CARLA LUÍS
UBI, PRAXIS, ALLC, IFP, OLP, MIL
Carla Sofia Gomes Xavier Luís nasceu em Lamego em 1977. É licenciada em Português e Inglês (ensino de) pela UTAD, mestre em Língua, Cultura Portuguesa e Didática pela UBI e doutora em Letras pela mesma instituição. É Professora no Departamento de Letras da Universidade da Beira Interior e Investigadora no PRAXIS (UBI). Na UBI, é também membro do Conselho Científico do Departamento de Letras, das Comissões Científicas de Curso de mestrado em Estudos Lusófonos e da licenciatura em Ciências da Cultura, bem como Coordenadora de mobilidade do Mestrado em Estudos Culturais, tendo ainda desempenhado muitos outros cargos, de entre os quais se destacam o Conselho da Faculdade de Artes e Letras (vários anos), bem como a Coordenação do Centro de Avaliação de Português-Língua Estrangeira. Além disso, é Membro da Comissão Científica da Revista Egitania Sciencia, Instituto Politécnico da Guarda, do Conselho Científico da Revista TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciências, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, da Comissão Científica da Revista Cadernos Culturais, Centro Cultural Eça de Queirós (CCEQ), da Comissão Científica das Revistas Licungo e Milandos da Diáspora, da Comissão Interinstitucional da Academia Lusófona Luís de Camões (ALLC), do Instituto Fernando Pessoa (IFP), do Observatório da Língua Portuguesa, do Movimento Internacional Lusófono, da Comissão Interinstitucional do Instituto Fernando Pessoa (IFP), do Conselho de Pareceristas da Revista do Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Minas Gerais (Brasil), do Conselho Editorial da Revista …à Beira, do Conselho Editorial da UBILETRAS. Tem participado, apresentando comunicação ou integrando Comissões Científicas, em variadíssimos eventos nacionais e internacionais. A sua lista de publicações é composta por livros, capítulos de livros, artigos, recensões e entrevistas, de entre os quais destacamos apenas alguns realizou em torno da Obra de Miguel Real: “Miguel Real e o seu retrato de Portugal: de onde vimos, o que somos e para onde vamos”, in Urbano Sidoncha e Catarina Moura (org.), Culturas em Movimento, Livro de Atas do I Congresso Internacional Sobre Cultura, Covilhã, LabCom.IFP (Comunicação, Filosofia e Humanidades), 2016, pp. 187-208; “Língua Portuguesa e Lusofonia em Miguel Real”, in Alexandre António da Costa Luís, Carla Sofia Gomes Xavier Luís e Paulo Osório (org.), A Língua Portuguesa no Mundo: passado, presente e futuro, Lisboa, Edições Colibri e Universidade da Beira Interior, com o apoio da Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras, Universidade de Toronto, Instituto Politécnico de Macau, Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia, 2016, pp. 47-82; “Para uma Leitura de Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa de Miguel Real”, LUÍS, Carla Sofia Gomes Xavier (2018) “Para uma Leitura de Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa de Miguel Real, Revista Triplo V, Série Gótica, Primavera de 2019, disponível em https://triplov.com/revistaTriplov/category/paginainicial/autores/carla-sofia-gomes-xavier-luis/ e página do COLÓQUIO INTERNACIONAL – MIGUEL REAL – Literatura, Filosofia, Cultura (7 e 8 de novembro de 2018), www.labcom-ifp.ubi.pt/miguelrealcoloquio/ou http://www.labcom-ifp.ubi.pt/files/miguelrealcoloquio/; “Para uma Leitura de Cadáveres às Costas, de Miguel Real”, in Triplo V, 19-04-2018, disponível em. https://triplov.com/para-uma-leitura-de-cadaveres-as-costas-de-miguel-real/. LUÍS, Carla Sofia Gomes Xavier, RITA, Annabela e LUÍS, Alexandre António da Costa (org.), Miguel Real: 40 Anos de Escrita – Literatura, Filosofia e Cultura, Covilhã, LusoSofia, Universidade da Beira Interior (em revisão de provas). “Retratos dos Judeus na Obra Ensaística e Ficcional de Miguel Real”, in LUÍS, Carla Sofia Gomes Xavier, RITA, Annabela e LUÍS, Alexandre António da Costa (org.), Miguel Real: 40 Anos de Escrita – Literatura, Filosofia e Cultura, Covilhã, LusoSofia, Universidade da Beira Interior (em revisão de provas). “Visões de Fátima na Obra Ensaística e Ficcional de Miguel Real”, in LUÍS, Carla Sofia Gomes Xavier, RITA, Annabela e LUÍS, Alexandre António da Costa (org.), Miguel Real: 40 Anos de Escrita – Literatura, Filosofia e Cultura, Covilhã, LusoSofia, Universidade da Beira Interior (em revisão de provas).
O presente texto tem por base a apresentação da obra Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso, da autoria do escritor beirão João Morgado, que realizámos na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, Guarda, no dia 29 de novembro de 2019. Com efeito, através do olhar atento do mencionado escritor, juntamo-nos às comemorações pelos quinhentos anos da primeira circum-navegação empreendida por Fernão de Magalhães que se completa, depois da morte deste navegador português, com a viagem de regresso concluída, em 1522, já por Sebastian Elcano.
E damos início a esta odisseia, recordando, desde logo, as sábias palavras de Jacinto do Prado Coelho que entende que “não teremos da obra literária uma visão total se a não virmos na sua historicidade, em equação com o artista (vida e cultura)” (Coelho, 1961, p. 23). Pois bem, ainda antes de mergulharmos na obra propriamente dita, trazemos à colação alguns passos mais marcantes da vida do escritor em análise, relembrando certos contextos que debruam a sua história pessoal e que, porventura, terão alguma expressividade na obra em geral.
