Ana Luísa Janeira – Emanuel,
ao longo destes quinze dias, tomámos consciência de que o Museu do Trajo
de S. Brás de Alportel é muito rico. Como classificaria a colecção da
família Passos que nele se conserva?
Emanuel Sancho – Primeiro é preciso ver a importância da família Passos.
Ela reflecte-se em S. Brás de Alportel no nome das ruas e no largo com o
busto de Bernardo de Passos. É uma grande família. E temos de ver o que
nasceu desse ambiente familiar. S. Brás tem um momento de grande
importância nas primeiras décadas do século XX, importância vinda da
riqueza da cortiça, que deu origem a uma geração brilhante. Tudo isso se
concentra na família Passos: Boaventura é ficcionista e dramaturgo,
Bernardo é poeta e político, Virgínia é pintora, etc.. Há uma concentração
brutal na família, daí que o Museu lhe dê relevância.
ALJ - Sim...
ES
-
Há uns 10 anos, travámos conhecimento com a Drª Graça Passos… Já
praticamente não existem Passos em S. Brás… A Drª Graça mostrou interesse
em que o espólio fosse entregue ao Museu. Recebemos assim um acervo de
esculturas que estavam num armazém a degradar-se; as esculturas estão
melhor agora, já se concluiu a transferência. Como há muitas em mau
estado, temos recebido apoio de conservadores particulares, a quem a Drª
Graça pagou, para estabilizar peças que
estavam a fragmentar-se. Um dos problemas das esculturas é serem de
barro não cozido, por isso são sensíveis a baixos níveis de humidade,
podendo pulverizar-se. Neste momento, surge a possibilidade de um acordo
entre nós e o Museu de Faro. Como o Museu de Faro tem secção de restauro,
vai ocupar-se deste acervo de esculturas, que pertencem a dois membros da
familia, Joaquim e Rosalina Passos.
ALJ – E o que mais há no espólio?
ES – Documentos. O acervo documental tem importância política dada a
actuação da família. Mas também nela existe importância literária e outra.
Existe ainda um núcleo fotográfico, com cerca de 500 fotografias,
importante para a história local. Os documentos em geral encontram-se em
mau estado, em especial a correspondência, por isso tentamos suster a
degradação do papel. Falta o tratamento arquivístico do material, que pode
ser consultado, mas com reserva.
ALJ – E são muitos?
ES – São uns milhares de documentos que incluem correspondência particular
e oficial, escrituras, manuscritos de obras literárias, primeiras edições,
etc..
ALJ – Numa perspectiva de que não há museu
sem investigação, e na medida em que um país como o nosso deve apostar em
trabalhos académicos, que perfil de investigador estará mais adequado ao
tratamento desta colecção? Isto porque parece importante que numa tese, de
mestrado ou de doutoramento, houvesse alguém que a trabalhasse, de molde a
articulá-la com outras situações, caso da efervescência da República, em
que se despreza o contributo local.
ES – Sim, é um erro a insistência na
investigação sobre grandes figuras e capitais, quando seria possível
encontrar interesse na participação local. Quanto ao tipo de tratamento, o
que faz falta é o arquivístico, pois não deve ser disponibilizado sem
catalogação prévia.
ALJ – E
complementarmente, que mais?
ES
– Sentimos a necessidade de integrar na história da arte a obra destas
pessoas, a que movimentos pertencem, caso, por exemplo, das esculturas. Na
parte literária, também não há ainda crítica a Bernardo de Passos, pelo
que sentimos fazer falta um estudo sério da sua obra e da de Boaventura,
cuja documentação aqui conservamos. Em finais do século XIX,
principalmente Bernardo Passos pai, proprietário e jornalista, e outras
personalidades, protoganizaram uma frente republicana cuja importância foi
tal que S. Brás de Alportel é referida como a Barcelona algarvia. Eram
pessoas muito esclarecidas politicamente, as quais geraram uma dinâmica
que se prolongou até à República, daí o seu peso no poder nacional. A tal
ponto que o próprio Machado Santos apresentou no Parlamento a proposta de
elevação de S. Brás de Alportel a concelho. Isto revela como os políticos
locais conseguiram influenciar as decisões do poder central. No caso, foi
instigado por Bernardo Passos pai e João Rosa Beatriz, que contituíam, com
Júlio César Rosalis, o Triângulo Maçónico de S. Brás.
ALJ – Do pouco que ainda
conheço da família, a importância atribuída ao poeta tem obscurecido os
restantes membros, pelo que será importante fazer justiça aos demais,
aspecto que irá favorecer inclusivamente a interpretação da sua obra
literária. Concorda?
ES – Até acrescentaria
que, ainda antes de o integrar na família, seria importante integrar todos
os Passos no contexto da época. Uma certa geração usa os recursos
financeiros da cortiça para construir património edificado, mas também
património cultural: vão para as universidades, estudam,
e como consequência criam uma sociedade intelectual em que os
Passos se revelam centrais.
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