Paulina Chiziane, autora que toda mulher deveria conhecer

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

A exemplo do que já fizera em Dicionário de personagens da obra de José Saramago (Blumenau-SC: Editora da Fundação Universidade Regional de Blumenau – EdiFurb, 2012), levantamento de 354 protagonistas que perpassam os romances e peças teatrais do Prêmio Nobel de Literatura de 1998, feito a partir de pesquisa que durou 15 anos e contou com a colaboração de mais de oito dezenas de seus alunos, a professora, contista, ensaísta e crítica Salma Ferraz acaba de lançar Dicionário de personagens da obra de Paulina Chiziane (São Paulo: Todas as Musas, 2019), publi cado com recursos do Ministério da Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura.

A obra é resultado de um trabalho coletivo que durou cinco anos e foi realizado por uma equipe coordenada pela professora Salma Ferraz, incluindo 53 alunos de graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o auxílio de duas alunas da Pós-Graduação em Literatura Brasileira da mesma UFSC, Patrícia Leonor Martins e Márcia Mendonça Alves Vieira. Como diz na apresentação que escreveu para este livro Tania Macedo, professora titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e diretora do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP), este trabalho constitui uma espécie de “mapa” da escrita da autora moçambicana Paulina Chiziane (1955) que vai muito além daquilo que o título da obra deixa entrever.

Além de relacionar personagens que aparecem em vários livros de Paulina, o Dicionário traz uma fortuna crítica e uma biografia da autora, bem como duas entrevistas concedidas por ela para órgãos de imprensa do Brasil e do exterior e dois ensaios de especialistas. Um dos responsáveis por um desses ensaios é este articulista, autor de “O feminismo negro de Paulina Chiziane”, originalmente publicado em Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana, de Rita Chaves e Tania Macedo, organizadoras (Maputo: Marimbique Conteúdos e Publicaçõe s, 2012, pp. 33-41). O outro ensaio é “Adão e Eva na obra de Paulina Chiziane”, de António Manuel Ferreira, professor associado com agregação do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. Ao final, o livro traz ainda uma fortuna crítica de textos acadêmicos dedicados à obra da autora moçambicana.

Como Paulina Quiziane é autora de mais de dez livros publicados em Portugal e Moçambique, incluindo obras em co-autoria (dois volumes de ensaios e um livro de poemas), as autoras decidiram concentrar os estudos nos cinco romances da escritora: Balada de amor ao vento (1990), Ventos do apocalipse (1993), Sétimo juramento (2000), Niketche: uma história de poligamia (2002) e O alegre canto da perdiz (2008), além dos personagens dos contos “As andorinhas” (2013) e “As mãos dos pretos” do livro As Cicatrizes do amor, este último incluído também na Antologia do conto moçambicano, organizado por Nelson Saúte (2007).

II

 

Para quem não sabe, é preciso que se diga que Paulina, entre as escritoras de todo o mundo, é uma das vozes mais fortes e lúcidas em favor da emancipação feminina, pois denuncia com todas as letras “as ideologias ditadas pelo poder sob a máscara da criação divina que permitem ao homem ser governador dos destinos da mulher”. No artigo “Eu, mulher… por uma nova visão do mundo”, que serve de apresentação para este livro, a escritora conta que foi a condição social da mulher que a inspirou a escrever seus contos e romances.
Ela conta que, quando começou a escrever, muitas pessoas a consideraram uma mulher frustrada, desesperada, destituída de razão. “Foi um momento terrível para mim. Mas, por outro lado, estas atitudes tiveram um efeito positivo porque forçaram-me a demonstrar pela prática que as mulheres podem escrever e escrever bem”. Aliás, como este articulista já escreveu há tempos, a literatura produzida por mulheres mostra outros ângulos que os escritores homens não conseguem ver.

Nascida em Manjacaze, na província de Gaza, região Sul de Moçambique, Paulina viveu no campo até os sete anos de idade, quando se mudou para os subúrbios da cidade de Maputo, onde frequentou estudos superiores de Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, sem concluí-los. Nasceu numa família de protestantes onde se falava as línguas chope e ronga. Aprendeu a língua portuguesa na escola de uma missão católica. Participou ativamente da política à época da independência de seu país como membro da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo ), tendo sido eleita em 1994. Depois, trocou a vida partidária para se dedicar à escrita e ao trabalho na Cruz Vermelha. Hoje, vive em Matola, cidade próxima a Maputo, onde escreveu sua obra debaixo de estrondos e ameaças de morte por causa de confrontos entre tropas governamentais e rebeldes.