Dito isto, recuamos muito rapidamente aos tempos idos da infância beirã de João Morgado, lugar recuado onde se tecem identidades (pessoais e culturais), afinidades eletivas, onde se forjam certas idiossincrasias que marcam o ritmo das pautas futuras. Ora, deste período tão genesíaco, sublinhamos, desde logo, a importância vital das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian na vida do mencionado escritor que traziam quinzenalmente a magia em forma de papel. Através deste nobre serviço prestado, deveras importante, principalmente para as comunidades mais remotas como é o caso do Interior, o ficcionista em destaque teve a oportunidade de diversificar leituras, aguçando e apurando o gosto estético e robustecendo o saber, num tempo onde o mediatismo dos digitais estava ainda longe do fulgor dos dias de hoje. Ora, desde cedo, as leituras selecionadas tornaram-se sistemáticas e exaustivas e foram ajudando a robustecer a base de dados, a biblioteca pessoal do autor. Outro aspeto de extrema relevância, que virá inclusivamente a marcar a vida de João Morgado, quer a título profissional, o gosto pelo jornalismo, quer a título artístico, o gosto pela escrita ficcional (que, bastas vezes, tem como pano de fundo robustos contextos e temáticas históricas), consiste na influência que as telenovelas radiofónicas, absorvidas na grata companhia da sua avó, desempenharam na vida deste escritor beirão. Ou seja, através destas fontes de alegria, teve os primeiros contactos com os grandes clássicos da literatura portuguesa, de onde destacamos, meramente a título de exemplo, O Monte dos Vendavais. Naturalmente, pela audição, deparou-se com tudo o que tinha de, forçosamente, imaginar: os cenários multicolores, as indumentárias de época, os silêncios, as feições, os não ditos, etc. Precisamente, esta necessidade de imaginar, de sonhar, de perceber na mente como tudo se processava, aguçou, por certo, a sensibilidade e o engenho deste talentoso escritor, materializando-se mesmo em caraterísticas muito marcantes da sua escrita: a fina reconstituição de ambientes e de cenários, o gosto pelo detalhe, auxiliado pela exploração dos cinco sentidos. Estas marcas encontram-se cristalizadas em várias obras, de onde destacamos, por razões óbvias, o romance em análise, como teremos oportunidade de exemplificar. Naturalmente, muitas outras influências terão contribuído para o crescimento e amadurecimento do romancista em foco. Destacamos, meramente a título de exemplo, o mestre Miguel Real, leitura assídua do escritor em análise, que, por certo, o terá influenciado de tantas formas, de onde demarcamos, por agora, a tendência de nos transportar, através da escrita, quase de hologramaticamente, para o tempo em que a ação que descreve decorre, dando-nos a conhecer a forma mentis de um determinado povo; a forma como se vestia, como se dormia, como se comia, a linguagem usada, criando um realismo visual deveras cativante para o leitor. Enfim, este é apenas um de entre muitos outros exemplos dignos de destaque que têm lugar cativo na biblioteca de leituras frequentes de João Morgado.
Enfim, desde os tempos pretéritos marcantes da infância, até se tornar, como o especialista Miguel Real o apelida, “Um Camilo Castelo Branco dos nossos tempos, pela forma como escreve, pela paixão que descreve” (página oficial do autor), foi um passo, não isento de muita dedicação, de apurado e reiterado labor e disciplina, de cuidada investigação, até porque se tem vindo a especializar precisamente na tipologia romances históricos, e também de alguma dose de inspiração que complementa ainda com as viagens que vai realizando, as vivências do dia a dia, os contextos culturais circundantes que incluem paisagens de interior, ibéricas, europeias e lusófonas. Tal como o próprio corrobora:
“Sim, um escritor acaba sempre por absorver o mundo que está à sua volta e transportá-lo para os seus livros. A literatura é sempre um pouco de reciclagem daquilo que vamos absorvendo na vida. Se vivesse em Lisboa, provavelmente tinha outras temáticas. Mas, por exemplo, fiz o romance de Pedro Alvares Cabral e o facto de estarmos perto de Belmonte teve a sua influência” (página oficial do autor).
Vejamos ainda mais alguns passos marcantes da sua vida e obra. Além da atestada propensão para a escrita que se manifestou desde cedo, mais concretamente, segundo o próprio, quando “ainda andava no liceu” (página oficial do autor), é um beirão de gema, nascido em 1965, na Aldeia do Carvalho, situada na Covilhã. É licenciado em Comunicação pela Universidade da Beira Interior e mestre em Estudos Europeus pela Universidade de Salamanca, além de pós-graduado em Marketing Político pela Universidade Independente/Universidade de Madrid. Trabalhou como jornalista e, para além da imprensa regional, escreveu no diário Público e semanário Sol. Atualmente, é consultor de comunicação nos meios empresariais e políticos. Assumiu também, durante vários anos, o cargo de Chefe de Gabinete do Presidente da Câmara de Belmonte (página oficial do autor).
Desde que o seu primeiro romance, Diário dos Infiéis, deu à estampa (2010), até aos mais recentes, um histórico e outro intimista, Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso (2019) e Livrai-me do Mal (2020), respetivamente, sem esquecermos o livro de contos, Contos de Macau (2021), João Morgado tem vindo a construir, em apenas 12 anos (2010-2022) de trabalho literário, uma sólida e premiada obra, digna de estudo, que vai desde o romance mais intimista, ao romance histórico, com incursões pelo conto, pela novela e passando ainda pela poesia e pela literatura infantojuvenil, também ela de apreciável qualidade e interesse. Nesta última modalidade, o escritor em apreço usa uma linguagem rica e simultaneamente divertida, logo de expressiva aceitação junto dos mais novos. O reconhecimento pelo seu intensivo labor tem sido recorrente. Além de ter sido distinguido com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cívico e Cultural, oficializada pela República Federativa do Brasil, pelo seu trabalho de investigação sobre Pedro Álvares Cabral, tem vindo arrecadar variadíssimos prémios, tais como: Prémio Literário Vergílio Ferreira 2012, Prémio Literário Alçada Baptista 2014, Prémio Nacional de Literatura LIONS 2015, Prémio Literário Fundação Dr. Luís Rainha – Correntes d’Escritas 2015, Prémio Medalha do Mérito Literário da “Ordem Internacional do Mérito do Descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral” (Brasil), 2017, Prémio de Poesia Manuel Neto dos Santos 2015, Prémio Literário António Serrano 2016, Prémio Literário Ferreira de Castro de Ficção Narrativa 2019, instituído pela Câmara Municipal de Sintra, no dia 18 de Novembro de 2019, no MUSA, e o mais recente Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, instituído pela autarquia alentejana de Santiago do Cacém – 2021 (cf. página oficial do autor).
De entre os vários géneros textuais que abraça, e que fazem dele, como o próprio explica, um “escritor plural” (página oficial do autor), destacamos, além da sensível veia de poeta e da extrema capacidade de escrever e de falar também com os mais novos, incutindo-lhes o gosto pela leitura e pela história, a crescente predileção que tem vindo a desenvolver, com apreciável proficiência, pelo romance passional, mais intimista, de onde se destacam O Diário dos Infiéis (2010), O Diário dos Imperfeitos (2012) e Livrai-me do Mal (2019), escrito sob pseudónimo, e pelo romance histórico, de onde temos necessariamente de demarcar Vera Cruz (2015, história da vida e obra de Pedro Álvares Cabral), Índias (2016, história da vida e obra de Vasco da Gama, Prémio Literário António Alçada Baptista), O Livro do Império (2018, sobre Camões, o Império e a publicação d’Os Lusíadas) e Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso (2019, que agora estudamos).
