|
PAULO MENDES PINTO |
A RELIGIÃO NA ESCOLA |
5. Os caminhos de outros países: as religiões na escola |
Noutros países, mesmo de tradição cultural católica, muito já foi discutido e equacionado no que diz respeito ao lugar da religião na escola. Esta questão tem sido pensada a diversos níveis, e já existe um largo lastro de reflexão que interessa apresentar em breves exemplos. Abordando o campo das políticas educacionais, encontramos essencialmente dois modelos implementados: o «ensino religioso» e o «ensino das religiões». O primeiro modelo nasce de situações constitucionais centradas na criação de idênticas oportunidades às confissões no meio escolar todas as confissões reconhecidas pelo Estado podem ter fácil acesso a um espaço lectivo onde leccionam os conteúdos relativos à sua religião. O segundo modelo, noutra dimensão teórica, parte de uma outra postura face ao fenómeno religioso, tendo como base a ideia de que todos os futuros cidadãos, todos os escolares, devem apreender um conjunto base de conhecimentos sobre as mais significativas religiões, qualquer que seja o seu credo. Vejamos alguns dos casos mais exemplificativos em ambos os modelos, tendo como base a nossa investigação e o texto já citado de Dias Bravo. |
5.1. O «Ensino Religioso» |
Espanha, caso com grande afinidade com a situação portuguesa, tinha também uma Concordata socialmente assente na preponderância da Igreja Católica. Como no nosso caso, ela era resultado do regime político ditatorial anterior que apostava num franco favorecimento ao catolicismo. Actualmente, ao abrigo da Constituição, estabeleceram-se Acordos com confissões não católicas, designadamente a Federação Evangélica, e as Comunidades israelita e islâmica. Citando o mesmo jurista, o ensino da religião e moral nos ensinos primário e secundário fundamenta-se na Constituição e na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Desta forma, o ensino da religião e moral rege-se pelos seguintes princípios gerais:
Ainda reveste este ensino da religião e moral as seguintes características:
|
|
No que diz respeito ao caso da Itália, o ensino da religião e moral fundamenta-se na Concordata com a Igreja Católica e nos demais Acordos com as diversas confissões religiosas. O ensino religioso é perspectivado não só como um facto cultural mas também como um facto confessional, sem que isto signifique um ensino catequético. A proximidade ao caso Espanhol é bastante grande. Rege o princípio da liberdade de consciência dos alunos, os quais, no momento da matrícula, devem optar, na fruição do seu direito de escolha, ou não, do ensino da religião. |
5.1.3. O caso dos EUA |
Já nos Estados Unidos o direito à liberdade religiosa consiste em o Estado não regular a matéria. Não vedando a existência de escolas privadas só para alunos de determinada religião, funciona aqui uma cláusula de estabelecimento, segundo a qual o Estado não pode sustentar com dinheiros públicos qualquer destas escolas (para os parágrafos anteriores seguimos Dias Bravo, no seu artigo na Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, Vol. 1, 2002). O caminho feito noutros países não conduziu a resoluções idênticas. Vejamos alguns dos exemplos mais tidos em conta no meio da Ciência das Religiões: o do Quebeque, o da França e o do Reino Unido. |
5.1.4. O caso britânico |
Em Inglaterra, desde o Education Reform Act (1988) que um número significativo de escolas é gerido e administrado por grupos religiosos. A situação actual começou a ser re-equacionada depois do 11 de Setembro de 2001. A política do governo de Tony Blair tem sido a de apoiar o nascimento de mais escolas confessionais. Esta decisão parece ter como base o facto de, ao criar escolas confessionais na rede escolar, estar a concorrer para que os alunos dessas escolas tenham uma qualidade garantida de ensino; estas escolas aceites e participadas pelo Estado são obrigadas a ensinar o currículo nacional e ficam sob a alçada da Ofsted, organismo público que controla a qualidade do ensino. No fundo, com esta opção política, o Estado pretende aplicar uma política de integração religiosa e étnica através da extensão de um ensino de qualidade a todos os indivíduos, qualquer que seja a sua identidade religiosa. Quando em Março de 2002 o Ministro da Educação, David Blunkett, apresentou um novo plano de expansão deste tipo de escolas (neste momento, elas são um quarto do total, cerca de sete mil), foram muitas as reacções negativas a diversos níveis. Do próprio parlamento, mesmo da bancada do partido no governo, até