Passos na floresta

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


 1.  Os Vencedores

 

De olhar vítreo afastou-se, sem olhar para trás e sem se despedir.

Sentiu-se vulnerável e achou mal por ser um desperdício.

No início, quando ia ao cinema, nunca me perguntava se alguém conseguia fazer uma melodia com outras canções. Durante 20 anos, viemos ver elementos destas histórias, nas férias. Muitos que venceram no mundo: o Clive James, que estaria na foto, o T.S. Eliot, o mais belo humanista da história da literatura contemporânea, a Sarah Trefethen, que era mais simples, o meu colega teatrólogo, o MC Sammy Crees, que era mais radical e a minha actriz grávida. Fiquei irritado com a minha falta de visibilidade e de carácter que era esperada por todos e que, nas noites de Sábado, eu acompanhava até ao metro. A minha melhor amiga Alice Cope, na treze ou na doze, nunca contou o que se passou com o meu irmão, Dan, que era arquitecto em Roma. Vivemos todos lá, numa casa, durante um ano e três meses, quando o trabalho corria melhor e tudo se passou de repente sem que nenhum de nós tivesse percebido o que aconteceu entre Alice e Dan.

Sentiu-se vulnerável e achou triste por ser um desperdício.

Pensou, ainda, nos muitos que venceram no mundo.

 

2. Como um Gato

 

(…)

Vieram vê-lo de todos os cantos daquela terra, que andam a farejar-lhe a morte, mendigando nas esquinas e vielas, a rasgar as próprias roupas. É quase inumar-lhe a morte. Devemos mudar.

 

4.

 

Vou sendo o seu parceiro, ele que é muito alto, e muito rico, seria um dandy valendo até para cima de um florin!

Obrigado por me ter ajudado, irmão!

5.

 

Vou actuar como fogo de artifício, como um incêndio que se aproxima, vou repetir os actos de arrobo, determinação de aço.

Ainda ouvi o seu afecto, pleno de ternura e desprezo!

Enquanto diz: «Estou sozinho» a voz dele só grita: «Ah, no entanto, fá-lo comigo»!

 

6.

 

Vou actuar como um centenário, como um melancólico, é ter de me quedar em casa ou, se preciso for, de voltar a casa.

Após deixar a sessão e, para tudo dizer, ouvi as inusitadas manifestações do seu afecto!

Obrigado pelo emprego, ajuda atenta, que me colocou em condições para levar os dias mais em casa!

 

7.

 

Vou actuar como um automóvel, na moto, com uma ligação final ao volante e outra ao pedal da frente!

Por todo o lado, a voz dele só canta «carro» (aí ele apanha pancada, pois). Porém agora chega.

Ficámos todos agradecidos, mas não poderíamos dizer muito bem porquê, pois é um carro, e só um carro, por isso, para chegar ao meu povo mais próximo o que tenho é a música!

 

8.

 

Vou actuar como um chanfrado, como um tipo mesmo chanfrado que quase parece mentira!

No intervalo não deixei que pusesse um xaile… eu e ele não nos encontraríamos, depois, naquela multidão.

Vou fazer a imitação dele, sempre a fotografar a minha casa…!

 

9.

 

Vou actuar como uma chiclete, o meu único parceiro (só ele, para mim, existe) e o tempo sempre nos viria a dar um prato de queijo ou de lentilhas, com um pimento, com um sandwich, com uma frieza que desconheço!

Para não repetir as ideias, deixei de ser uma chiclete, mesmo lá, quando fomos às compras ou nos encheram o prato, etc.

 

10.

 

Vou actuar como um alucinado, que vem bem longe e se senta, sem cerimónia, na cadeira, sendo estes comportamentos o que, no final, nos alimenta e nos enche o prato!

Porquê? Como se não houvessem muitas coisas que não fizesse, se isto continuar o que será de mim?

O final espera-se?

Mas se as coisas mudam… dizem que tudo há-de virar…

De resto, vamos andando.

11.

 

Vou actuar como uma coisa feita de lágrimas, de um rapaz que a todos põe a chorar (para além, oh, e muito diferente das pessoas que estão sempre a brincar com tudo!)