Ora, no campo do romance histórico podemos, como nos ensina Miguel Real, apreciar duas tendências. A primeira, de que O Livro do Império é representativa, diz respeito à opção por um “enfoque pós-moderno, em que História e Ficção se problematizavam mutuamente” (Real, 2019, p. 20), ou seja, a História tida como certa, assente em documentação especializada, nas fontes, em jeito metaficcional, surge do avesso, é reinventada, afigurando-se novas versões plausíveis; até porque, aos olhos do ficcionista, tudo é possível. Segundo este formato, quanto mais prodigiosa for a imaginação, mais interessante se tornará a obra. Por conseguinte, é permitida a exploração das incertezas históricas, o surgimento de outras versões, buscando-se novos símbolos e sentidos para a tradicional verdade histórica, como acontece, a título de exemplo, n’A Guerra dos Mascates de Miguel Real, onde a ficção ganha um papel preponderante. Podemos também assistir ao esbatimento da relevância de certas figuras históricas, como é o caso de Peregrinação de Barnabé das Índias, onde, desta feita, Mário Cláudio, ao sabor da narrativa metaficcional, esvaziando a relevância de Vasco da Gama, atribui ao pobre diabo feito grumete, Barnabé, o mérito da descoberta das Índias, ainda que seja uma descoberta espiritual.
Pois bem, se um historiador constrói a História e conhecimento, procurando, através de sucessivas revisões, maior nível de objetividade, ao ficcionista é permitida a liberdade de reinventar, de reconstruir, de criar, de opinar. Assim, João Morgado, no papel de ficcionista e não de historiador, embora pegando na matéria histórica, informado pelo conhecimento compendiado nas fontes e interpretado por historiadores em textos científicos, reconstruindo cenários e personagens, usando-se de uma linguagem de época, não perde a oportunidade de verbalizar a sua versão em torno da forma como se terão passado certos acontecimentos, certos momentos, certas sensações. Afinal, como refere Luís Reis Torgal, o Historiador “sabe que a sua ficção tem os limites impostos pelos dados das ‘representações’ que possui, ou seja, os documentos a que tem acesso, compromisso a que o escritor ou o realizador de cinema não está necessariamente ligado, porque o seu objectivo é mesmo a ‘fantasia’” (Torgal, 1998, p. 196). Em suma, a ficção, neste caso, ganha, usando uma expressão de Miguel Real, um “papel não mimético, mas iluminador dos sentidos da história” (Real, 2019, p. 20), trazendo novas abordagens, novas possibilidades, sem o intuito de ensinar história, até porque, como Linda Hutcheon explica, “the postmodernist ironic rethinking of history is definetely not nostalgic” (Hutcheon, 1991, p. 39).
A segunda tendência, de que Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso é representativa (cf. Real, 2019, p. 20), consiste no romance histórico dito clássico, cuja narrativa acompanha os factos históricos documentais. De olhos postos no conhecimento das fontes que sustentam esta fina aproximação à forma como tudo aconteceu, o escritor em apreço chega, inclusive, a transcrever certas fontes, evocando até saberes colecionados por Pigafetta, académico veneziano que viajou com Magalhães, tendo redigido um diário com detalhes da viagem. Daí que João Morgado tenha, nesta obra, recorrido à consultadoria científica do Historiador José Manuel Garcia, dotado de um saber enciclopédico nestas matérias, completando a sua história com abundantes notas de rodapé, umas simplesmente dedicadas à tradução de trechos de castelhano para português, outras, de natureza explicativa, devotadas a esclarecimentos necessários, assentes num conhecimento profundo das fontes, por certo, fruto do contributo acima mencionado, além da bibliografia especializada disposta no final que também importa reportar. Neste romance em concreto, João Morgado alinha-se, por assim dizer, com a “visão de Alexandre Herculano, fundador do romance histórico em Portugal”, no que respeita à “confecção rigorosa desde género literário: verosimilhança ou similitude na história, […] no enredo definidor da acção, e fidelidade aos documentos de época” (página oficial do autor), embora com certas nuances, pois, entre outros detalhes, redescobrindo “de uma forma inovadora a biografia de Fernão de Magalhães” (Garcia, 2019, p. 11), humanizando-o, como teremos oportunidade de verificar mais adiante.
Feito este introito, focamo-nos doravante na obra propriamente dita. Olhando, desde logo, para a iconografia da capa, apraz-nos dizer que, além das duas figuras em destaque circundadas por duas esferas, ou seja, a imagem de Fernão de Magalhães, o “primeiro homem que navegou todos os Oceanos” (Garcia, 2021, pp. 433-464), e a da exótica ave-do-paraíso, que habita as Ilhas de Maluco, e não só, salientamos ainda a prevalência da cor azul (água) sobre o amarelo (terra) que sugere a ideia dos vastos oceanos percorridos, sublinhando ainda a imponência do Planeta Azul que fica doravante testada e comprovada. Além disso, os dois meios globos, desenhados em posição central, representam, em nossa opinião, as duas etapas distintas que conformam o famoso “abraço ao Mundo” (expressão de Garcia proferida no Simpósio “Fernão de Magalhães e o conhecimento dos Oceanos, de 19 a 21 de novembro de 2019, na Academia de Marinha), abraço esse que, embora não intencional, foi efetivamente projetado por Fernão de Magalhães. Este navegador, ainda que por acidente, provou “experimentalmente” ser possível percorrer todo o planeta Terra por via marítima, uma vez que atravessou, entre 1505 e 1512, com os portugueses, os Oceanos Atlântico (viajando numa armada comandada por António de Abreu, onde se descobrem as Ilhas Molucas do Sul ) e Índico, tendo ainda entrado em contacto com o Oceano Pacífico, pelo seu lado Ocidental, entre 1519-1521, depois de encontrar o Estreito que veio a adotar o seu nome, Estreito de Magalhães, desta feita, já ao serviço da Coroa espanhola, concretamente de Carlos I, futuro Carlos V. Uma vez que fora “despedido” pelo Rei D. Manuel I, Magalhães “emigrou” (expressões usadas por Garcia no citado Simpósio) para o país vizinho, vendendo os seus serviços a outro senhor, partindo, desta feita, de Sevilha e tendo chegado às Filipinas, onde veio a falecer em Mactan: “«Fernão de Magalhães caminhou livremente para a morte certa. Assim acabou aquele que foi o nosso espelho, a nossa luz, o nosso conforto e o nosso verdadeiro guia!» – concluiu Pigafetta” (in Morgado, 2019, p. 294-295).