à imprensa e a um conjunto de diversas personalidades, muitas foram as vozes que afirmaram que a existência de escolas confessionais apenas leva os grupos religiosas a fecharem-se sobre si mesmos. Foi mesmo realizado um inquérito pela Times Educational Suplement onde 80% dos inquiridos eram a favor de uma integração obrigatória de alunos de confissões diversas nas escolas até então confessionais. Mais, neste mesmo inquérito, 43% dos inquiridos mostrava-se liminarmente contra a criação de mais escolas confessionais, sendo que apenas 25% eram a favor desta medida. Neste sentido, e depois de uma longa discussão em que não só foi equacionado o novo lugar da religião após os acontecimentos de 11 de Setembro, como foi também equacionado o problema interno da luta entre católicos e protestantes, foram as próprias confissões a avançar com a proposta de criação de escolas inter-confessionais. Anglicanos, muçulmanos, hindus e judeus preparam um novo modelo de escola em que os alunos destes diferentes credos coabitam lado a lado e, apesar de terem formação religiosa escolar diferente, discutem em conjunto questões de ética e de princípios morais. A primeira destas escolas deverá ser instalada em Westminster, Londres, mas o modelo deverá ser espalhado pelo país. |
5.2. O «Ensino das Religiões» |
O caso do Quebeque remonta aos anos sessenta do século XX em que o Estado alterou significativamente o modelo até então vigente que assumia a primazia da Igreja Católica no sistema de ensino. Em 1965 dá-se a laicização do ensino, sendo criado um Ministério da Educação onde o estado supervisionava os processos. Ao mesmo tempo, para tutelar o ensino religioso, eram instituídos dois comités: um protestante, outro católico. Ora, o comité católico tornou-se rapidamente um organismo do Estado e, em 1970, subvertendo o que pareciam ser as suas atribuições, tornava obrigatória a disciplina de Religião e Moral Católicas no ensino secundário. Em 1985 esse ensino foi tornado optativo por decisão anual dos pais dos alunos. Em 1988 o regulamento do comité católico veio consignar o direito de o aluno escolher a sua formação moral e religiosa. Ora, no caso quebequiano, o peso das permanências é bastante grande. Como vimos, após um primeiro momento em que o Estado procura um caminho no sentido da laicização do ensino, logo as novas instituições recuam até ao momento anterior. É organismo do Estado, constituído em parte por bispos, que determina as orientações religiosas da escola. Apenas em meados dos anos oitenta é que a Assembleia de Bispos admitiu que a iniciação sacramental deveria ser feita em espaço não escolar. Ao mesmo tempo, quando a obrigatoriedade da disciplina de religião católica na escola terminava, era criada uma disciplina de moral que, obviamente, era uma moral católica, não catequética, mas culturalmente confessional. Em 1999, seguindo esta linha de quase impossibilidade de modificar significativamente as instituições montadas, era editado o relatório de uma comissão ministerial, sob o título, Laicité et religions. Perspective nouvelle pour l’école quebécoise. A comissão havia sido criada em 1997 e em 1999 entregava ao ministro François Legault o texto final. Como coordenador do Comité sobre a Educação do Fenómeno Religioso, figurava Fernand Ouellet, autor já antes citado por nós. Ao longo de quase trezentas páginas, a comissão dava conta das especificidades do meio, da história recente e da mescla religiosa da sociedade, e das soluções a adoptar. No que diz respeito às orientações que emanava, elas apresentam-se em dois capítulos distintos: “Uma escolha fundamental: a igualdade ou os privilégios confessionais” e “As opções possíveis”. Para o primeiro campo de questões, a equipa lançava um conjunto de reflexões centradas nos argumentos a favor e contra uma igualdade das confissões. No segundo campo, eram, então, apresentadas as várias possibilidades possíveis, os diversos modelos, passíveis de implementar. Em três principais subgrupos, eram lançadas as opções para o “Estatuto das escolas”, “O ensino religioso” e “A animação pastoral e religiosa”. No que diz respeito ao “Estatuto das escolas”, os pontos equacionados eram:
Para a questão d’ “O ensino religioso”, eram tratados e apresentados os seguintes aspectos:
No caso d’ “A animação pastoral e religiosa”, três opções eram apontadas:
Esta comissão avançava com um largo conjunto de propostas. Num primeiro plano, propunha a criação de uma disciplina obrigatória de Cultura Religiosa no lugar das disciplinas confessionais (p. 230). Não descurando o lugar que as religiões tinham até então nas escolas, e face à proposta anterior, era sugerido que a escola desse lugar a programas de espiritualidade religiosa, dirigidos pelas confissões que o pretendessem, e suportados economicamente pelo Estado (p. 230). A opção entre disciplinas de cultura religiosa ou de ensino não confessional da religião foi profundamente equacionada: a comissão alinhava num enquadramento de uma cadeira de cultura religiosa. A justificação centra-se no peso dos legados culturais na formação populacional do país e da civilização. De qualquer forma, um ensino cultural nunca deixa de fora uma visão histórica e sociológica. Num ensino cultural, pela comissão, mais facilmente se atingem os objectivos da tomada de consciência dos alunos e da criação de modelos de igualdade. Esse ensino cultural integraria as grandes correntes religiosas do Ocidente, ainda hoje presentes na nossa forma de pensar. Esta disciplina ofereceria um quadro de reflexão e a ocasião de contacto com todo um vasto reportório de símbolos e de concepções de vida altamente enriquecedores para os alunos, ajudando-os a ter atitudes críticas, de tolerância e de compreensão face à pluralidade e à diversidade. |
5.2.3. O caso francês |
Em França desde meados dos anos noventa que existe uma grande preocupação em relação ao declínio e ao desaparecimento de uma cultura religiosa nas camadas mais jovens da população. Em 1996, entre outros acontecimentos, realizou-se na École du Louvre um colóquio sobre o título Forme et sens em que se equacionou a forma de o Estado dar resposta a esta questão que, na prática, se deve pensar, pelo menos, no campo das heranças patrimoniais e culturais. Pela mesma época, François Boespflug, Françoise Dunande e Jean-Paul Willaine publicavam a obra Pour une mémoire des religions (Paris, Éd. Découvertes, 1996), onde equacionavam longamente o lugar actual da religião na sociedade, as questões de erosão da identidade e o desaparecimento de uma cultura religiosa, centrando-se, posteriormente, no lugar e nas modalidades da religião na escola. Estes autores afirmavam a necessidade de a escola laica transportar para o seu interior a transmissão de uma cultura religiosa múltipla, centrada na objectividade do conhecimento dois credos (existentes na nação e fora dela), tomando contacto com os rituais de cada uma delas e, fundamentalmente, tendo a noção de que cada um dos credos é um sistema de verdade para quem nele crê. Desta forma, a participação e integração cívica de todos os cidadãos passaria pelo conhecimento da religião do outro, sem que a sua própria religião fosse por isso afectada. Em 1997 a editora Harmattan, pela mão de Michel Milot e Ferdinant Ouellet, publicava o volume Religion, éducation & démocratie com um amplo debate aplicado a muitos dos países onde a discussão já tinha sido lançada. Como se compreende, a questão em França era colocada, de forma crítica e sistemática, na ordem do dia. Esta obra aprofundava a questão da religião na escola, equacionando o lugar e o papel do cidadão e da educação na construção da individualidade, lançando como que a fórmula de um novo posicionamento face à religião em contexto escolar: ni l’école républicaine, ni l’école plurielle …, mais l’école de la pluralité. Nesta frase se resumia a necessidade de equacionar a escola, em contexto laico e não confessional, como uma das tarefas do Estado. Nem uma ostracização da religião, como se ela não existisse (ela está aí, queira-se ou não), nem uma escola onde todas as confissões pregam a sua doutrina, mas sim uma escola onde se aprende a ver todas as religiões. Seguindo esta perspectiva, é possível encontrar em França, desde há alguns anos, verdadeiros manuais para crianças e jovens em idade escolar, com títulos tipo Explique-moi ta religion (este específico é da autoria de Elisabeth Sebaoun e de Dominique Lemonnier, Paris, Éd. Brépols, 1995.). É um campo de obras generalistas que procuram, em tom leve mas rigoroso, apresentar uma génese de algumas religiões, bem como a sua presença nos países em questão, e as suas festas. No final dos anos noventa, Philippe Meirieu era encarregue de estudar uma reforma geral do ensino secundário em França. O seu relatório final era entregue em 1999 e, no seu ponto 3, «A Cultura Comum», realçava a necessidade de se avançar para um ensino das religiões neutro e laico (Meirieu, 1999, p. 15.). Seguindo este princípio apontado por Meirieu, a 14 de Novembro de 2001, Régis Debray entregava ao Ministro da Educação