e museus, encontra-se profundamente subvertida. As questões que se colocam na contemporaneidade são deste tipo: será que a ‘exposição’ (de Ciência ou de Arte) é uma ‘imposição’ ou uma mera ‘posição’? Dito de outro modo, a expo investe num gosto e num estilo de vida (imposição), ou na sensibilidade de uma tribo urbana (posição)?

ESTELA - Por várias vezes te ouvi comentar que nós falamos do fundamentalismo alheio sem olharmos para o próprio... A democracia assume a teus olhos carácter de fanatismo, pelo menos em certas circunstâncias, e a respeito da ciência também a encaras como fundamentalismo...

PEDRO - Essa pergunta lembra-me um poema que escrevi há pouco tempo sobre o choque, não das civilizações, mas o encontro, o recontro e o reconto entre alguns dos fundamentalismos. No seu seio encontramos, muitas vezes com grande surpresa, o fundamentalismo democrático, embora, obviamente, nem tudo o que é democracia coincida com uma atitude fundamentalista. Este poema ainda está inédito, e inclui-se na poesia sociológica que procuro produzir. Ofereço-o com uma grande dose de cumplicidade à web page Triplov, e a ti em especial, Maria Estela Guedes, que a transformaste num dos mais criativos sucessos ciber-culturais das cenas portuguesa e internacional. Aqui vai o bicho poético:



OCIDENTES -> INCIDENTES -> ACIDENTES
(4/10/2002)

O Ocidente foi um acidente?
É o Oriente que orienta?
Perdeu-se finalmente o Norte?
A História, é uma questão de sorte?

West is still the Best?
East is still the Beast?
Eis perguntas bem tremidas
E as réplicas, mais temidas

Quem é mouro, onde mora?
Quem é louro, nunca chora?
Só quem tem a pele escura
É que está sempre de fora?

Ocidental é o que é global?
Oriental rima com o mal?
O Outro é fundamentalista?
Nós somos o fundamental?

Cada vez mais se democratiza
O acesso ao nuclear?
O risco, não se enfatiza
A Terra, é torre a aterrar?

Depois das guerras do fogo
As da água estão para vir
Quem apaga a água, e seca o lume?
E quem é que se fica a rir?


ESTELA - Tu és sociólogo, a Sociologia faz parte das Ciências Humanas... Por mim, não faço questão em que considerem ou não científico o trabalho que desenvolvo na área da História das ciências, e aliás costumo deixar claro que é uma pessoa das Letras quem assina, e que, dada a natureza do corpus científico analisado, não tenho outra hipótese senão classificá-lo como literatura (para não irritar os escritores, vou distinguir a Literatura da literatura...). Porém tu fazes parte da comunidade científica, e neste mundo há cientistas que não consideram ciência uma quantidade de ciências, e aliás vão ainda mais longe... Nunca escreveriam, por exemplo, "História das ciências", sim "História da Ciência", deixando implícito que essa CIÊNCIA é a FÍSICA e o resto, mísera paisagem... É que nem a Matemática consideram ciência (não tem laboratório, experimentação), quanto mais a Sociologia!... Perante tanta cagança, eu não consigo reagir com a cabeça... Porém, tu, que nadas como um atleta nos mares e marés da teoria, vais avaliar a situação de maneira cerebral... E identificar, se souberes, qual a origem de ideias tão bizantinas...


PEDRO - A ideia de que a Ciência é completamente científica é uma quimera da modernidade e, como tal, datada. Afinal, as diferentes Ciências, as Ciências da Natureza e as Ciências Sociais e Humanas, são mais semelhantes do que por vezes se imagina. Ambas são falíveis mais do que fiáveis, e todas elas se inserem num tipo de saber específico, que reúne, pelo menos, estes atributos: é essencialmente racional, reflexivo, teórico-empírico, sistemático e crítico. Nesta perspectiva, as Ciências construiram a sua especificidade (as Ciências da Natureza desde o século XVI e as Ciências Sociais e Humanas essencialmente desde o século XVIII) ao demarcarem-se da sensibilidade e do saber comum, embora hoje tendam a recuperar estes valores e muitos outros até há bem pouco tempo impensáveis para o ethos e para a ética científicos. Por exemplo, o princípio da incerteza de Heisenberg, um dos múltiplos abalos aos paradigmas do conhecimento científico durante todo o século XX, demonstra, entre outras coisas, exactamente o carácter aleatório desse modo de saber.