Apesar de a viagem de regresso ter sido liderada por Sebastian Elcano que, por questões de sobrevivência, tornou a Sevilha pela rota outrora desvelada por Magalhães, pelo caminho mais curto, o que implicou navegar em águas do domínio dos Portugueses, mesmo contra as ordens do seu rei, Magalhães fica para a História como o navegador que “tinha o conhecimento do Mundo” (Garcia, 2021). Ainda que não intencionalmente, isto é, mesmo que não tenha planeado atingir este desiderato, tendo sido fruto do acaso, é certo, pois procurava chegar novamente às Molucas onde já teria estado ainda ao serviço de D. Manuel I, “Mas, como voltar àquelas terras?” (Morgado, 2019, p. 26), no entanto, a verdade é que Magalhães alcançou este feito grandioso. João Morgado dá-nos conta deste facto da seguinte forma: “Ainda que não fora o seu propósito, a verdade é que a nau Victoria tinha torneado o mundo gordo, provando que a navegação em a esfericidade da Terra era mais que uma teoria de iluminados” (Morgado, 2019, p. 281). Em suma, além de se provar definitivamente a esfericidade da Terra, conhecimento que circulava, desde a antiguidade clássica, por uma pequena elite, ainda que do ponto de vista teórico, prova-se, de igual modo, que o Pacífico tinha uma extensão imensa, registando-se doravante que há efetivamente mais água do que terra e suplantando as informações contidas nos relatos sobejamente conhecidos do Génesis: Deus mandou reunir as águas na concavidade da Terra (sobre estas ideias, cf. Garcia nos já citados trabalhos). Como é sabido, esta viagem de Magalhães, feita em duas etapas, é tida como o início do processo de Globalização. Tal como Garcia explica, “foi por Fernão de Magalhães ter alcançado pela primeira vez a plena consciência da realidade do mundo que se tornou um símbolo do atual processo de globalização” (Garcia, 2019, p. 272).
Apresentada uma súmula das principais matérias temáticas abordadas neste romance histórico clássico, cujo desfecho é, por razões óbvias, conhecido, dedicamo-nos, nos próximos parágrafos, a alguns aspetos de natureza ficcional, indispensáveis ao texto romanesco. Esta obra, do ponto de vista estrutural, é composta por 316 páginas que, além do prefácio, notas finais e bibliografia especializada, está organizada em seis partes, cada uma delas com um número variável de capítulos, formando 41 no total, dispostos no índice por ordem cronológica dos acontecimentos. Esta espécie de montra dos tópicos elencados, reflete, desde logo, a abordagem abrangente ao tema, pois devota-se não só às viagens empreendidas, mas também à sua conceção e preparativos, tudo isto por via de uma simbiose entre realidade e ficção, num contrato mágico estabelecido, onde se alastram os factos históricos, forrando toda a história narrada, mas com pitadas a gosto de elementos ficcionais. Elegemos a frase que de seguida transcrevemos como o exemplo iniciático desta perfeita simbiose entre história e ficção. Reportamo-nos ao seguinte trecho que João Morgado coloca, a páginas tantas, na boca de Rebelo, depois de ser informado por Magalhães de que estavam “onde nenhum homem ousou” chegar (Morgado, 2019, p. 173): “– Daqui a quinhentos anos, ainda falarão de Magalhães!” (Morgado, 2019, p. 173). E eis que estamos precisamente a comemorar os quinhentos anos da primeira circum-navegação ao Mundo, feito atribuído a Fernão de Magalhães, pois, apesar da infelicidade da sua morte prematura, não esqueçamos que Sebastian Elcano conclui a viagem pela rota previamente desvelada por Magalhães.
Ora, depois deste introito, apertemos os cintos para iniciarmos esta nossa viagem, não pelo Google Earth (cf. Simões, 2021, pp. 35-57), mas pela escrita que tem por capitão o escritor João Morgado e por marinheiros os seus leitores. E eis que nos deparamos, desde logo, com o sugestivo título “O rei-não” que nos convida a entrar no jogo que se adivinha e que tem por árbitro a História e por jogador, ponta de lança, a Ficção. O retrato negativo em torno do Rei D. Manuel, tão a gosto ficcional, fica marcado pelo jogo linguístico-verbal assente na sugestiva substituição do cognome Venturoso, pela justaposição do advérbio de negação “não” ao nome comum rei. Esta personagem é, no fundo, o grande motor que desencadeia a ação principal, aspeto histórico irrefutável. Ou seja, é devido às sucessivas recusas do rei D. Manuel I, quer no que diz respeito ao aditamento de 100 réis à remuneração de base de Magalhães, que era de 1250 reais (“aumentar-lhe a tença para um valor tido por digno”, Morgado, 2019, p. 19), quer no que concerne ao apoio à expedição que Fernão de Magalhães queria organizar às Molucas, factos, segundo Garcia, provados pelas fontes, que o navegador em destaque decide deixar Portugal, procurando realizar os seus intentos de outra forma, isto é, rumando ao país vizinho com o qual, afinal, Portugal dividia o Mundo das Descobertas: “se não for per via de Portugal, será per via de Castela, porque em tal estado andam as minhas cousas acá…” (Morgado, 2019, p. 45). Note-se que esta frase foi retirada de uma carta que, a par de outras, segundo João de Barros, foram encontradas, em 1522, em Ternate; informação disposta em nota de rodapé. Esta posição abertamente negativa, exposta ao longo de todo o primeiro capítulo, assente na utilização por sete vezes do advérbio de negação “Não”, que, por graça, o escritor coloca na boca do rei, fazendo-nos esboçar um sorriso pela forma divertida como o retrata, culmina, em jeito de retribuição, com um forte contra-ataque: a resposta de Fernão de Magalhães, que é também ela um retumbante “Não”. Este oitavo “Não” do capítulo simboliza, desta feita, o rompimento definitivo e irrevogável com a coroa portuguesa.
Por conseguinte, temos estabelecida a proposição, lançados os alicerces do que se seguirá: uma viagem com um fundo histórico que naturalmente confere verosimilhança à narrativa, mas relatada ao sabor da imaginação, da destreza estética e do manejo linguístico do cronista. Depois de nos apresentar a problemática, por assim dizer, e ainda antes de se dar início à trama principal da história, seguindo na peugada de Garcia, exímio leitor de Fernão Lopes de Castanheda, João Morgado transpõe agora para a ficção a crença histórica de que Magalhães havia já estado em Maluco (embora discretamente, numa armada de António Abreu, da qual só se conheciam seis nomes), desta feita, através da imagem da ave-do-paraíso que teria avistado nessas paragens. Mais um momento de simbiose entre história e ficção muito bem engendrado. Note-se que é também por via desta ave que João Morgado traz à colação a dúvida, que pairava na época, em torno da incerteza da localização exata das Molucas. Uma questão de suma importância, tendo em mente o Tratado de Tordesilhas, que dividia o Mundo das Descobertas em dois lados, o Português e o Castelhano, posto que se acreditava, erradamente, que se localizavam no lado Castelhano. Ora ouçamos esta questão que João Morgado coloca na boca de Magalhães quando dialogava com o seu amigo Ruy Faleiro, transpondo para a linguagem ficcional um dado histórico: “– E as minhas aves-do-paraíso? Afinal, porque não dizeis que são castelhanas?!” (Morgado, 2019, p. 38).