francês, Jack Lang, um relatório que levaria este a implementar uma série de medidas em volta do ensino das religiões no ensino secundário. O sentido desta inclusão no currículo acentua as preocupações gerais com o conhecimento do outro e o manancial de informação que interessa transmitir para se criar uma sociedade consciente das suas multitonalidades e dos desafios que enfrenta. Desde há muitos anos que a França se debate com fluxos migratórios constante de populações não cristãs; fluxos que interessa integrar plenamente e não encaixar em guetos. Num primeiro momento, o Estado está a levar a cabo um conjunto significativo de acções preparatórias. Assim, com a direcção da 5ª secção da École Pratiques des Hautes Études, as universidades estão a preparar-se para formar os docentes para esta área, bem como as Escolas Normais Superiores. Ao mesmo tempo, foi fundado um Instituto Europeu de Ciência das Religiões, cito em Paris, para coordenar a actividade de investigação e de docência na área. Estas alterações no campo das políticas educativa está plenamente de acordo com algumas recolhas de opinião realizadas a jovens franceses com a idade compreendida entre os 15 e os 18 anos, nomeadamente a apresentada pelo semanário La Vie. Interrogados sobre esta possibilidade, 57% dos inquiridos declaram-se favoráveis, 36% contra e 7% não sabe ou não responde. No ensino público a percentagem dos que se mostram a favor é de 52%, enquanto no ensino privado ela se eleva a 73%. Deste universo, 56% dos jovens desejam um ensino sobre todas as religiões, 37% preferem um ensino que incida sobre as três principais religiões representadas em França (cristianismo, judaísmo e islamismo) e apenas 7% elegem as religiões cristãs como únicas a ser tratadas na escola. De acordo com as respostas obtidas, os jovens consideram que tal aprendizagem seria benéfica em termos de "enriquecimento pessoal" (80%) e de uma "maior tolerância" (61%), mas são numerosos os que acreditam que ela poderá funcionar de forma inversa e levar a confrontos e a divisões (54%) ou ao integrismo (29%) . |
5.2.4. O caso brasileiro |
No que respeita à política estadual, o Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo homologou a deliberação de 27 de Julho de 2001, em que o ensino das religiões era colocado nos programas dos diversos graus de ensino. Nos primeiros anos de ensino (1ª a 4ª séries), os conteúdos estão distribuídos transversalmente por um conjunto de disciplinas já existentes. Nos anos seguintes (5ª a 8ª séries), é criada uma disciplina específica, facultativa, de religião. As reacções da maioria dos grupos religiosos foram bastante negativas, ao contrário das posições assumidas pelos meios educacionais. Esta solução, no que diz respeito aos primeiros níveis escolares, é em tudo semelhante ao que parece ser o caminho a ser traçado em França, tanto mais que ainda mais recentemente foi apresentada proposta idêntica na Câmara dos Deputados. De facto, recentemente foi apresentada na Câmara dos Deputados uma proposta nesse sentido. Wigberto Tartuce, autor do Projecto de Lei nº 5.529 de 2001 (16/10/2001), apontava a criação de uma disciplina obrigatória sobre as principais religiões no ensino secundário brasileiro. O projecto passou pelas comissões de Educação, Cultura e Desporto e de Justiça e de Redacção e foi chumbada. O autor deste projecto defendia que “o ensino das religiões terá como objectivo o conhecimento da história e do conteúdo básico, enquanto valor cultural e fundamento dos valores éticos e ensinamentos religiosos morais da nossa civilização”. A comissão para onde o projecto foi enviado entregou a análise a um relator que, articulando um parecer negativo, afirmava como falsos os seguintes pressupostos de Wigberto Tartuce:
Isto é, só dois dos pontos defendidos pelo deputado relator focavam aspectos eventualmente centrais na argumentação. De qualquer forma, a proposta foi regeitada. |
5.3. O caso português: as possibilidades em causa |