 

3. Os Ratos

 

Quem me dera ter um gato. Os ratos invadiram a cidade. E agora, grandes e gordos, passeiam-se pelas ruas. É verdade que os gatos não são menos ferais. Também eles grandes e gordos e ágeis e cruéis e perigosos. Mas, alguns, afeiçoaram-se ao dono e respeitam-no. Pode até dizer-se que cuidam dele. Protegem-no e oferecem-lhe, de vez em quando, uma carcaça suculenta. De quê? De rato, como é evidente. Os ratos comeram tudo. Os ratos tomaram as ruas e a maioria das casas. Quem se esconde, agora, somos nós. Quem tenta furtar a comida somos nós. Quem se esgueira, sigiloso e frenético nas sombras que julgamos protectoras são os antigos senhores da Criação, os construtores da cidade, os bípedes arrogantes que talvez tenham caído pela sua soberba. Mataram os flautistas. Mataram todos os flautistas. Talvez eles, só eles, como na fábula, tivessem o poder de nos livrar disto. Mataram, mataram e se outros houver já cá não querem vir. E quem diz os flautistas, mesmo em sentido figurado, diz todos os que poderiam ajudar. Talvez seja por isso que isto aconteceu. Um desmando. E não houve quem não avisasse. Não faltaram vozes que diziam que era preciso cuidado. Que os ratos são bichos daninhos, que aproveitam a mínima desatenção para roubar, que além de uma esperteza e de uma intima tenacidade são férteis… enfim, como ratos. Quando se mata um, logo aparecem cinco. E os que vêm novos são ainda mais espertos do que os anteriores. A cada nova geração apuram-se na sua arte e mester de serem ratos. Era então inevitável que aparecessem este super ratos, excelentes espécimes da raticidade. Melhores em tudo. Mais rápidos e maiores. Corajosos também. Abandonavam, a pouco e pouco, o subterfúgio da rapina em prol de uma expressa exigência: que ninguém se cruzasse em seu caminho, que ninguém os enfrentasse, que ninguém limitasse o seu direito, inalienável pela força de cada um e pela força dos números, a serem senhores desta terra. Por isso, quem pôde, fugiu e ficámos não só reféns desses roedores desprezíveis como também órfãos dos nossos melhores. Entregues à nossa fraqueza, desorganização e desespero sobrevivemos como podemos. Ainda se tivesse um gato. Que cuidasse de mim. Sim, porque eles foram os únicos que se adaptaram. Pode mesmo dizer-se que a sua afamada languidez foi apenas uma longa e paciente espera por esta era de ratos. Agora já não passa pela cabeça de nenhum gato aproveitar as longas tardes de Sol para uma sesta eterna. Agora, caçam. Tanto de dia como de noite, estão alerta. Majestosos. Fortes. Destemidos. Saem com intenção homicida e necessitam de todas as suas forças para combaterem esses inimigo formidável. Estão em muito menor número, mas têm as suas garras e dentes e a fabulosa elasticidade. Sentidos que detectam, na brisa, o perigo e a oportunidade. Olhos que perscrutam na escuridão. Aproximam-se, silenciosos, e desferem a estocada fatal. Tudo acaba em segundos ou, então, vêem-se rodeados de centenas de ratos que, em vez de se deixarem comer como no passado não muito distante, decidem vingar-se desse antagonista de sempre. Porém, não já como vítimas submissas cuja única estratégia era a esperteza na fuga. Não, agora usam tácticas agressivas, eficazes nesta luta mortal. Quando assim é, mesmo que o gato possante consiga despachar uns quantos ratos, ainda assim, sozinho, não consegue resistir ao assédio da turba. Caem sobre ele e despedaçam-no, implacáveis, centenas de dentes como adagas que rasgam a carne, que infligem lenhos profundos por onde se esvai o sangue do felino e quando este se vê assim cercado e com inúmeras hemorragias percebe que foi derrotado e depois do desespero sobrevém a aceitação e talvez morra feliz por esse último grande combate antes do fim. Agora são os gatos que se adestram na manha de apanhar algum rato desprevenido, a altas horas da noite ou no zénite do dia, quando a maioria se recolhe de barriga cheia para