Com efeito, o segundo tópico deste livro é dedicado à formosa e colorida ave-do-paraíso, dotada de todas as virtudes e atenções, ironicamente contrastando com os escuros corvos e abutres que se viam em Lisboa, símbolo da morte, o que intensifica a tensão que Magalhães vivia com a coroa portuguesa: “Em Lisboa não havia destas aves – «Corvos. Só corvos….», «E abutres…Muitos. Uma catrefada de abutres» (Morgado, 2019, p. 25).
Mas ouçamos as próprias palavras do escritor em análise acerca deste apontamento ficcional, da ave-do-paraíso, que nos fazem vislumbrar esta singular espécie, bem como as danças de acasalamento e, em jeito de arco-íris, os anestesiantes voos de artifício de mil cores; uma verdadeira festa de sentidos:
“Apresentavam um bico curto e forte, por vezes um rosto verde-esmeralda e lindas caudas de plumas ornamentais, amarelas, vermelhas, escarlates…. alguns exemplares tinham um par de longas plumas brancas que lhes saíam da curva das asas, para as danças de acasalamento – um endiabrado bailado colorido que podia tardar horas e horas. Os machos mostravam as plumagens mais coloridas, com penas longas que se destacavam da cauda, cabeça ou pescoço. Quando voavam, o céu quedava-se com rasgos coloridos e vibrantes” (Morgado, 2019, p. 25).
Esta ave que habitava as ilhas de Maluco, e não só, tão bem tratada pelo autor neste romance, que a evoca em diversas passagens, é, como Garcia explica no prefácio desta obra (2019, pp. 10-11), o símbolo das aspirações dos navegadores que, depois de esforços desumanos, posto que enfrentavam tempestades, ataques de toda a ordem (físicos e morais), conspirações e sublevações, frio, fome, durante um período assinalável, ansiavam por encontrar o paraíso, ou seja, terras ricas para explorar e para catequizar, que lhes dariam honra, fama e glória. No entanto, ao invés de honrarias e riquezas, como castigo pela ganância, acabavam por encontrar o verdadeiro inferno na terra, o desespero e a morte. Note-se que é precisamente com a imagem da ave-do-paraíso, um elemento ficcional, que João Morgado termina esta obra: “A ave bela e colorida levantou voo, esvoaçou no salão e saiu pela janela como espírito livre, capaz de circundar o mundo, rumo ao paraíso” (Morgado, 2019, p. 295). Esta imagem da ave a “circundar o mundo rumo ao paraíso” simboliza precisamente a imortalidade do feito alcançado por este navegador português.
Miguel Real, com a sua extraordinária capacidade de análise e de visão de conjunto, destaca, na recensão crítica publicada no Jornal de Letras (de 23 de outubro a 5 de novembro de 2019), quatro elementos ficcionais que superam o registo histórico e que são:
“1. – as partes que se relacionam com a ave-do paraíso; 2. – o retrato psicológico de Magalhães e de alguns membros da tripulação (extremamente bem feito); 3. – a descrição do sofrimento (não exagerado, antes verdadeiro) que os homens da armada sofreram ao longo da viagem de dois anos, principalmente durante a passagem do Oceano Atlântico para o Pacífico e ao longo da travessia deste; 4. [talvez o mais importante porque (a) é o capítulo inicial e (b) marca o sentido da fuga de Magalhães para Sevilha, transformando a sua vida num destino de herói), a substituição do cognome “Venturoso” de D. Manuel I por “Rei-Não”, desenhando (para Magalhães, claro) o modo atrabiliário e arbitrário como governava o reino (cf., para além do primeiro, o capítulo “A armada da perseguição”)” (Real, 2019, p. 20).
Trata-se efetivamente de uma belíssima síntese que temos em consideração ao longo deste trabalho. De facto, os elementos de apetite ficcional dignos do nosso olhar são diversos. Não podemos deixar de destacar o realismo descritivo dos episódios vividos nas embarcações, de onde salientamos as batalhas travadas, a tempestade, os ambientes de rivalidades e até de conspiração e traição, com respetivas punições, as atmosferas em geral, os espaços, sejam de interiores (o pormenor do Paço real do Rei D. Carlos I), sejam de exteriores, como é o caso das paisagens encontradas no Mar Sul, enquanto se procurava o Estreito, de que daremos conta mais adiante. A título de exemplo da atenção aos espaços interiores, vejamos, desde logo, a descrição do imponente palácio de Santa Cruz que marca simbolicamente o passaporte para a tão desejada expedição que Magalhães almejava fazer, agora pelo lado espanhol, sendo que, doravante, “todas as portas se lhes abriram” (Morgado, 2019, p. 98):
“Era um edifício entalhado em alvenaria de pedra calcária, com três pisos e balcões virados para a rua. A frontaria era sustida por seis contrafortes e uma grande cornija, adornada com motivos clássicos e encimada por balaústres e pináculos bem lavrados. A entrada tinha um adorno em arco, com grotescos finos, golfinhos, plantas, e um relevo, no qual o cardeal Mendonza, construtor do edifício, se ajoelhava perante Santa Helena de Constantinopla, descobridora de Santa Cruz (Morgado, 2019, p. 98).
São também dignas de nota as várias achegas dispersas por toda a obra que concorrem para a documentada reconstituição dos retratos físicos e psicológicos de várias personagens históricas, de onde destacamos o de Fernão de Magalhães (Morgado, 2019, pp. 10-11, 36), o do rei D. Manuel (Morgado, 2019, pp. 19-20, 22, 23, 24, o do rei Carlos I, que passou depois a Carlos V (Morgado, 2019, p. 102), o do Ruy Faleiro (Morgado, 2019, pp. 34-35), entre tantos outros, sendo que alguns deles se arredondam em pormenores que temos de ir colecionado ao longo da narrativa e que sabemos assentes no conhecimento das fontes, mas vertidos numa linguagem própria do autor, que busca falar verdade, usando um tom divertido, contando-nos a sua versão dos acontecimentos e das identidades que os protagonizaram.
João Morgado pinta-nos o seguinte retrato físico do Rei D. Manuel I: “olhos esverdeados vivos. Algo patético. A reluzir num rosto de sobrancelhas bastas” (Morgado, 2019, p. 19); “o seu cabelo castanho e encaracolado, que lhe pendia pelos ombros, com uma curta franja sobre a testa. com um “ar atarracado, anafado de carnes e grossas farpelas” (Morgado, 2019, p. 19); “dedos gordos e cheios de anéis com pedraria fina” (Morgado, 2019, p. 20); “pernas meãs, grossas, e braços compridos – com os dedos das mãos a descerem abaixo dos joelhos (Morgado, 2019, p. 22). A forma como o escritor em análise desenha o retrato físico deste monarca, usando um tom irónico e salientando aspetos menos agradáveis à vista, ajuda a expressar o pouco apreço que Magalhães por ele nutria. Psicologicamente, temos, por via da caraterização indireta, acesso a certas caraterísticas que vão de insensível e avarento, a arrogante e até mal-agradecido, senão vejamos: “uma simples palavra, seca, infecunda, qual adaga a matar vontades” (Morgado, 2019, p. 19); desconhecedor das dificuldades vividas pelos marinheiros, posto que “só calcava os tapetes dos palácios; não conhecia sequer o cheiro húmido do mar, onde se alçara, a suor e lágrimas, a glória do reino” (Morgado, 2019, p. 19); “«um bicho pejado de ouro, mas cego para quem o serviu com suor e sangue»” (Morgado, 2019, p. 19).
