PAULO MENDES PINTO
DOS DESERTOS DESTE MUSEU 8.000 ANOS DE HISTÓRIA VOS CONTEMPLAM
O porquê deste dossier

O património da humanidade está em acentuado processo de destruição. Em 2001 foram destruídos, por tropas fundamentalistas islâmicas, os Budas de Bamian. Em 2003, foi saqueado, por permissão ou demissão das tropas que lutam contra esse mesmo fundamentalismo, o Museu de Bagdade.

Em comum nestes dois actos trágicos contra a memória e a história da humanidade: a brutalidade, o choque que nos foi transmitido pela falta de sensibilidade, pela irresponsabilidade perante tais tesouros.

Já diversas publicações nacionais dedicaram páginas centrais a este último acontecimento (a revista História, o Jornal de Letras, entre outros). Mas nunca é demasiado lembrar e invocar este terrível facto: o museu onde estavam depositadas muitas das peças mais importantes para a compreensão da génese da civilização, da nossa civilização, foi saqueado.

E por mais que agora se saiba que, afinal, não foram saqueadas a totalidade das peças, que "apenas" umas quantas desapareceram, só a possibilidade de o acto ter acontecido leva-nos a colocar muito das nossas bases culturais em causa, muito da nossa forma de ver o outro.

É claro que as tropas de ocupação, ou, como elas próprias mais gostariam de ser tratadas, de libertação, não eram portuguesas; grande parte delas não eram sequer europeias. Mas é toda a imagem do ocidente que menospreza o oriente em que nasceu que deve ser revista e problematizada.

A evolução da história da humanidade tem-nos apanhado nos mais profundos e falhos lugares de memória. Desde tempos distantes que aqueles que questionam a evolução das populações afirmam que uma cultura que num determinado momento está no auge, estará decadente no momento seguinte.

De facto, inegável prova dessa voragem dos tempos encontramos na situação actual: neste momento é o Iraque que nos é apresentado como a barbárie que coloca em perigo a civilização e que, de forma cada vez mais persistente, é o centro das ameaças de um conjunto de nações, supostos bastiões da nossa civilização, dos nossos valores.

E nada deste quadro está errado. O Reino Unido e os EUA são a face mais visível e, talvez, legítima do Ocidente, tal como o Iraque é, porventura, a face mais expressiva do berço desse mesmo Ocidente.

Napoleão, há dois séculos, exprimia numa frase, na qual eu me inspirei para o título deste texto, a reverência e a admiração perante os magníficos monumentos da antiga civilização do Egipto. Mais que no Egipto, é em territórios do actual Iraque que o nosso berço se encontra.

Muito do que foram algumas das principais revoluções da humanidade estão directamente ligadas aos seu território (a agricultura, a roda, a cerâmica, a escrita).

Muito do que foram algumas das mais brilhantes cidades do planeta encontram-se nesse mesmo Iraque.

Podemos começar pela mítica Bagdad, uma das mais importantes metrópoles islâmicas; mas podemos referir as sumérias Ur e Uruk onde a escrita foi inventada; Acad, o berço do primeiro grande império da humanidade; a mítica Babilónia, onde foi forjado um dos primeiros grandes códigos legais; Assur e Nínive, duas das mais importantes cidades dos Assírios, um dos mais potentes e longos impérios.

E o mais brutal destes factos que são a base da nossa civilização, é que, há cinco mil anos, quando tudo nascia ali, nesse terreno que é agora o Iraque, entre os rios Tigre e Eufrates, o resto do mundo, Europa ou América, encontrava-se na mais profunda inexistência civilizacional. Agora, tudo é totalmente diferente, tudo se inverteu. Ambas as identidades se construíram com base na mesma herança. Porque, de facto, nós, o Ocidente, estamos ali, naqueles desertos onde se procuram mísseis que teimam em não aparecer.

Pegando nesta problemática central dos tempos actuais, pedimos a um grupo de prestigiados cidadãos ligados à História, à Museologia e ao Património Arqueológico, que reflectissem brevemente, mas sem constrangimentos, sobre este episódio.

Mais que um normal in memoriam, pretendemos com este dossier usar um infeliz e trágico acontecimento do passado recente como primeiro passo para uma reflexão mais consistente sobre o património da humanidade, sobre os legados civilizacionais que são de todos nós.

O património do Museu Nacional do Iraque era de todos nós. Agora, em grande parte, já não.

 
PAULO PINTO. Historiador das Religiões. Univ. Lusófona
(paulopinto@mailvis.fl.ul.pt)