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No passado dia 13 de Agosto, decorreu em Fátima mais uma das muitas romagens ao santuário. Desta vez, foi a chamada “oferta do trigo”, que nasceu em 1940 pela mão da Juventude Agrária Católica, em plena época das campanhas dos cereais do Estado Novo. Tata-se de uma cerimónia recente num santuária também ele novo, sem aparentes heranças cultuais longínquas. Mas esta cerimónia lançada há seis décadas e tão rapidamente integrada no calendário do santuário como um das seus mais importantes momentos, não faz mais que repetir e recriar um dos conjuntos de ritos agrários mais antigos e mais importantes da bacia do Mediterrâneo. Desde os tempos mais recuados da neolitização (que tem como base a domesticação dos vegetais e dos animais e, assim, o domínio directo sobre os processos de criação e angariação de alimentos) que o Homem tem a necessidade de agradecer ao divino aquilo que ele lhe dá para o seu sustento. Esse agradecimento é, normalmente, praticado com os produtos das primeiras colheitas, as primícias: os primeiros frutos, os primeiros grãos, as primeiras crias, são dadas à divindade que as engrendrou. O trigo ganha especial peso neste quadro porque, para além de ter sido a base da alimentação das populações até há bem pouco tempo, enquanto cereal, ele é também o máximo símbolo da renovação ciclica dos campos, da vida. No momento em que a vida parece abandonar os campos, em que tudo fica aparentemente estéril, seco e incapaz de produzir ... o trigo está, então, pronto para ser colhido. Mais, apesar de também ele estar seco (só assim é que se pode colher), sabe-se que meses depois poderá ser lançado à terra e germinará, dando novos frutos, garantindo a alimentação e a continuidade da comunidade. Os cereias são a perfeita imagem do ciclo de fertilidade. Aparentemente morto na estação quente, ele contém em si a possibilidade do nascimento nas estações chuvosas, gerando o verde e a possibilidade da recriação. Não é de estranhar que alguns dos mais recuados ritos iniciáticos que formulavam a salvação para os seus crentes, se fundamentassem neste ciclo imparável e interminável de morte e ressurreição da vida: a deusa grega Deméter (cujo nome tem como base “a mãe”) geria a fertilidade dos campos gregos e dava a salvação a quem se iniciasse nos seus mistérios em Elêusis. Mais, profundo sinónimo desta noção de ressurreição do mundo e da vegetação, a deusa vivia o mais doloroso sofrimento ao ver, no Verão, a sua filha Perséfone, ser raptada pelo rei do mundo dos mortos ... nessa altura tudo secava, tudo morria ... só a esperança na repetição ciclica e eterna do regresso da filha da deusa à terra mantinha a consciência de que tudo regressaria a uma normalidade (também ela ciclica, portanto, provisória, até ao próximo Verão). As premências do Neolítico já nada nos dizem neste ano de 2002; os Mistérios de Elêusis e os seus ritos agrários, possivelmente com mais um milénio de antiguidade que a era cristã, já quase desapareceram na nossa memória; o acesso aos alimentos nos países europeus já não está totalmente dependente do clima e dos ciclos da natureza. O medo do fim da nartureza, esse sim, mantém-se, mas com novas simbologias: são os incêndios, as cheias, as catástrofes climatéricas, aparentemente, cada vez mais comuns e frequentes, é o famoso El Niño que nesta altura devasta a Europa central semeando a morte, tal como o fazia dantes a rigorosa estação seca. |
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Paulo Mendes Pinto Especialista em História e Fenomenologia das Religiões (Universidade Lusófona, Lisboa) (paulopinto@mail.vis.fl.ul.pt) |