um sono letárgico. Talvez seja até essa abundância que os venha a perder. Tornaram-se confiantes, descuidados. E nós maquinamos. É certo que até agora todas as nossa a tentativas foram em vão. No meio da desgraça tentámos usar as balas, mas gastámos todas com nulo efeito, tentámos o veneno, mas só os tornámos mais fortes, no limite enfrentámo-los corpo-a-corpo e perdemos. Refugiámo-nos atrás das últimas barreiras que eles não conseguem ultrapassar: a água e o fogo. Todos sabem que os ratos têm pânico de se afogarem e não entendem o fogo. Assim, a derradeira defesa é uma chama alta ou algum tipo de charco que para nós, bípedes, pode ser facilmente percorrido ou, se houver lenha, um grande chamaréu que os deixe ao largo. É evidente, porém, que isto, assim, não é vida. Nas caves mais fundas, alagadas de propósito, gelados até aos ossos, a humidade é uma tortura constante. Quando encontramos combustível para tais piras defensivas podemos, todavia, ver milhares de olhos vermelhos que nos olham do lado de lá, cheios de gula e plenos de raiva, à espera que o fogo se consuma e apague e que possam chegar até nós, prontos para a matança. Este é um inimigo do qual não se pode esperar piedade, com o qual não se pode negociar nem rogar clemência a troco de submissão. Só querem a nossa carne. Estão, ademais, ávidos de vingança depois de tantos séculos de perseguição. Eu próprio costumava ter repulsa de ratos. Não tinha medo pois podia matá-los com uma simples vassourada. Tinha, tão-só, nojo. E sempre que via um não descansava enquanto lhe não desse morte. Depois não pensava mais nisso. Era só um rato. Até certa malfadada manhã em que acordámos para uma horda que tinha invadido a cidade, se concentrava na praça principal e se derramava pelas ruas adjacentes alimentada pelos nossos próprios ratos doméstico que saiam dos seus esconderijos para a luz, rumo a uma liberdade nunca antes sonhada. A partir desse dia tudo foi diferente. Era, desde logo, evidente que não podíamos ignorar o problema. Foram, de imediato, decididas diversas soluções que, uma a uma, fracassaram. Depois foi o êxodo. Deprimidos com a derrota, muitos disseram adeus às suas casas e fugiram. Partiram e avisaram as outras cidades do perigo que corriam. Ignoro se esses arautos foram ouvidos, se as outras comunidades compreenderam o risco e levaram a sério o nosso caso exemplar. No meio da confusão, eu, pobre e já velho não pude sair e então era tarde. Se tentasse a fuga seria devorado. É que a multidão dos ratos foi crescendo, os próprios indivíduos foram crescendo e em pouquíssimo tempo os humildes ratitos que invadiram a cidade deram lugar a ratazanas terríveis que, em bando, percorriam não só as ruas, mas, conhecendo como ninguém os lugares mais esconsos e secretos, perseguiam e matavam tudo o que mexesse onde quer que se escondesse. Todos à excepção, como vos disse, dos gatos. Esses, fluidos como água, subiram para o topo das árvores, saltaram de telhado em telhado, planeando sabiamente o contra-ataque. Ágeis como ninguém tão depressa desciam, matavam, e tornavam a subir que nem os ratos podiam reagir. Foi então que os donos dessas feras domesticadas se aperceberam que elas eram inestimáveis para a sobrevivência. Os gatos, por seu turno, não se esqueceram da bondade dos seus antigos amos. Quando, antigamente, pareciam vegetar na indolência sabiam apreciar os confortos que os homens lhes proporcionavam: a comida abundante e sem esforço, o colo e a lareira, os mil e um lugares para o seu descanso nessas casas abrigadas das intempéries. Abandonaram essa vida sem o mínimo remorso, mas não sem gratidão. Agora eram eles que protegiam e que providenciavam a comida. Agora eram eles que tinham de cuidar dos donos que estavam demasiado assustados e desorientados para sobreviverem sozinhos. Felizes, assumiram o papel heróico de saberem que, sem eles, os frágeis e tontos humanos estariam perdidos.

