Pareço um miúdo

 

MANUEL SANTOS


pareço um miúdo

coração maior que o peito

 

rasam as andorinhas

sede do desejo


os nomes calham-nos

ou agarram-se a nós

como a casca ao caracol

 

alguns trazem já a música

da aliteração dos versos a vir

 

ou a lealdade de perseguir

o nome que nos coube em sorte


grilo asa de chuva de outubro

músico até às asas mindinhas


tição de luz nas folhas

dedos em brasa a crepitar

mistério


quando o silêncio não acende,

sintonizar na estação da noite:

vento folhas fantasmas

som do sangue

 

até que arda o silêncio


na contemplação do vazio

quer passar despercebido

de tudo e todos

 

sem biografia,

ou sem querer dar dado algum

de biografia

 

passa dia e noite

como o outro dia e a outra noite

 

em roda a cidade

de azáfama em azáfama,

passa ao lado do ignorado

 

e o vazio visitou o vazio 


GÓLEM

 

monte montanha

papel papel

zonzo da escalada

esfanico

 

zarpo para os patos

azul

 

no desiquilíbrio

me equilibro

rastejam bichos

voam

 

eu peixes

descreio em mitos

(que os há

há)

tresleio letras

atraio

criaturas ignotas

branco


CUIDAR DO JARDIM DIA A DIA

 

ir onde não nos mandam

no chão se nos dão uma cadeira

modelar argila

com os dedos sem pincéis

aos sessenta ter seis

os amigos oitenta e dezasseis

 

e doerão os picos

nos dedos onde pousam abelhas


a rapariga escreve num caderno sentada no banco da gare.

se eu fosse jovem, pediria o endereço para partilharmos os  diários.

daas viagens por países, cidades e pelo interior da nossa neblina.

no endereço da estação de cada cidade saberíamos do norte

de cada um até outra estação, da paisagem da janela

a desejar a paisagem da outra janela.

sem interferêncidas de ondas de SMS.

 

o telemóvel da rapariga que continua a escrever no caderno

continua esquecido no banco da gare.


INTRUSAS

 

descem à cidade depois do sol

fresta do tempo entre o castigo e a tranquilidade

graciosas nos riscos do azul

 

dádiva do bailado a preto e branco

no fim dum dia duro de canícula

de impropérios da gente cheia da semana de trabalho por nada

esmagada no autocarro porque o metro mais uma vez em greve

 

as andorinhas cumpriram a sua função

no fim de tarde sobre o jardim do adamastor,

saúdam a suavidade do tejo e da gente

 

 

esta evidência de estarmos vivos quando nada parece inevitável e por aí fora.

nos entretantos, ajoelhamo-nos, pisamos o areal,

o sal salga as narinas e pedimos perdão

pela terra que conspurcamos.

 

ontem não dei conta dos turistas do sol,

a manhã talvez pescador esquecido dos sargos.

pode ser que pique plástico colorido e o deposite feliz

nos respigadores em busca do guiness

 

continuaremos de consciência limpa,

os novos escuteiros.


despedem-se os narcisos. em abril meia dúzia

num cálice com vinho. bebo-os até

embriagar-me de mim

no ano que há-de vir

 

nota: a primeira palavra de cada poema está em Bold, para se distinguir uns dos outros.


OITAVO ENCONTRO TRIPLOV
Convento de São Domingos, Lisboa, 25.05.2019