COMUNIDADES VIRTUAIS
Pedro de Andrade


Esta comunicação consta de duas partes. A primeira tenta contextualizar o fenómeno das comunidades virtuais, na contemporaneidade. A segunda é um estudo de caso, que circunscreve uma comunidade virtual específica.

1. O que é uma comunidade virtual?

O facto de as comunidades virtuais estarem na ordem do dia apenas significa que a sua complexidade se torna cada vez mais incomensurável. Antes de mais, é importante distinguir o que pode ser uma comunidade virtual e aquilo que não parece ser.

Comecemos pela sua definição negativa, ou des-finição, que se opera pela desconstrução do conceito de comunidade vrtual. Já no século XIX, Ferdinand Tonnies distinguia a comunidade, eminentemente pré-industrial, da sociedade, tipicamente moderna. Hoje, entre outras agendas, revela-se central captar as dissemelhanças entre as comunidades físicas e as comunidades virtuais.

De um lado, as comunidades físicas associam-se a interesses pouco diversificados; inserem-se em economias de subsistência; caracterizam-se pela predominância dos chamados pequenos grupos; permitem relações directas entre os seus membros; exercem um maior controlo social; concedem uma menor delegação de poder; e obedecem a um mais marcado tradicionalismo.

De outro lado, as comunidades virtuais parecem responder a interesses múltiplos; incluem-se em economias globais e na sociedade de informação; albergam agrupamentos reticulares em princípio sem número limite de membros; desenvolvem um tipo de relações mediadas, embora aparentemente imediatas; podem instaurar um controlo invisível; realizam uma delegação diferida de poderes numa espécie de revisitação da democracia directa; e fomentam saberes multifacetados.

Uma segunda definição negativa, ou des-finição, realiza-se assim: a juzante, num nível analítico superior ou mais geral do que as comunidades digitais, a Internet não me parece constituir uma ciber-comunidade. Será, quando muito, uma meta-comunidade virtual, a comunidade de todas as comunidades, aquela mais global e menos local que as restantes.

A montante - no interior de um nível analítico mais específico do que aquele a que pertencem as comunidades virtuais - estes agrupamentos sociais reticulares devem ser distinguidos, em primeiro lugar, dos SIG, ou special interests groups. Os SIG são grupos de infonautas que mantém interesses especializados, por exemplo no campo da educação, na vida profissional ou em hobbies. O trabalho mais colectivo, característico das verdadeiras comunidades virtuais, não passa, no caso dos grupos de interesses especiais, de meras tarefas pré-definidas e realizadas individualmente, por vezes sem conhecimento de muitos dos restantes membros desses grupos, segundo Andrew Feenberg (1).

Em segundo lugar, convém separar, analiticamente, as comunidades virtuais das chamadas community networks, ou redes comunitárias, que normalmente visam dar suporte a comunidades físicas locais e, portanto, coincidem com elas, grosso modo, em termos geográficos.

Passemos, em seguida, para as possíveis definições afirmativas, ou des-des-finições. Howard Rheingold, um dos gurus mais celebrado do ciberespaço, advoga que, nas comunidades virtuais: "... fazemos tudo o que as pessoas fazem quando se encontram juntas, mas fazemo-lo com palavras em écrans de computador, deixando os nossos corpos atrás... as nossas identidades juntam-se e interagem electronicamente, independentemente do tempo local ou da localização." (2)

Assim sendo, talvez duas de entre as palavras-chave que circunscrevem melhor as comunidades virtuais são a desmaterialização das relações sociais e a convergência das intertextualidades.

Desmaterialização, porque o ciberespaço e aquilo que denominámos cibertempo - ou seja, o conjunto de temporalidades subjacentes às actividades passadas na Internet - fundam um novo tipo de deixis. A deixis, em geral, significa a relação formal de enunciação de uma mensagem por um sujeito, num espaço-tempo dado. A deixis virtual é a relação, plena de simulação e de simulacro, que se estabelece entre um sujeito e o espaço-tempo digital de enunciação e de anunciação das suas acções ou dicções, ou seja, o ciberespaço e o cibertempo. As dicções são os significados ditos pelos sujeitos, actores ou actantes sociais, através dos signos da linguagem. Esta deixis virtual não se apoia no corpo físico daqueles que comunicam, mas apenas numa sua parte, por exemplo, a escrita de um texto num e-mail. Um dos atributos da deixis digital é, pois, o facto de se tratar de uma espécie de metonímia social-virtual. Uma outra característica da ciberdeixis é a seguinte: aquele texto inscrito no e-mail é transmitido não de um modo apenas mediado, como sucede para os outros escritos, por exemplo um livro, que se transporta fisicamente no seu suporte papel. Com efeito, esse texto do e-mail circula de um modo mediado, pelo meio de comunicação ou canal que é a Internet, mas também de uma forma imediata, através da instantaneidade da transmissão. O segundo traço da ciberdeixis é, assim, a fusão do imediato com o mediado. Dito por outras palavras, a deixis digital opera a hibridação entre a deixis oral e a deixis da escrita. Com efeito, a imediatez é a característica principal da comunicação oral em co-presença física, e a mediatez é o atributo maior da comunicação escrita.