Trazemos, igualmente, à colação o retrato físico do nosso herói Fernão de Magalhães que, antes de se apaixonar, era um “homem negro, barbudo e agreste” (Morgado, 2019, p. 145), de perna achacada (Morgado, 2019, p. 183), de nariz grosso (Morgado, 2019, p. 186), exibindo “tantas pelejas como cicatrizes” (Morgado, 2019, p. 20). Depois de se apaixonar, já em Espanha, “parecia um outro homem. Já não era o velho e carrancudo militar, sempre vestido de preto” (Morgado, 2019, p. 70), cor da predileção de pessoas de uma classe social mais elevada, como é sabido. Mas “estava mais cheio de corpo e até usava farpelas coloridas” (Morgado, 2019, p. 70). João Morgado, neste caso, procura traçar a diferença de estado anímico, psicológico, de Magalhães através de sensações cromáticas vertidas na indumentária. Encontramos igualmente vários elementos que compõem também o retrato psicológico, quer através de caraterização direta quer indireta. Vejamos este exemplo típico da primeira forma de caraterização enunciada: “ainda que pequeno de corpo, achava-o enérgico e corajoso” (Morgado, 2019, p. 100).
Como é sabido, certos dados físicos e psicológicos acima elencados encontram-se retratados nas fontes. Não obstante, João Morgado surpreende o seu leitor, apresentando-nos a sua versão de Magalhães: humanizado, sentindo saudades da mulher, dos filhos e do amigo Ruy Faleiro que deixa para trás, que tem compaixão pelos que sofrem, sendo o primeiro a dar o exemplo em momentos difíceis, disponível a servir, distribuindo inclusive, a dada altura, água de coco pelos doentes (cf. Morgado, 2019, p. 222) e que chora em vários momentos. Chora no momento em que, depois de hercúleos esforços, desumanos mesmo, encontram a passagem para a imortalidade. “E vieram lágrimas a correr pela face dura do capitão-mor” (Morgado, 2019, p. 191). Tem, como se disse, saudades da família que deixara para trás:
“Tinham agora meio ano de navegação. Magalhães estava consumido pelas saudades. Deixara para trás a jovem mulher e o seu primogénito, Rodrigo, com seis meses de idade. Além do mais, Beatriz encontrava-se já prenha de uma outra cria, talvez uma menina com os olhos negros da mãe, talvez outro macho para lhe iluminar o nome” (p. 122).
Além disso, ainda ficamos a saber que a imagem de Beatriz lhe dava forças para aguentar o suplício do frio e da fome: “Aquele homem negro, barbudo e agreste, olhava a imagem de Beatriz, a sua formosa delicadeza, e segurava uma lágrima com dificuldade. Naquele mundo gelado, esta era a sua recordação de calor e ternura que o mantinha humano” (Morgado, 2019, p. 145). Concomitantemente, não podemos deixar de recordar que revela ainda algum romantismo quando se apaixona por Beatriz Barbosa, senão vejamos: “Mas Magalhães perdia-se nos seus olhos negros e não lhe apetecia falar de negócios, preferia antes falar-lhe do pássaro mais bonito e mais perfeito do mundo. «Um dia trago-te uma ave-do-paraíso. Prometo!»” (Morgado, 2019, p. 71).
Também tem saudades do seu amigo Ruy Faleiro que o ajudara com os preparativos da viagem e que acreditava, tracejando no mapa o “famoso antimeridiano” (Morgado, 2019, p. 145), que as Malucas se situavam em território castelhano, crença refletida na expressão: “São aves castelhanas” (Morgado, 2019, p. 145). Na realidade, “tinha saudades dele, mesmo dos seus destemperos, do seu falar rezingão, das suas alienações, daquele seu feitio truculento, por vezes tão parecido ao seu” (Morgado, 2019, p. 146), isto é: “Custara-lhe deixá-lo para trás” (Morgado, 2019, p. 146). Preocupa-se com os seus homens, “determinou Magalhães, que estava preocupado com os seus homens” (Morgado, 2019, p. 183), animando-os com promessas de glórias a alcançar: “Estou aqui, ao vosso lado, enregelado como qualquer um…Mas, acreditai em mim, estamos a um passo da imortalidade. Andamos a navegar mares que nenhum outro vogou e com a graça de Deus, Nosso Senhor, encontraremos uma passagem para o Mar Sul…acreditai!” (Morgado, 2019, p. 119). Para alem disso, é ainda versado na arte de ajudar os seus homens em várias situações, incluindo na batalha onde vem mesmo a falecer: “Fernão de Magalhães era morto, caído em combate nas praias da ilha de Mactan, quando procurava ajudar os seus homens a retirar para os batéis, perante o assalto mortífero dos indígenas locais” (Morgado, 2019, p. 248).
Mas também é obstinado com as suas ideias, desenvolvendo um extraordinário poder de persuasão visível em vários trechos, de onde se destacam o momento em que convence os conselheiros (“Estas palavras sentidas, de quem acreditava firmemente no que falava, convenceram Frei Bartolomé de las Casas, um dos Conselheiros…” (Morgado, 2019, p. 100) e depois o rei Carlos I, que acaba por autorizar a expedição, sem esquecer Cristóbal del Haro que vai inclusivamente custear grande parte da viagem: “o comerciante Cristóbal del Haro cobria uma boa parte dos gastos” (Morgado, 2019, p. 99). Damos conta da outra face da sua capacidade de argumentar, desta feita, assumindo contornos de espionagem, pois, a dada altura, revela ao rei que conhece uma carta onde se encontra “marcada uma passagem nas Américas […]. – Um estreito sinuoso que, como uma espada romba, atravessa aquelas terras bravias até ao mar do Oriente…Eu sei que há um passadouro por lá, sei que sim. Eu irei pessoalmente para o achar, Majestade, para vossa grande glória!” (Morgado, 2019, p. 105), lançando ainda a ideia de que o rei D. Manuel “andava com secretas viagens para aquelas bandas” e que “procurava burlar Castela” (Morgado, 2019, p. 105). João Morgado soube, também pela voz do protagonista, reproduzir na perfeição o clima de rivalidade e de desconfiança entre as duas coroas: “é el-rei de Portugal que está a violar o Tratado de Tordesilhas, não Castela…. – acrescentou, deitando lenha na fogueira com as suas palavras” (Morgado, 2019, p. 106, a propósito das rivalidades luso-castelhanas, cf. o excelente texto de Alexandre Luís (2021, pp. 405-432), decorrente de uma comunicação proferida no já citado Simpósio que teve lugar na Academia de Marinha). Este clima de conspirações e de receios está muito bem caraterizado, surgindo contextos vários que recordam a constante disputa, tais como: “Teme que, por umas pagas, sejais apenas um espiador d’el-rei D. Manuel de Portugal” (Morgado, 2019, p. 72). Conflitos e inseguranças à parte, o que é certo é que graças à sua capacidade de persuasão e resiliência, a dada altura, a viagem inicia-se: “Iam zarpar para a grande aventura. Já cheirava a cravo, a ave-do-paraíso estava mais próxima” (Morgado, 2019, p. 109).