No campo dos princípios definidores do Estado, vimos que constitucionalmente o percurso de laicização dos princípios definidores e orientadores do país está, de facto, realizado: há uma assumida laicidade do Estado que nos é apresentada através de dois principais momentos (a separação do Estado da Igreja, através das reformas levadas a cabo por Afonso Costa em 1910/11, e não rejeitadas pelo Estado Novo, e as definições de laicidade do Estado depois do 25 de Abril de 1974, em que ao todo global que é o país, não corresponde legalmente qualquer religião). No campo dos suportes legais, finalmente, embora não consensual, há uma Lei de Liberdade Religiosa chegou tarde, quase vinte e cinco anos depois da revolução de Abril, mas finalmente está aprovada. Ora, chegados ao momento em que o arsenal legislativo está completamente renovado, sem se ter recorrido a leis e posturas de reacção violenta contra os poderes das religiões mais significativas, há que equacionar o lugar da religião na escola portuguesa. Deixar tudo como está, sem rumo definido, sem objectivos a cumprir e a atingir, e sem a delimitação de fins que superiormente se designam, não parece ser a opção correcta. Mais tarde ou mais cedo, há que efectuar algumas opções. Escamotear o percurso feito por outros parceiros europeus não parece ser o caminho correcto. Afirmada que está a laicidade do Estado, e firmada que é a liberdade de ensino, há que equacionar as possibilidades que se colocam ao país. Os exemplos tirados de outros países podem ser tidos de forma secundária. Vejamos, teoricamente, os modelos que se colocam como viáveis para o equacionar da questão, se bem que respondendo todos eles a funções bastante diferentes. Uma liberdade basilar tem de ser equacionada: quem vela pela educação e até que ponto o Estado pode interferir na formação religiosa dos educandos? Parece-nos ser esta uma das questões a equacionar num primeiro momento. Vejamos a situação de uma forma simples: para certas disciplinas, o Estado “obriga” os educandos à sua frequência porque a cadeira está incluída nos currículos vigentes por exemplo, todos os alunos supostamente aprendem algumas bases de Matemática, de Ciências da Natureza, de Português, de uma língua estrangeira; ora, poderá o Estado obrigar da mesma forma os jovens a aprender na escola algumas bases de religião? A questão que aqui se coloca é dupla. Podemos dizer que o ensino da Matemática é uma ferramenta essencial, sem a qual qualquer indivíduo não consegue integrar-se no mundo de hoje. E podemos afirmar ainda que a Matemática em nada entra em choque com as crenças que os pais querem passar aos seus filhos … no século XXI podemos afirmar que Matemática não é Teologia. Mas a questão não é linear mesmo nas ciências ditas de exactas; por exemplo, algumas religiões não aceitam a Teoria da Evolução das Espécies e parte do que é leccionado nas disciplinas de Ciências da Natureza e Biologia… Ora, esses alunos estão dispensados dessa disciplinas? De facto, no que diz respeito à religião tudo se complica bastante porque as fronteiras disciplinares facilmente tocam com a crença. Há que pensar no equilíbrio que se deve pretender criar entre um ensino que, não ferindo as crenças, não hostilizando o corpus teológico de certos cidadãos, forneça as ferramentas para a participação e consciência cívica de todos os indivíduos. Este é o princípio base da nossa argumentação. Este é o princípio que deve ser garantido. Sintetizando, a primeira questão a responder tem a ver com a obrigatoriedade de os alunos frequentarem uma disciplina sobre religião. Fosse ela confessional ou não (o que já não se aplica ao caso nacional). Neste sentido o percurso realizado em Portugal nos últimos trinta anos é claro e nele não deve haver lugar a recuos: só deve frequentar uma disciplina confessional quem o pedir. Ora, aqui chocamos com um ponto forte da nossa argumentação: a pluralidade do país necessita da criação de uma consciente visão outros grupos que nela se articulam; mesmo no campo de uma cultura religiosa ligada à maioria católica, como a grande parte da população estudantil, tendo o ensino religioso por optativo, não frequenta a correspondente disciplina de Religião e Moral, grande parte da população ficaria, e já fica, sem cultura religiosa alguma. Isto é, grande parte dos estudantes que terminam a sua formação secundária não têm qualquer visão dos grupos religiosos minoritários, nem apresentam uma consistente formação religiosa que lhes permita compreender a prática e a cultura religiosa da maioria. Esta situação de inexistência de uma formação mínima no campo religioso, que é o que se verifica neste momento, é extremamente grave. Face à inexistência de uma identidade e de uma comunicação de valores religiosos vigentes, há uma total anulação de qualquer forma de cultura religiosa nas camadas mais jovens. Tendo em conta o panorama actual, a premência da necessidade da compreensão dos fenómenos religiosos, quer no que diz respeito ao plano nacional, quer no que concerne à dimensão internacional, e a inexistência de referentes fortes e aglutinadores