Para além disso, as comunidades virtuais promovem a convergência de intertextualidades, devido ao que se segue. Num primeiro momento, a comunidade física pode ser entendida como um intertexto legível por todos os seus membros, cada um dos quais produz documentos ou descrições daquilo que faz na sua vida quotidiana, ou seja, textos sociais. A intertextualidade consiste na circulação dos textos realizados por cada membro dessa comunidade nos textos dos restantes membros, sob as formas de inscrição ou da inserção de uns nos outros. Por exemplo, através da citação de um actor-autor por outro autor-actor. No caso das comunidades virtuais, um novo grau de complexidade é alcançado. Neste segundo momento da vida das comunidades humanas, a comunidade virtual reúne múltiplas intertextualidades, tantas quantas as comunidades físicas envolvidas. As comunidades virtuais funcionam como um imenso hipertexto que encerra as diferentes escritas dos seus membros, mas em vista à escrita de um mega-livro. Este meta-livro distingue-se de outros livros como a web-page, na medida em que, nas comunidades virtuais, ainda mais do que na troca de e-mails, todos são, simultaneamente, leitores e escritores dos conteúdos e dos sentidos digitais.

2. A comunidade sem nome.

Vamos agora apresentar o estudo de caso de uma comunidade virtual concerta. Os dados empíricos que se seguem foram obtidos numa entrevista estruturada a um dos membros dessa comunidade, Nuno Maia. Esta entrevista exploratória situa-se na fase preliminar de uma pesquisa que nos encontramos a efectuar sobre as comunidades virtuais. Como tal, os dados reportados não se podem considerar representantivos da dinâmica complexa desta comunidade em estudo, nem muito menos do fenómeno das comunidades virtuais em geral. Tomemo-los apenas como um aperitivo do processo em análise.

Um dado curioso é que a comunidade não tem nome. Tal facto explicar-se-á pela aspiração a alguma privacidade, num ciberespaço entulhado de grafittis públicos? Ou a ausência de nominalização advirá da aura de desconhecido que pauta qualquer relação virtual? Ou ainda, procura-se compensar, com este anonimato, a multiplicidade de personalidades a que o infonauta tem acesso, isto é, aquilo que já nomeámos identidade prismática ou Efeito Pessoa?

Quanto à genealogia da comunidade, ela resume-se em 2 etapas: uma fase inicial, em 1995-96, animada por apenas três ou quatro pessoas, a que se foram juntando progressivamente outras, entrando depois numa etapa de expansão rápida em 1998-99. De início, alguns dos actuais membros não detinham e-mail, o que acontece, ainda hoje, com a mulher do entrevistado e com uma antropóloga, o que os relegou, por assim dizer, para a condição de info-excluídos.

2.1 Os actores e os autores da comunidade virtual.

Comecemos por caracterizar esta comunidade virtual em termos das estruturas sociais da sociedade Portuguesa incorporados nos seus participantes. Sucintamente, o perfil dos membros da comunidade virtual define-se como um grupo de jovens quadros pós-universitários, embora outras variáveis contribuam para a sua delimitação.

Na verdade, a faixa etária predominante é casa dos 30 e, em menor escala, os membros entre os 20 e 29 anos. Quanto ao género, o equilíbrio é notável. O total de 20 membros reparte-se por 10 homens e 10 mulheres.

No que respeita o local de nascimento dos membros, ou naturalidade, se bem que varie, concentra-se em Lisboa, aproximadamente 30% do total dos membros. O País de nascença é predominantemente Portugal, havendo, no entanto, alguns membros gozando de dupla nacionalidade, especialmente aqueles residentes no estrangeiro. Com efeito, o local de residência expande-se desde Lisboa (12 membros), passando por Bruxelas (3) e Haia (2), e prolongando-se, com um efectivo cada, a Santiago do Chile, Macau e mesmo as Ilhas Caiman, nas Bahamas.