Mas as desconfianças e traições intensificam-se dentro das embarcações (“«Vai Trair-te»”, p. 120). Sublinhe-se que o facto de ser um português a liderar castelhanos, também não passou despercebido ao olhar atento do escritor João Morgado. Por conseguinte, a desconfiança que pairava no ar, decorrente da origem de Magalhães é expressa da seguinte forma: “Magalhães que não podia fazer fé nos restantes capitães. Desdenhavam de ele ser português – ainda que tivesse sido reconhecido como Cidadão de Castela” (Morgado, 2019, p. 120). Sabendo da capacidade de persuasão de Magalhães e da necessidade de congregar todos em torno de um objetivo comum, buscando galvanizar os seus homens, típico de um verdadeiro líder, João Morgado vai tentando imaginar como ele terá feito e o que terá dito com o intuito de apelar à unidade, frases vertidas na obra da seguinte forma: “Aqui não há portugueses, castelhanos, francos, há apenas homens, há apenas sobreviventes. Se chegarmos às ilhas de Maluco, haverá heróis” (Morgado, 2019, p. 129). Mas nem todos ficam convencidos destas ideias. Com efeito, acabamos por ter eco da materialização de certas traições: “Felipe, o genovês, o calafate na Trinidad, atacou-o pelas costas, com um cuchilho aguçado” (Morgado, 2019, p. 152). E, como não podia deixar de ser, o escritor em apreço dá-nos conta de alguns castigos aplicados aos infratores: “olhando para os traidores que foram levados perante ele. […] “E logo mandou que o corpo de Mendonza fosse pendurado pelos pés no alto de uma verga para que todos o vissem a escorrer sangue” (Morgado, 2019, p. 128).
Como é natural, não faltam descrições em torno do que se passava no interior das embarcações. Enfim, desde “A sangria feita pelo barbeiro aos corpos inchados para desentumecer os membros (Morgado, 2019, pp. 222), até à lavagem dos seus corpos cheios de pulgas e piolhos com vinagre (cf. Morgado, 2019, p. 222), a verdade é que ficamos com um relato muito realista do outro lado das expedições, aquele lado que, por vezes, não surgia pormenorizado nas crónicas oficiais encomendadas pelos soberanos, havendo apenas espaço para os feitos gloriosos. Embora com a missão de descrever tais vivências horrendas que deixam marcas no corpo e na alma, ainda assim João Morgado consegue, em certos contextos, através de certo virtuosismo estilístico, amainar a carga pesada do relatado, senão vejamos: “Um novo raio despedaçou a negritude daquela noite. Naquele instante de clareza, viam-se as altaneiras vagas de água e pedaços de gelo que arrostavam contra a amurada do navio como se fossem pelouros disparados por canhões de um barco inimigo” (Morgado, 2019, p. 114). No tópico “A tempestade”, datada de 18 de março de 1520, a Sul do Rio da Prata, além de João Morgado nos dar conta de vários fenómenos típicos, como é o caso do fogo de santelmo, “No alto do mastaréu da gávea via-se um resplendor brilhante, prata e azulado, ondulante como chamas” (Morgado, 2019, p. 113), pinta-nos um quadro extremamente doloroso, polvilhado de medos e penas; uma verdadeira câmara de horrores que muitas vezes nos arrepiam. Destacamos, desde logo, a impotência dos homens perante os fenómenos meteorológicos, e suas consequências, verdades inabaláveis, mas agora apresentadas ao sabor do apetite ficcional do escritor em destaque:
“Homem ao mar! – alguém rugiu no escuro. – Homem ao mar! Em vão. Nada havia a fazer. Nas águas geladas não perdurariam o tempo de um credo” (Morgado, 2019, p. 115); “tinha as mãos queimadas pelo gelo, os dedos negros e inchados, a pele a gretar-se. Assim, tinham amarrado a roda do leme com um calabre e a nau dançava ao sabor das vagas e no amparo divino que os clérigos tanto rogavam nas suas preces, escusos que estavam no breu do porão. A agulha da bússola tinha perdido a tramontana, rodava desvairada” (Morgado, 2019, pp. 113-114); “O vento silvava” (Morgado, 2019, p. 114); “Dentro do porão, os homens andavam aos tombos como carga perdida, chocavam uns nos outros como marionetas sem fios, esbarravam com os materiais que se desprendiam de todo o lado. Alguns feriam-se com tais pancadas, ficando rebentados pelo chão a sangrar ou com pernas partidas – clamavam com dor, mas ninguém os atendia” (Morgado, 2019, p. 115).
Além disso, ainda nessa fase de pré-descoberta, de duríssima provação, o escritor em análise, dá-nos, de igual forma, conta de certos apontamentos em torno das leis de sobrevivência tão comuns nestas situações. Ouçamos então o momento a isso atinente:
“Tinham de acender lumes de tempos a tempos, descongelar neve para encherem os cantis e assar os esquilos e lebres que caçavam, ou uma ou outra ave que lhes caía no costil, gaivotas ou uns gansos listados que andavam junto das águas. Por vezes comiam animais mais peçonhentos e arriscavam a comer folhas e bagas que nem sabiam o nome. Um dos dias, com um tiro de arcabuz, mataram um porco selvagem. Comeram a sua carne, mas também as suas vísceras, até aos olhos. Beberam-lhe o sangue e usaram a gordura para protegerem as mucosas do nariz e barrarem a cara e as mãos, como proteção para o vento gelado” (p. 160).
No rol de descrições que, pelas razões já evocadas, abundam nesta obra, João Morgado não podia deixar de olhar para as paisagens deveras agrestes da zona do Estreito, pintando o ambiente circundante do desconsolador cenário da passagem para o Mar do Sul:
“Magalhães olhava os altos. Alguns sítios tinham ciprestes e vegetação vária, outros eram apenas rochosos e brilhantes pela geada. Por vezes topavam ribeiros que despencavam dos altos em cascata, e deitavam línguas de gelo penduradas. Decorridos uns dias chegaram a um espaço de águas mais amplas com muitas aves nos céus. A paisagem era triste e pobre, árida e sem vegetação, mostrando as rochas cobertas de gelo” (Morgado, 2019, p. 183).
