MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Novembro, tempo chuvoso. Porém, a despeito disso, a Quinta de Serralves está de uma beleza deslumbrante, com as suas exposições, A Casa, de Manoel de Oliveira, as Liquidambares de folhagem dourada a atapetar as avenidas, e agora com a novidade do passeio na copa das árvores, o Treetop Walk. Facilmente a tarde toda se passa em deambulações entre realidade e imaginário.
O objetivo da visita foi a pintura de Paula Rego, sob o título de O grito da imaginação. Causa sempre um choque observar os quadros desta pintora classificada como surrealista e expressionista, por muito que já tenhamos visto quadros e exposições dela. Causa choque, não pela surpresa, sim pelo que há de inesgotável na sua capacidade de interação, como se as imagens estivessem em movimento de agressão contínua. Porque as paixões, em Paula Rego, situam-se no oposto do romantismo. Nem amor nem candura transparecem, pelo contrário, embora, paradoxalmente, devessem estar presentes, já que abundam as personagens de crianças.
Paula Rego está cotada muitíssimo alto, quer em termos de valor monetário, quer de posição entre os seus pares. Segundo a Wikipédia, em Inglaterra, onde vive há décadas, é considerada um dos quatro maiores pintores vivos. Não é fácil discordar.
Seja boa então a oportunidade para a revermos e discutirmos a sua força, a origem do choque e da surpresa, em que ela é prodigiosa.
Choca, em primeiro lugar, a sua explosiva sexualidade, muito agressiva, de enorme coragem em meios puritanos, sobretudo antes da Revolução. Com efeito, ela não recusa expor a mulher (e animais) nas posições mais óbvias e com parceiros equívocos, em especial o cão. Falando de cães, privilegiados pela pintora entre os outros animais, ficamos na dúvida se eles são cuidadosamente alimentados como crianças, ou se as crianças é que são retratadas como animais de estimação.
A ilustração dos livros para crianças, em tempos estudada por Paula Rego, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, está abundantemente documentada nesta mostra. Aqui e ali, patenteiam-se as referências aos grandes autores e grandes personagens, sem distinção entre Alice, a Dama de pé-de-cabra ou o Lobo Mau. A tendência é para as juntar, de modo heteróclito. Também o Mau e o Mal coabitam, nem sempre se distinguindo bem. No entanto, surpreendem sempre pela audácia e imaginação, como no caso da mulher de pistola, que parece ter assassinado um boneco de pano, na presença de animais repulsivos ou demoníacos, tal como na fortíssima série da Possessão, com a mulher em posições impróprias, deitada na cama.
Os quadros contam histórias, é constante a função narrativa, na omnipresença das mulheres, formidáveis de força física, e na ausência ou invisibilidade dos homens, quem sabe se ocultos sob a máscara de animais. Nesta pintora, domina a mulher, o homem é uma figura muito secundária.
A obra de Paula Regro é impressionante, de todos os pontos de vista, artístico, social e ético. Na verdade existe nela um realismo chão, de mulher de grandes patorras descalças assentes no soalho, realismo das necessidades primárias atento ao social; subjaz à imaginação tão estrondosa que conduz o lápis e o pincel a estilos tão longe da representação do quotidiano que recebem a etiqueta de expressionismo e surrealismo.
Para sintetizar, o mínimo que se pode dizer da pintura de Paula Rego é que ela é fabulosa: portadora de fábula de um lado, e riquíssima do ponto de vista artístico.
Série «Possessão».
MARIA ESTELA GUEDES