A situação perante o trabalho evidencia um grupo homogéneo, já que todos se incluem na categoria dos trabalhadores por conta de outrem, o que sucede também com os respectivos cônjuges e genitores, alguns destes já reformados (cerca de metade). Apenas um membro apresenta-se incapacitado para o trabalho. As profissões inserem-se, predominantemente, nos quadros superiores de organizações internacionais, ministérios e empresas. O local de trabalho fractura-se, pois, entre a administração pública o sector privado, não se verificando trabalho familiar, trabalho por conta própria ou tele-trabalho. Os membros mantém dois endereços electrónicos, na casa e no trabalho, o que perfaz 40 nós de comunicação na rede, e multiplica o Efeito Pessoa essencialmente por dois. Ou seja, cada membro recebe dois papéis sociais virtuais, uma espécie de gémeos sem clonagem, ou duas identidades virtuais on line. O nível de rendimento mais frequente situa-se entre os 300 e 400 contos.

A relação à instituição familiar exprime-se nestes dados: a maior parte são casados e o número de filhos oscila entre 1 e 2.

No que toca as discursividades investidas por estes sujeitos, o grau de instrução é esmagadoramente de nível superior. Contudo, a mobilidade social é grande para metade deles, já que os respectivos pais apenas detinham a Escola primária. A área de formação é exclusivamente as Ciências Sociais e Políticas., na medida em que se trata de antigos colegas do Instituto de Ciências Sociais e Políticas (ICSP). As opiniões público-políticas equilibram-se entre a esquerda, o centro e a direita, embora a esquerda leve alguma vantagem. Em matéria de religião, crenças ou outra atitude perante o sobrenatural, a maioria é católica, embora não muito praticante, à excepção de 3 agnósticos.

Por outro lado, os traços básicos destes infonautas podem ser extraídos de outra pergunta mais directa, onde se perguntou em que perfil o membro da comunidade se incluiria. A resposta centrou-se nos perfis do consumidor da Internet, do visitante regular e do cidadão interessado pelos efeitos da Internet na sociedade.

2.2. O consumo electrónico de sociabilidade.

Uma das motivações mais poderosas do ingresso numa comunidade virtual é a possibilidade de relações sociais de novo tipo. Essas relações estabelecem-se não só no ciberespaço, mas também no cibertempo. Neste aspecto, os dias da semana mais usados pelos membros da comunidade em estudo são os dias úteis, já que se trata de antigos colegas da mesma faculdade, que partilham interesses ligados a uma mesma área do saber, embora em locais de trabalho diferentes. Nestes dias, há alguns que participam mais na comunidade, 4 ou 5, chamados ‘dínamos’ pelos outros, em parte devido à sua maior disponibilidade. É o caso do colega que trabalha na embaixada Portuguesa no Chile, que envia sempre o primeiro e-mail da manhã, o que lhe pode conferir alguma notoriedade ou mesmo uma certa liderança.

Esclareça-se que a principal actividade destes infonautas comunitários é o correio electrónico, sob a forma de mailing list. O chat, ou conversas em linha em simultâneo, não é praticado. A duração de cada um em linha pode variar de 3 minutos a meia hora. Estas mensagens são enviadas não apenas a colegas que constituem o grosso dos membros, mas igualmente aos seus familiares, essencialmente cônjuges.

As principais motivações desta troca de mensagens é a confraternização ou, ainda mais do que isso, a ajuda recíproca entre os infonautas. Ou seja, a sociabilidade digital aliada à cibersolidariedade. Ao primeiro interesse geral, a sociabilidade, correspondem as actividades concretas da passagem de mensagens privadas, segredos ou fofocas. Afinal, a condição humana não mudou assim tanto, com o advento da cibercultura. Quanto á solidariedade, passa-se em termos de aconselhamento e ajuda pessoal.

Os modos de participação mais relevantes, do ponto de vista substantivo, são as práticas de cidadania e as campanhas políticas, talvez devido à formação dos membros. Contudo, formalmente, o que se pretende, segundo as palavras do Nuno Maia, é a participação pela participação, informal, para marcar presença. Todavia, existem sanções, uma espécie de netética, penalizações morais expressas por estas palavras: ‘Estás vivo? Estás doente? Só te lembras de nós para pedir ! ’. As relações são quase de vizinhança tradicional, segundo o entrevistado.

