Pecar é estragar

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. No âmbito de uma cultura laica, não se fala de pecado. É uma linguagem que parece reservada para as diversas e complexas expressões do mundo religioso. Há tantas formas de pecar quantos os modos de estragar a própria vida, a vida dos outros e a natureza.

Vamos por partes. Na passada segunda-feira, foi celebrado o Baptismo de Jesus, o nazareno. Esse acontecimento é apresentado nos quatro Evangelhos, embora com tonalidades diferentes. Para esse dia, neste ano, foi escolhida a versão de S. Mateus. Para este Domingo foi seleccionado um fragmento da versão de S. João. Para o situar no seu contexto, preciso de recorrer a uma passagem que precede esse fragmento.

As autoridades judaicas estavam inquietas com a influência de João Baptista que parecia situar-se na linha de perigosos movimentos messiânicos. Resolveram, por isso, enviar sacerdotes e levitas para colherem, da boca do próprio, informações mais precisas.  Interrogaram-no frontalmente: Tu quem és? Esclareceu: eu não sou o Messias. Então, quem és? És Elias? Não sou. És o profeta? Também não. Então, quem és tu? Precisamos de uma resposta para dar aos que nos enviaram. Que dizes de ti mesmo? Eu sou a voz de quem grita no deserto segundo a espectativa do profeta Isaías: aplanai o caminho do Senhor.

Os fariseus, por seu lado, insistiram: se tu não és o Messias, nem Elias, nem o Profeta, porque baptizas? Resposta pronta: Eu baptizo na água, mas no meio de vós está quem vós não conheceis. É aquele que vem depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias. 

Tudo isto aconteceu em Betânia, na margem além do Jordão, onde João estava a baptizar[1].

Dito isto, vamos ao texto seleccionado para este Domingo: «No dia seguinte, ao ver Jesus, que se dirigia para ele, João [Baptista] exclamou: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! É Aquele de quem eu disse: depois de mim vem um homem que me passou à frente, porque existia antes de mim. Eu não o conhecia, mas foi para Ele se manifestar a Israel que eu vim baptizar na água.

«João deu mais este testemunho: Vi o Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre ele. Eu não o conhecia, mas quem me enviou a baptizar na água é que me disse: Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre ele, é o que baptiza no Espírito Santo. Pois bem: eu vi e dou testemunho de que é este o Filho de Deus.

«No dia seguinte, João encontrava-se de novo ali com dois dos seus discípulos. Então, pondo o olhar em Jesus, que passava, disse: Eis o Cordeiro de Deus! Ouvindo-o falar desta maneira, os dois discípulos seguiram Jesus. Jesus voltou-se e, notando que eles o seguiam, perguntou-lhes: que pretendeis? Eles perguntaram-lhe: Rabi – que quer dizer Mestre – onde moras? Ele respondeu-lhes: Vinde e vereis. Foram, pois, e viram onde morava e ficaram com Ele nesse dia. Eram as quatro da tarde»[2].

Destaco, nesses textos, três grandes acontecimentos: o voluntário apagamento de João Baptista; o dom do Espírito Santo que é, segundo Tomás de Aquino, a própria essência do Evangelho, isto é, a lei nova, a lei da pura graça divina, a lei da liberdade, a lei do amor[3]; e o acontecimento que explicita o novo rumo da vida de Jesus que o revela como o Servo (o Cordeiro) de Deus, cuja missão é libertar os seres humanos daquilo que os oprime, que estraga todas as dimensões da própria vida, da relação com os outros e com a natureza. João Baptista, gostou de se ver ultrapassado e apontou, aos seus discípulos, quem doravante deviam seguir.

  1. A expressão usada por João Baptista, para caracterizar a nova realidade, ficou até hoje a fazer parte das celebrações da Eucaristia e explicitada, precisamente, antes da comunhão.

Na história da Igreja Católica, a noção de pecado e a de perdão dos pecados foram muito elaboradas, segundo as várias tendências da história da teologia moral, sempre em desassossego. No entanto, quer no Credo Niceno-Constantinopolitano, quer no chamado Símbolo dos Apóstolos, é confessada a fé no Espírito Santo, tanto no Baptismo cristão, como na Eucaristia, para a remissão dos pecados.

No pontificado de João Paulo II, foi editado o Catecismo da Igreja Católica (1997), preparado por uma comissão constituída pelo Papa, em 1993, que integrava pessoas de vários dicastérios da Santa Sé. Esta comissão, sob a presidência do cardeal Joseph Ratzinger, cumpriu o mandato recebido. Dedicou particular atenção ao exame das numerosas propostas de emenda aos conteúdos do texto, que durante anos lhe chegaram das várias partes do mundo e das diversas componentes da comunidade eclesial[4].

O que nesse Catecismo se diz do Espírito Santo e dos pecados é de acesso muito fácil. O seu conhecimento e a sua consulta são úteis para um primeiro contacto, mas não podem substituir os estudos, as controvérsias e as experiências eclesiais que antes, durante e depois foram acontecendo e continuam.

Sobre o Espírito Santo nunca podemos esquecer a pneumatologia de S. Paulo, especialmente o capítulo 8 da Carta aos Romanos e os capítulos 12 e 13 da Primeira Carta aos Coríntios. No Vaticano II, foi verificado que a teologia ocidental precisava de aprender com a pneumatologia das Igrejas do Oriente. Foi essa carência que levou Yves Congar, O.P., a elaborar uma fundamental trilogia sobre o Espírito Santo[5].

  1. Hoje, continuamos a repetir, na Eucaristia, o Evangelho de S. João –eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. É legítimo perguntar: que significa essa repetida evocação? Acreditamos mesmo que é Jesus Cristo que tira o pecado do mundo?

A vontade de dominação de pessoas ou de povos desencadeia guerras ferozes, mesmo entre cristãos, como está a acontecer na invasão da Ucrânia. As declarações dos direitos e deveres humanos também não conseguem fazer-se respeitar. O tráfico de pessoas e de armas continua a ser um grande negócio. As medidas para vencer a crise climática mostram-se sempre inadequadas ao que é preciso fazer. As instituições para defender e promover a justiça mostram-se incapazes de vencer a corrupção que, muitas vezes, atinge as próprias instituições da democracia.

Já foi dito e escrito que o Deus, que nos criou sem nós, não nos salva sem nós. Não vale pôr tudo às costas de Deus e do seu Filho Jesus Cristo. Somos nós que estragamos a nossa vida, a vida dos outros e a natureza. Somos nós que pecamos e continuamos a pecar porque nada fazemos para a conversão dos nossos desejos, mesmo dos mais perversos.

A outra grande pergunta é esta: que seria de nós sem as pessoas, religiosas ou não, que diariamente procuram ser honestas, se dedicam às pessoas que mais precisam e alertam as sociedades para o que urge fazer e corrigir?

Pecar é estragar, ajudar é o caminho da salvação.

 

[1] Cf. Jo 1, 19-28

[2] Jo 1, 29-39; são preciosas as notas de Frederico Lourenço ao capítulo 1 do Evangelho segundo S. João.

[3] I-II, Q. 106-108

[4] Cf. Carta Apostólica Laetamur Magnopere, 15.08.1997

[5] A trilogia foi publicada nas Edições do Cerf e está traduzida no Brasil nas Edições Paulinas.


Público, 15 Janeiro 2023