De seu lado, as Ciências Sociais e Humanas são bastante sociáveis e humanas, na medida em que conviveram amiúde, melhor ou pior, com a probabilidade mais do que com a certeza, e com a sensibilidade paralelamente à racionalidade, embora nos inícios procurassem aplicar o modelo racionalista estrito (e restrito) característico da época moderna. Daí que, não apenas as Ciências da Natureza, mas também as Ciências Sociais e Humanas, mostram-se hoje incontornáveis, neste mundo pleno de complexidade, onde, como referi atrás, a incerteza é a maior certeza que temos. Sendo o homem a entidade mais complexa da natureza, é isso mesmo que as Ciências Sociais e Humanas estudam. Assim sendo, parece-me uma ligeireza tomar estas Ciências como ligeiras, da mesma forma que, ontem, o pensamento medieval e, hoje, alguns saberes conservadores, consideram a Ciência em geral ainda com suspeição.

Estas considerações gerais sintonizam com algumas das temáticas específicas que tinha desenvolvido em 1981-4, na tese de Doctorat de 3ème cycle defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, tendo como orientador o Marc Ferro, e com o título La taverne, son boire et leurs savoirs. Por exemplo, forjei nessa altura os conceitos de ‘experiência, consciência e Ciência embriagadas’, a partir da análise dos vários tipos de banquete gregos (Xenofonte, Platão), onde se discutia filosofia em grupo, numa espécie de desafio que consistia em falar até a palavra ser toldada pelo vinho e pela embriaguez. A embriaguez desvela-se desta feita, a meu ver, como a anti-razão por excelência, mais do que a sexualidade. Isto não significa que a embriaguez seja a-racional, nem uma forma de des-razão, porque a razão e a anti-razão complementam-se e acabam por ser as duas faces da mesma moeda. Outras libações colectivas posteriores prolongam ou traem esta tradição, como os banquetes relatados por Dante, Giordano Bruno e Kierkegard.

Assim sendo, nesse texto de 81-4, procurei demonstrar que subsistiram, mesmo na modernidade, certas figuras do dionisíaco e de um novo erotismo hibridizado com a embriaguez, através da estratégia que defini, também nesse momento, como sendo a ‘Grande Amnistia’, complementar ao ‘Grand Renfermement’ que Foucault circunscreveu. Grosso modo, a Grande Amnistia é o processo histórico de marginalização dos segmentos da população menos adaptados à sociedade industrial e moderna emergente no século XVIII, mas que, ainda assim, eram necessários à sobrevivência da própria produção e ao consumo que suportam essa sociedade industrializada e essa cultura da modernidade. De um lado, os loucos e os criminosos foram encarcerados, respectivamente, no asilo e na prisão, desde o final do século XVIII, instituições tuteladas pelo Estado-Nação emergente, o que constitui o processo do ‘Grande Enclausuramento’ de que Foucault nos fala.

Todavia, de outro lado, os trabalhadores e diversos marginais foram como que ‘amnistiados’ pelos poderes dominantes, desde que se confinassem, nas suas actividades laborais e lúdicas, aos espaços da cidade mais desqualificados sócio-simbolicamente, como as zonas industriais, os bairros pobres e, no seu interior, a taberna, julgada como o antro de todos os males, dos quais os mais temidos pelas classes médias ascendentes eram a sexualidade e a embriaguez públicas. Entretanto, a tasca funcionou como o espaço sócio-simbólico mais federador das culturas alternativas. De facto, a Revolução Francesa passa-se, em grande parte, na taberna, como se constata nas lutas contra os aumentos do imposto do vinho em Paris, em torno da barreira de cobrança de taxas da capital Francesa, o Mur des Fermiers Généraux, em Janeiro de 1789, acontecimentos que pré-anunciam a Tomada da Bastilha, alguns meses depois. Uma tal ‘resistência político-dionisíaca’, ainda pouco estudada, também se passou em Portugal, apoiando-se, como em outros Países, essencialmente nos contra-discursos religiosos, clínicos, literários e artísticos que se contrapunham aos respectivos discursos institucionais, estes últimos aliados ao discurso mediador e regulador da lei. Tenho documentação que prova tudo isto.