A opinião que nos foi facultada sobre a organização das comunidades virtuais em Portugal é a de que nos encontramos ainda numa fase incipiente, embora não conheçam bem o problema. Estes infonautas acham-se diferentes dos outros, essencialmente na sua informalidade e carácter difuso, sem organização formal. "É uma verdadeira tertúlia, confessa-nos, quase um chá das 5 da tarde, só para contactar’. Roman Jacobson diria que aqui a função fática ou de manutenção da comunicação prevalece. Entretanto, proximamente, contam abrir uma página na Internet para depositar aí a colecção de fotos de almoços, férias, ou dos miúdos, que já constitui um verdadeiro património de imagens.

2.3. A comunicação digital de solidariedade.

Passemos agora, mais profundamente, à área da comunicação e da linguagem. Aplicando a técnica sócio-psicológica do brainstorming instantâneo, como convém, ao perguntar quais as três primeiras palavras que suscita o termo ‘comunidade virtual’, as respostas obtidas foram: ‘liberdade’, ‘instantaneidade’ e ‘flexibilidade’. Ou seja, trata-se quase de um programa económico-político híbrido, uma mescla de modernidade - detectável no vocábulo político ‘liberdade’ - e de pós-modernidade, visível na palavra ‘instantaneidade’, tudo apimentado com a ideia de flexibilidade, tão celebrada pelo sistema económico do pós-fordismo (a nova economia flexível, etc.).

A genealogia da comunicação quotidiana nesta comunidade virtual emerge em múltiplos indicadores concretos. Por exemplo, o conhecimento e o ingresso no grupo derivaram de conversas, ou seja, um modo de comunicação oral em co-presença física.

No percurso entre os destinadores e os destinatários da informação, já surgiram dificuldades de comunicação entre os membros, por perda de informação devido a falhas no canal (a Internet) ou por descontextualização das mensagens, que motivavam outras mensagens como esta: ‘não recebeste a mensagem?’ ‘Estás a falar de quê?’. Encontramo-nos diante do chamado ‘ruído de informação’ de que nos falam Shanon e Weaver, ou da hipocodificação, ou seja, a insuficiência dos códigos que organizam os significantes em vista à produção de significados, no seio do processo de codificação/descodificação das mensagens entre o emissor e receptor, fenómeno circunscrito por Umberto Eco e Paolo Fabbri, no quadro da teoria semiótico-informacional. Os conflitos derivados de tais ausências ou perturbações de sentido são normalmente de baixa intensidade, e resolvem-se no trabalho da linguagem, por exemplo com esta expressão diplomática mas algo irritada: ‘já disse isso atrás’. Quanto aos diferendos com outras comunidades virtuais, não ocorreram, em parte devido ao facto de que o único contacto com elas é individual, e não em nome desta comunidade sem nome. Para além disso, em princípio comunica-se aos outros membros este tipo de comunicações pessoais.

No que respeita a influência percebida de um emissor ou destinador da informação em relação a um receptor ou destinatário da mesma, a resposta declarada aponta para um aconselhamento nos primeiros dias de participação de um novo membro, em termos de aprendizagem, técnica ou normativa.

No que respeita o canal da informação, dentro da Internet é sugestivo diferenciar dois meios de transmissão das mensagens nesta comunidade virtual, o e-mail e a mailing list. O primeiro permite uma espécie de diálogo bilateral, entre dois infonautas. Eles inserem-se na esfera social da ciberprivacidade, ou melhor, o privado possível na rede de todas as redes, mas também o super-telescópio de todos os olhares. No caso da mailing list, trata-se de um forum digital que circunscreve uma certa ciberpublicidade, o termo publicidade sendo tomado no sentido amplo de um processo característico do espaço público.

Quanto ao conteúdo das mensagens permutadas, existem três grandes temas.

Em primeiro lugar, fala-se do que se faz no trabalho, no lazer ou no contexto familiar. Estas temáticas derivam do próprio perfil sócio-sémico dos participantes. Segundo as palavras do Nuno Maia, a comunidade funciona como ‘uma tertúlia mixta, de formação homogénea, e com uma experiência de vida partilhada em 15 anos, demo-nos sempre bem, uns foram padrinhos de casamento de outros’.

Erm segundo lugar, conversa-se bastante sobre assuntos sociais e políticos, novamente devido à formação e interesses comuns. Um dos membros, aquele que trabalha em Bruxelas e frequentou o curso de Relações Internacionais, envia, em attach no e-mail, artigos de jornais, essencialmente o ‘Público’, o ‘Diário Económico’, o ‘Expresso’ e o ‘Economist’ Por seu lado, o Nuno Maia envia extractos de notícias da SIC, ou seja, a partir do seu emprego.