 

4. Coisas do Demo

 

Já se sabe, quando desaparecem as coisas isso é o diabo, a acção dele, do mafarrico, outrora capaz de perder todos os homens, e em especial do homem probo e, agora, rebaixado a desencaminhar os pequenos objectos, ninharias, na verdade, que, de súbito se tornam importantes, justamente quando se desvanecem. Como daquela vez em que o noivo não deu de encontrar as alianças, depois de tanto lutar contra aqueles que desejavam a sua perdição e de tudo fazerem para que os esponsais não fossem, e ele que assassinou um desconhecido porque ousou contar-lhe do escândalo que seria se um tal José — que, sem que ninguém ali soubesse, era ele próprio— lograsse casar com a filha do mais rico proprietário das redondezas e ademais também a mais bela, tanta, a fama que até se tinha espalhado pelos povoados vizinhos que aquela mulher não era filha legítima do rico proprietário, mas de um poeta inglês que, havia muitos anos, passou por ali, em busca de inspiração ou de cura, ou de se perder no mundo por amores ou dívidas ou de inimigos que, por questões de honra, o queriam matar e que por ser tão formoso e sensível, todavia não iria bater-se com os seus antagonistas, mas não podia evitar o desejo de quantas mulheres encontrasse.

Então, depois de tantas tribulações, a noiva quando ninguém conseguia encontrar as alianças, já em frente do padre e depois de ter suportado tudo estoicamente, sem um queixume ou capricho, sentiu que aquela era a proverbial gota de água, uma última é insuportável humilhação que poderia significar apenas mais um contratempo para quaisquer outros, mas que, para ela, foi uma confirmação inegável de que havia uma força que ultrapassava a mundana vivência humana e desapareceu não só da igreja como também mais ninguém lhe conheceu a morada até que, muitas décadas passadas retornou, mais triste e melancólica ainda, talvez pelo peso dos anos ou muito mais certamente por ignoradas desventuras, para assistir ao funeral do antigo noivo, que entretanto casou com uma mulher que nunca amou, teve filhos e netos aos quais lhes foi indiferente e de ter, a pouco e pouco e com um esforço inquebrantável, conquistado tudo o que era daquele que nunca chegou a ser o seu sogro.

 

5. «Povo das Águas Mortas»  

 

O rio caudaloso e escuro desaguava numa foz lodosa enquanto o dia declinava.

Apenas fumo e o caudal das várias árvores assombravam a hora que ia terminar.

Os pescadores, há tempos, viam, cada vez mais, pequenas barcas em cima de piras, onde os cães se espumavam na terra, e os pássaros que traziam a chuva logo ao fim dos últimos voos rasavam os zincos das telhas anfitriãs do seu Inverno. Isto era o que achava do Brasil. Aqueles momentos estabeleciam-se, opressivos, no horizonte.

No monte amarelo morava, então, naquela minha vida perdulária e aí não deixei de sentir um castigo significativo da natureza, nas angustiantes canículas, na humidade percolante, na incessante investida dos insectos cujas hordas insaciáveis se compunham de inesgotável soldadesca.

Sempre que me cruzei com alguém de carro e fomos a uma festa, a pessoa mais sensível era, invariavelmente, da «gente do ouro», apesar da aspereza do seu quotidiano, dos perigos, da malária. E, claro, da ruína, sempre iminente, sempre à espreita, a pestilência mor por aquelas bandas.

Essa parte daquela vida era, certamente, uma perda muito grande.

Há, ainda, alguns dos antigos bares em pé que todos os que já não queriam viver achavam melhores do que a vida e que ali se estragavam numa derradeira e terminal esbórnia. Acho que há casos estranhos.

Chamavam-lhes o «povo das águas mortas», até mesmo aqui em Cabo Frio, e tinham essa via diferente de chegar à morte.

Vá por aquela estrada e logo perceberá.

Os vultos que por ela ainda deambulam e que não estão a caminho de lugar algum olham quem passa com um olhar triste e ausente e, mesmo assim, admoestam quem vem que arrepie caminho, como cães-de-guarda que, na verdade, querem proteger os intrusos deste sítio quase abandonado, infestado de más memórias e de sonhos perdidos.


João Pereira de Matos