do tecido social, o Estado deveria tomar a iniciativa de formar os seus cidadãos, tal como o faz para a Matemática ou as Ciências Naturais, no campo das religiões. Não se trata de criar uma religião do Estado ou um ensino confessional segundo qualquer que fosse a crença. Trata-se de apresentar um elenco das principais religiões, caracterizando-as, tal como é em parte feito nas disciplinas de Português ao dar-se a história da literatura (ao falar-se de Gil Vicente ou de Camões nenhum professor espera que os seus alunos passem a escrever como cópias desses autores), ou de Filosofia ao percorrer alguns dos pensadores mais significativos. De facto, como vimos pela Constituição vigente, o Estado, nestas circunstâncias, não pode efectuar um ensino confessional. Exactamente neste sentido constitucional, há que perceber a diferença entre duas práticas educativas possíveis, sendo que só uma delas pode ser tomada pelo Estado como tarefa escolarizada. Estamos a falar da distinção entre «ensino religioso» e «ensino das religiões». Quando falamos em «ensino religioso», estamos a dar a primazia ao ensino de uma religião, sob a sua vertente confessional; trata-se da situação vigente, em que cada confissão pode almejar a ocupar um espaço lectivo. Neste caso, o Estado, através da sua rede de escolas, possibilita o ensino confessional aos credos que assim o desejarem. Os pais dos alunos escolhem a religião que desejam ser a dos seus filhos. Nesta opção, podem surgir algumas variantes significativas:
Em todas estas possibilidades, o Estado nunca poderá assumir estas disciplinas como suas. Toda a gestão dos conteúdos pertence, em absoluto, aos credos que requerem esses espaços escolares e se responsabilizam pela sua leccionação. Mudando o enfoque, quando falamos de «ensino das religiões» estamos a falar de uma realidade curricular totalmente diversa. Esta noção é radicalmente laica e pretende-se aplicada a todos os grupos religiosos tal como o é a disciplina de Matemática ou Ciências Naturais, sejam os seus conteúdos coincidentes, ou não, com os credos dos educandos e dos encarregados de educação. Neste caso, estamos a fazer apelo e a integrar as reflexões antes apresentadas através da obra de Michel Milot e Ferdinant Ouellet (Religion, éducation & démocratie): ni l’école républicaine, ni l’école plurielle…, mais l’école de la pluralité. O fim que neste caso se deseja é, sendo a religião uma realidade que abrange toda a sociedade, quaisquer que sejam os cultos em causa, que todos os alunos aprendam os rudimentos sobre todas as religiões presentes no seu país e com significado a nível mundial. O Estado, pensando na multiculturalidade que o compõe e na teia de relações internacionais que estabelece, oferece uma iniciação a uma História e Sociologia das Religiões; é a formação cívica que aqui se aponta e não a religiosa. Neste caso, não se tratando de um ensino confessional, o Estado já pode dirigir toda a articulação curricular e gestão escolares dos programas e professores. Logicamente, e estando nós a tratar de um universo de questões que implicam o campo das noções basilares que os cidadãos têm do mundo, a montagem de uma disciplina desta natureza deveria ser alvo de um amplo consenso. Defendemos que já existe em Portugal alguma reflexão e algum percurso realizado sobre a temática. Mesmo alguns campos confessionais têm mostrado uma significativa abertura em direcção ao equacionar desta melindrosa questão. De forma sistemática e profunda, pela mão de Frei Bento Domingues e do Pastor Dimas de Almeida, entre outros docentes e investigadores de que cito Alfredo Teixeira, Clara Pinto Correia e eu próprio, a Universidade Lusófona criou uma licenciatura em Ciência das Religiões, acompanhada por um Centro de Estudos com o mesmo nome, que desde há quatro anos apresenta um trabalho consistente sobre a temática . Se algum caminho se encetar na sociedade nacional, este projecto totalmente pioneiro deveria nele ter um peso significativo. No que diz respeito à docência, o Estado quase nada necessitaria de investir. Ora, e num primeiro momento, poderiam ser rentabilizados nesta disciplina os actuais docentes em excesso nas áreas de História, Filosofia, Sociologia e Antropologia. Docentes já com vínculo ao Ministério da Educação que, neste momento, não encontram grandes atractivos nas suas funções docentes, muitas vezes com «horário zero». Estes docentes são, ao contrário dos que já leccionam as disciplinas confessionais, os mais habilitados pela proximidade das abordagens em causa. |