Em terceiro lugar, passa-se todo um trabalho recíproco de pedidos de contactos por um dos membros a outros e respectiva troca, numa espécie de tele-agenda que, em termos do canal de comunicação, usa principalmente o e-mail e raras vezes o telemóvel.

Para além disso, estes ciber-encontros complementam-se por encontros em co-presença física. As regras informais são as seguintes. Por um lado, quanto aos residentes em Portugal, encontram-se em geral mensalmente, ou no final da tarde, no fim de semana, ou ainda no verão. Por outro lado, se algum dos que vive no estrangeiro se desloca a Portugal, isso é motivo de encontro fora da comunidade virtual. Em suma, a comunidade digital veio regularizar e intensificar aquilo que já existia na comunidade física.

No entanto, uma e outra comunidades encontram-se fracturadas pela clivagem entre a esfera pública e privada que atravessa os seus membros. Com efeito, se já dissémos que as mailing lists dominam em termos de comunicação pública entre estes infonautas, as conversas privadas ou bilaterais empregam preferencialmente não apenas o e-mail com o comando ‘to’ e não ‘c/c’, mas ainda o telemóvel.

Quanto á questão dos efeitos da comunidade virtual nas comunidades físicas, foi-nos reportado um caso curioso. Oito de entre os 20 membros da comunidade virtual trabalham em Lisboa num raio físico de 2 quilómetros, em Entrecampos e Marquês de Pombal. Mesmo assim, raramente se encontram face-a-face, na vida quotidiana. Quando isso acontece, é por acaso.

Em suma, concomitantemente a estas novas dinâmicas de simulação da realidade ou de celebração do seu simulacro, como diria Baudrillard, ocorrem práticas de sociabilidade que se transformam, por vezes, em figuras de solidariedade recíproca. No entanto, qualquer infonauta, como qualquer actor social, recorre sempre, consciente ou inconscientemente, ao processo de gestão da impressão que causamos nos outros, fenómeno circunscrito pelo sociólogo Erving Goffman. A Internet permite este jogo de diferenças derridiano que constrói não apenas a identidade prismática ou Efeito Pessoa que referimos, mas igualmente uma figura de identidade mais complexa, a identidade aracnídea, que reactualiza Kafka ou Orwell, um pouco recorrentemente, no ciberespaço e no cibertempo. Dito de outro modo, teoricamente, tudo o que se passa na Internet é passível de chegar até mim, nos caminhos infinitos da super-teia da rede hipertextual, desde que eu construa uma comunidade suficientemente ampla de moscas virtuais de que me possa alimentar. Este é o primeiro sentido da identidade aracnídea, ou seja, a subjectividade de qulaquer infonauta comum que se nutre da comunicação total entre todos os sujeitos da rede. No entanto, este tipo de identidade virtual aracnídea encerra um segundo significado, isto é, o controlo generalizado dos cidadãos por certos infonautas que detém a essência do poder informativo. A passagem da primeira para o segundo sentido da identidade aracnídea representa o momento em que a aranha se torna mosca. Por exemplo, o sistema de vigilância Échelon reactualiza aquilo que Paul Virilio chama picnolepsia, na sua obra Bunker Archeology, onde empreende uma reflexão sobre a militarização da sociedade e dos media em particular. A picnolepsia é um processo de desmaterialização do real e de controlo sobre o social, operado essencialmente pelos mass media e pela Internet. Trata-se da disseminação, por todo o tecido social, de um conjunto de lapsos momentâneos, ou momentos de desatenção por parte de uma audiência, que permitem, tal como no fenómeno da persistência da imagem na retina no cinema, a ilusão de movimento da nossa vida real.

Assim sendo, uma comunidade virtual só o será realmente se soubermos preencher os momentos de ausência de sentido com que o media Internet nos inscreve numa simulação planetária, apoiada num real tornado simulacro. Essa tarefa libertadora ou redentora, conforme os gostos, opera-se a partir de uma atitude de desconstrução não apenas do ciberespaço, mas também do cibertempo, e em especial através da identificação do jogo de diferenças pelo qual os sentidos das mensagens e o significado das nossas relações sociais se encontram a ser permanentemente diferidos.

(1) Feenberg, 1993, Building a Global Network: The WBSI experience, In L-M. Harasim (ed.) Global Networks: Computers and International Communication, Cambridge, MIT Press. p. 188.

(2) Rheingold, H., 1994, A slice of life in my virtual community, In L-M. Harasim (ed.) Global Networks: Computers and International Communication, Cambridge, MIT Press, p.58.