Este processo sócio-histórico demonstra que a razão tem que coabitar, na sociedade e na cultura, com os seus opostos. Por vezes, a racionalidade domina os seus contrários, como na Grande Amnistia, mas outras vezes ambas revelam-se o prolongamento uma da outra, por exemplo no caso da Ciência Embriagada ou da Literatura Embriagada celebrada por Bocage, Tolentino ou Pessoa, que também propus em 1985, nessa tese.

ESTELA - Conheço-te ainda como poeta, e em especial de improvisos ou quase. Acho-te um repentista controlado, os teus versos têm características muito pessoais: tal como nas maquinetas de desconstruir utilidades, os teus poemas desconstrem a linguagem para fins de sátira social. Não há nada que te não mereça crítica... Por isso te peço uns versos para ilustrar o que vais dizer, e se quiseres satirizar a entrevista pré-fabricada em e-mail, fica à vontade...

PEDRO -


Entre a vista
De mim pelo outro para ti
Fica à (entre) vista

Não há questionário sem questão
E não existe observação
Sem observa-a-dor

Por isso, só é sociólogo
Quem o não quer ser

E assim mesmo é-o
É-o, eu? Ei, eh, ah

Não há sociologia sem ali, alá
E não é por acaso que o Amaro
Tinha amor no nome, ou no faro

Assim sei que sendo o que soa
Não sou, vou, voo à toa...


Esta foi feita ao responder à tua entrevista (6ª feira 15 de Novembro de 2002). A poesia é como um copo que se bebe de um só trago, mas que já trago comigo e com os outros.

ESTELA - Como poeta satírico, tens muita companhia, e estou a lembrar-me de Nicolau Tolentino e de Alexandre O'Neill... Mas sabes que não é no papel que os teus poemas têm maior poder de choque... Onde tu és mais provocante, e por isso mais vanguardista, é quando fazes performances sem aviso prévio, aliando a representação à palavra. Estás num colóquio ou num congresso, espaços de ritual, em que não é boa ideia aparecer de chinelos, e toma: versos teus pelo meio da "Comunicação académica" - título de um texto nada académico de Herberto Helder... Se estivesses em palco, não havia arrepio nenhum, agora transmutar uma academia em teatro...

PEDRO - Essa intervenção que referes, em que se pretendeu reflectir sobre ‘A Comunicação de Colóquio como forma de comunicação e de criatividade’ precisas e singulares, ocorreu - diria que muito naturalmente - num interessantissimo colóquio em 2001 sobre a Criação. Este evento, que a página Triplov publicitou, e aliás tem em linha, foi animado, entre outros, pelo José Augusto Mourão. A revista Atalaia-Intermundos vai publicar, dentro em breve, os respectivos textos. Acho que a provocação não deve ser entendida como qualquer coisa ‘negativa’ a priori. Assim como a comunicação comunica acção, e a criação cria acção, também a provocação define-se como tudo aquilo que provoca acção. Nesta óptica, certas áreas da vida puramente desapareceriam se não houvesse um sismo cultural de vez em quando…

ESTELA - Olha, Pedro, tu para mim és duas pessoas distintas. De uma eu diria: ali está um homem bem apessoado, absolutamente ajustado aos padrões de compostura (ou impostura, como diria Floriano Martins) social, bem vestido, bem falante, incapaz de um termo grosseiro, e até de criticar os colegas, mesmo quando estes não só merecem a crítica como um bom par de estalos. Esta pessoa não é comum, mas é formal... Porém há outro em ti, o artista, esse que transtorna uma assembleia científica com inesperados versos, e além disso interessas-te por temas social e cientificamente incómodos... Literacia é um eufemismo de alfabetização, se tu queres estudar a literacia científica com pessoas das ciências e tomando como corpus os produtos das instituições científicas, estás a querer saber até que ponto a ciência está alfabetizada... Espero que ninguém leia esta entrevista...