Em Balada de amor ao vento, seu primeiro romance, Paulina recupera a história dos povos rongas e chopes, que ouviu em sua infância, principalmente pela voz de sua avó. A narrativa ocorre exatamente nessa região, a de Gaza, considerada a mais machista do Moçambique, onde a mulher, além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de fazê-lo de joelhos. Por isso, pode-se dizer que a literatura que Paulina produz traz o olhar do feminismo negro, que é diferente do feminismo branco, especialmente o europeu, porque muito mais trágico.

III

Entre as centenas de personagens da obra Paulina, uma das mais carismáticas é Rami, narradora e protagonista de Niketche: uma história de poligamia, livro que recebeu o Prêmio José Craveirinha de 2003. Tanto que, entre todos os verbetes, é o que mais espaço ocupa no livro (cinco páginas). O nome verdadeiro de Rami é Rosa Maria, uma mulher do Sul, bela e inteligente, que durante a juventude havia sido disputada por vários homens, mas que se casou com Tony que, seguindo a tradição local, sempre teve muitas mulheres, ainda que a esposa sempre lhe tivesse sido fiel.

Neste livro, aliás, o leitor pode encontrar o ponto central da literatura questionadora do mundo produzida por Paulina. Aqui se pode ler o seguinte: “Até na Bíblia a mulher não presta. Os santos, em suas pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é um animal nutridor de maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. É verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas, escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não fazemos falta nenhuma. Mas se não fazemos falta nenhuma, por que é que Deus nos colocou no mundo? E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? (…)

IV

Com mais de uma dezena de livros publicados, Salma Ferraz, professora titular da UFSC em Florianópolis, é graduada em Letras pelas Faculdades Integradas Hebraico-Brasileira Renascença de São Paulo (1987), com mestrado (1995) e doutorado (2002) pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp). Foi bolsista da Fundación Carolina na Universidad Autónoma de Madri (2009). Fez pós-doutoramento na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2013. Dirige o Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura (Nutel) da UFSC.

É autora de O quinto evangelista: o desevangelho segundo José Saramago (Brasília: UNB, 1988); Maria Madalena: das páginas da Bíblia para a ficção, org. (Maringá-PR: Eduem, 2011); As malasartes de Lúcifer: textos críticos de Teologia e Literatura, org. (Londrina-PR: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2012); As faces de Deus na obra de um ateu: José Saramago (Blumenau-PR: EdiFurb, 2012); Dicionário machista: três mil anos de frases cretinas contra as mulheres (São Paulo: Jardim dos Livros, 2013); Sobre o vampirismo: de Drácula a crepúsculo: a saga do vampiro na cultura ocidental, org. (São Bernardo do Campo-SP: Todas as Musas, 2017); e Teologia do riso: humor e mau humor no Cristianismo, org. (João Pessoa-PB: Eduepb, 2017), entre outras obras.

Patrícia Leonor Martins, graduada em Letras pela UFSC (2005), tem mestrado em Literatura (2017) e é doutoranda em Literatura na UFSC. Foi professora nas disciplinas de Comunicação e Expressão e Metodologia Científica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), de 2011 a 2013. Pesquisadora do Nutel e bolsista do programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), elabora estudo sobre a diabo enquanto personagem na literatura russa.
Márcia Mendonça Alves Vieira, graduada em Letras pela UFSC, é mestranda na mesma universidade. Pesquisadora das obras e das vidas de Friederich Nietzsche, Walter Benjamin e Martim Heidegger, é revisora crítica e textual da Revista UOX, do curso de Letras do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC. Tem contos e poemas publicados na Revista Mafuá (2016).


Dicionário de personagens da obra de Paulina Chiziane, de Salma Ferraz, Patrícia Leonor Martins e Márcia Mendonça Alves Vieira. São Paulo: Editora Todas as Musas, 1ª ed., 320 págs., 2019. E-mail: todasasmusas@gmail.com Site: www.todasasmusas.org