Ao e-mail com Paulo Mendes Pinto. Entrevista de Maria Estela Guedes
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"A morte de Deus que os filósofos de há cem anos decretaram
redundou em ressurreição..."

Paulo Mendes Pinto, historiador das religiões

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TRIPLOV - Paulo, temos no TriploV a notícia de um curso a que estás ligado, sobre o Egipto. A quem se destina, qual a matéria a leccionar, e o que há de novo na egiptologia?

PAULO MENDES PINTO - Neste momento estão a ser lançados vários cursos no campo das religiões antigas. O que há de comum nesses cursos é o facto de não se pedir qualquer pré-requisito para a sua frequencia. O gosto pelo Egipto Antigo, nomeadamente, tem estado bipolarizado em duas formas de estar antagónicas e em continuado choque: a egiptologia (uma visão científica do passado) e a egiptomania (uma visão não fundamentada, muitas vezes bastante altamente imaginativa do passado). Ora, o que se tem verificado, é que a egiptologia tem estado fechada no campo universitário; a egiptomania, não, anda por ai, vai ao encontro das pessoas, cativa-as. Nestes cursos pretendemos levar a visão científica, sustentada do passado, a tal egiptologia, às pessoas. É muito certo dizer que toda a egiptomania é grandemente falsa, mas não podemos acusar as pessoas que simplesmente querem saber mais. Temos é que ir ao encontro delas e dar-lhes as ferramentas críticas mínimas. De resto, a egiptologia em Portugal cresce a olhos vistos. Entre mestrados e doutoramentos, há já uma massa crítica bastante significativa, e uma vontade de construir muito grande.


TRIPLOV - Outra das tuas actividades relaciona-se com a Cátedra de Estudos Sefarditas. Gostava que falasses um pouco dos objectivos da investigação que aí se desenvolve.

PAULO MENDES PINTO - A Cátedra de Estudos Sefarditas vai ao encontro de uma enorme lacuna na historiografia portuguesa: o conhecimento da História dos judeus de origem portuguesa. Esta instituição existe há seis anos e já tem o seu campo de actividades muito bem definido: uma revista, os Cadernos de Estudos Sefarditas (será publicado o terceiro volume ainda em Abril), uma Newsletter (com nove números publicados), um ciclo de conferências anual (sempre em Maio), e vários Cursos Livres ao longo do ano lectivo. A juntar a estas actividades, a Cátedra de Estudos Sefarditas apoia toda a investigação na área através de uma biblioteca especializada e de um Centro de Documentação. Neste momento, em parceria com o Centro de História da Universidade de Lisboa, temos em pleno andamento um projecto de investigação que tem como principal fim a edição de um Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses (corpo prosopográfico de mercadores e gente de trato).
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TRIPLOV - Também és co-responsável pela publicação de uma revista sobre religiões...

PAULO MENDES PINTO - Sim, a Revista Portuguesa de Ciência das Religiões vai no seu quarto volume. Essa revista tem como base da sua existencia a necessidade de congregar os investigadores do campo das religiões num projeco que dê visibilidade e consistencia à área. A maioria dos colaboradores não pertence ao Centro de Estudos em Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, mas sim às mais variadas instituições nacionais e internacionais.

TRIPLOV - Nessa revista, a nota dominante é a científica: ela reclama que há uma ciência das religiões. Não quero concordar nem discordar, apenas sinto alguma curiosidade por essa preocupação, pois, para mim, um trabalho sério e cujo objectivo seja a verdade, não tem obrigatoriamente de ser científico. Isto é, não vejo que a metodologia científica seja só por si garantia de seriedade ou de busca da verdade... Acho que a essa reivindicação subjaz um desapreço pelas artes e pelos próprios textos religiosos, como se houvesse uma hierarquia de saberes em que a ciência ocupasse o topo, e a filosofia, a teologia, a religião, a arte, etc., fossem serviçais dela, ou nem sequer reconhecidas como portadoras de conhecimento...

PAULO MENDES PINTO - Não. Basta tomar como exemplo o nosso último volume para se perceber que não temos essa perspectiva; para além de um dossier sobre «Música e imaginários religiosos», editamos a partitura de uma música do Eurico Carrapatoso... uma música não é ciência. Ora, o que se passa por detrás dessa opção vocabular é, para mim, uma duplicidade de opções imponderáveis: por um lado, há que criar um espaço para uma área que não tem tido direito a lugar no nosso quadro cultural (a religião tem sido objecto, o que é correcto, da História, da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia, etc., mas não tem tido direito a espaço próprio), Por outro lado, há que credibilizar o estudo das religiões, afastando-o de uma matriz simplesmente confessional. Não há nada de mal, nem de errado, no fenómeno de as próprias crenças e credos desenvolverem estudos, eles não se podem é remeter apenas para esse local.

TRIPLOV - Como vês tu o destino da religião ou o seu estado presente? Achas que tendemos para nos desligar dela ou pelo contrário?

PAULO MENDES PINTO - Seguindo frases feitas, a morte de Deus que os filósofos de há cem anos decretaram redundou em ressurreição... A religião é uma das dimensões mais importantes da actividade cultural e mental do Homem; descurá-la é subestimá-la e incorrer numa tremenda falha civilizacional: a religião não é, necessariamente, contrária à evolução. Se o fosse, não se estaria aqui.

TRIPLOV - Em alguns textos teus no TriploV, falas do ensino. Que lugar ocupa nele a religião?

PAULO MENDES PINTO - A situação tem sido muito debatida em alguns paises. Em França, por exemplo, tem gerado longas e ricas discussões sobre a temática. Infelizmente, em Portugal, nada tem acontecido, mas inevitavelmente, a situação da religião na escola será equacionada muito brevemente. A solução encontrada em muitos paises tem sido a de criar uma disciplina (num ou em dois anos lectivos) de História e Sociologia das Religiões.

TRIPLOV - Um comentário ainda hoje vulgar, sobretudo entre as pessoas de formação científica, ou cientistas, como é o caso de colegas nossos, é o de que a religião é obscurantista. Que te apetece dizer sobre o assunto?

PAULO MENDES PINTO - Obviamente, trata-se de uma falsa questão. A religião não é obscurantista. A religião usa é uma linguagem e uma lógica que não são as científicas. A religião não usa ferramentas mentais cartesianas, donde, não pode ser avaliada e interpretada pela ciência; tal como a ciência não pode ser interpretada pelo discurso religioso. A falha de muitos é essa: misturar o imiscível. Nem a  religião se pode compreender pela ciência, nem a ciência se pode ler pela religião. Os confrontos residem nessa mistura.

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PORTUGAL - 2002/