PEDRO - A hibridação faz parte de nós. Já nos primórdios da humanidade, Adão e Eva seriam provavelmente mestiços, por terem brotado dos amores entre as divindades da época e qualquer misterioso animal, planta ou mineral, pois foram os primeiros humanos e, nessa medida, não poderiam ser engendrados por outros humanos. Por vezes, esta creoulização existe dentro do mais branco ou do mais negro de nós. O sociólogo Erving Goffman vê a vida social quotidiana como um teatro, outra forma de mestiçagem: por um lado, a vida pública é percebida como um imenso palco, ou seja, as ‘regiões da frente’; por outro lado, este autor considera a nossa esfera privada enquanto bastidores das nossas vivências, isto é, as ‘regiões de fundo’. Ele celebrava o primeiro acto de ser actor, e o facto de que passamos todo o tempo a representar, nos nossos percursos diários. Afinal, a nossa existência entraria em colapso sem estes lapsos instituintes, sem estas sucessivas hibridações e actuações constitutivas do social.

Quanto à Ciência, é preciso aprendê-la todos os dias, uma vez que ela reinventa-se continuamente. A literacia ou alfabetização entende-se e estende-se hoje a todos os tipos de saber. Assim sendo, a aprendizagem da Ciência em geral, e da literacia científica em particular, faz-se na fusão entre essa forma de literacia e a literacia do senso comum, a literacia da cultura, a literacia dos cultos sócio-simbólicos, e assim por diante.

ESTELA - No meio das tuas iniciativas e comportamento vanguardísticos, foste um pioneiro da Internet... Ouvi dizer que criaste a primeira ou uma das primeiras páginas pessoais... Fiquei na dúvida, do que me contaram, se era uma página de cultura ou uma ciberdiscoteca.......

PEDRO - Efectivamente, em Setembro de 1995, a web page da revista Atalaia e da associação que a apoiava, o Observatório Internacional de Exegese Contemporânea, foi saudada pela revista @-net como a primeira página Portuguesa de conteúdo predominantemente cultural, após ter sido lançada em Julho de 1995, um mês antes das (notáveis) páginas do Público e do PS. Uma das iniciativas iniciais dessa página foi um ciberquestionário, também, que eu saiba, o primeiro em Portugal a ser apresentado a um público virtual, pedindo a sua ciberopinião. Paralelamente a essa incursão e excursão no ciberespaço, em 1996 colaborei no 1º CD multimédia Português, produzido pela Aula do Risco, escola de arte que foi, por sua vez, um dos mais pioneiros projectos educativos sérios de intermédia em Portugal, animado pelo Cerveira Pinto. Esse CD apresentou, no seu conteúdo, alguns dos mais precoces projectos de fusão de media avulsos em Portugal, como a 'Exposição Virtual' que compilei e programei no software Director, de Dezembro de 95 a Janeiro de 96, a partir de obras minhas de ciberarte anteriores (de 1985 a 1988) expostas no Forum Lisboa em 1988, em parceria com as do Melo e Castro, que também escreveu sobre elas no livro Poética dos meios e Arte High Tech, Lisboa, Vega, 1988. Ainda em 1996, logo em Janeiro, eu e o outro fundador da revista Atalaia, o Francês Avner Camus Perez, ensaiámos a apresentação multimédia de uma revista cultural, concretamente o nº 1 de Atalaia, na Videoteca de Lisboa, em cumplicidade com outros ‘compagnons de route’, o António Cunha, Director da Videoteca, e uma mesa constituída pelo Rui Zink, pelo Manuel Lopes e pelo Al Berto. Dentro desse evento, apresentei publicamente o 1º artigo multimédia saído em revistas Portuguesas, artigo da Atalaia feito em duas versões, em papel e digital, sobre a meta-informação aplicada ao caso do objecto de estudos heterodoxo e contra-panóptico que é a taberna, olhar de alteridade que a tasca partilha com o café e o bar. Tal como qualquer projecto alternativo genuíno, estes contextos institucionais do beber público, situados algures entre o púdico e o púbico, perante as janelas indiscretas dos vários tipos de poder panópticos, encontram-se, ontem como hoje, permanentemente de atalaia.