E eis que estamos a aproximar-nos do tão aguardado milagre, mas não sem antes se vencerem umas quantas dificuldades:
“A entrada era apertada, pelo que entraram com pouco pano e mil cuidados. Os desfiladeiros eram altos, de um lado e de outro, o que tornava o canal sombrio. Magalhães mandou acender archotes para melhor ver as margens e os escolhos que pudesse haver nas águas. Ainda coberto de neve, contornaram um promontório enorme que se levantava na margem norte. Depois dessa curva apertada, chegaram a uma baía mais folgada. E neste navegar silencioso e apreensivo, dão de frente com duas embarcações rasgando as ondas que vinham em sentido contrário e que logo dispararam muitos tiros de canhoeira” (Morgado, 2019, p. 180).
Mas, se há descrições negativas, também temos nota dos momentos de glória, debruados de retoques ficcionais, que, neste caso concreto, nos ajudam a visualizar o momento da descoberta da passagem do estreito que veio a assumir o nome de Magalhães, isto depois de superadas algumas tentativas e erros, “Não era ainda a passagem desejada” (Morgado, 2019, p. 157). Vejamos então o contexto em causa:
“Sem que estivessem cumpridos os cinco dias acordados, Magalhães estava já decidido a partir à procura das restantes naus. Assim, mandou alçar as âncoras, orientar as velas e avançar para o estreito canal. A entrada era apertada, pelo que entraram com pouco pano, e mil cuidados. Os desfiladeiros eram altos, de um lado e de outro, o que tornava o canal sombrio. Magalhães mandou acender archotes para melhor ver as margens e os escolhos que pudesse haver nas águas. Ainda coberto de neve, contornaram um promontório enorme que se levantava na margem norte. Depois dessa curva apertada, chegaram a uma baía mais folgada. E neste navegar silencioso e apreensivo, dão de frente com duas embarcações rasgando as ondas que vinham em sentido contrário e que logo dispararam muitos tiros de canhoeira. Fernão de Magalhães abriu um dos maiores sorrisos da sua vida. Os homens estavam todos aos gritos, lançando os barretes ao ar. Mandou que disparassem também tiros de bombarda, em nome da alegria de estarem juntos novamente. – Achámos a passagem! – gritou Álvaro de Mesquita mal subiu a bordo da Trinidad. – Navegámos três dias sem encontrar saída, mas é tudo água salgada. Tem fortes correntes e ventos rijos e achámos ossos de Baleia. Acredite, capitão, esta é a passagem para o mar do Sul!” (Morgado, 2019, pp. 180-181).
Feita a tão desejada passagem, há ainda que documentar a chegada a certas paragens e aos iniciáticos contactos com os respetivos povos autóctones. Damos conta de como tudo se passou e do que terão visto, por exemplo, à chegada às ilhas Carolinas, estados Federados da Micronésia, onde aportaram a 4 de fevereiro: “os indígenas não vinham armados pelo que deixaram que estes se aproximassem” (Morgado, 2019, p. 217), então, sentindo-se à vontade rapidamente subiram a bordo, “entraram por estibordo e bombordo, por todos os lados. – Parecem macacos nas árvores – atirou Rebelo”, curiosos com tudo que viam, “logo trataram de espiolhar cada recanto, remexendo e cheirando tudo, deitando mão a tudo o que encontravam, como se não houvesse ninguém a bordo” (Morgado, 2019, p. 217). Quando um deles procurou roubar um colar que Afonso Gonçalves, despenseiro da Victoria, levava ao peito, ele deu-lhe uma bofetada, “este não se ficou e replicou com outra bofetada em cheio na cara daquele português da Guarda” (Morgado, 2019, p. 217). Sentindo-se desrespeitado e ferido no orgulho, pela gargalhada dos colegas, acertou com o chicote ao nativo, afoguentando-o a ele e aos outros. Depois dos nativos terem deixado a embarcação, os marinheiros repararam que tinham sido pilhados “deram conta de que até um batel da popa tinham eles atirado ao mar e rapinado” (Morgado, 2019, p. 217), fazendo Magalhães rir, “sem saber bem o que pensar de tudo aquilo” (Morgado, 2019, p. 217). Nestas descrições de contactos de povos não podiam faltar os avistamentos dos corpos nus das nativas, a fazer lembrar a Carta de Pêro Vaz de Caminha que relata a chegada dos portugueses a Terras da Vera Cruz, renovando a perplexidade que causava às tripulações: “A grande maioria delas estava nua, algumas tinham adelgaçadas tiras de casca de árvore a tapar as vergonhas” (Morgado, 2019, p. 218). Perante tal cenário, “os marinheiros logo ficaram enfeitiçados com aquelas criaturas morenas, de tal forma que, por momentos, deslembraram a fome e reavivaram outros apetites” (Morgado, 2019, p. 218). Assinale-se ainda, neste contexto, o uso do neologismo interno, “deslembraram”, resultante da associação do prefixo “des-”, ao radical “lembraram”, para atestar o estado de embriaguez que os acometeu e que, por certo, auxilia o realismo descritivo.
De facto, um dos instrumentos de que João Morgado lança mão, criando dinâmicas mais realistas em torno da reconstituição quer histórica quer de cenários, mergulhando o leitor na ambiência da expedição, gerando, por conseguinte, maior realismo perante o descrito, convocando a tal verosimilhança tão a preceito do texto ficcional, consiste, sem surpresa, na sua ferramenta de trabalho privilegiada, ou seja, a linguagem, revestida de apontamentos de época, acolhendo mesmo arcaísmos, e certa gíria usada pelos marinheiros, mas também, sem surpresa, castelhanismos. São muitas as expressões ou vocábulos auxiliadores da criação de atmosferas. Vejamos apenas alguns exemplos que nos colocam na época e no ambiente de viagem:
“27 de Abril do ano do Senhor de 1521”, p. 288; “como era usança”, p. 71; “cobrar bons dinheiros”, p. 33; “rogarem a proteção divina”, p. 248; “chegar à fala com”, p. 65; “perna achacosa”, p. 61; “aquietai-vos”, p. 65; “quedou-se mudo”, p. 69; “a neve caia cada vez com mais abastança”, p. 142; “ungento de folhas de alteia, p. 142; “pústulas abertas pelo corpo”, p. 142; “muito siso”, p. 146; “ficou feliz por sabê-los vivos”, p. 161; “lançou ferros”, p. 183; “poupem os arcabuzes”, p. 292; “ceus envorilhados”, p. 202; “caíram uns sete flechados no peito”, p. 219; “filharam também galinhas e porcos pretos”, p. 218; “aprestar as naus”, p. 290; “estariam de atalaia”, p. 290; “Os homens laçavam prumo – uma corda com vários nós. De oito em oito palmos, para a contagem do número de braças -, mas não achavam cavado”, p. 191; “caramanchões”, p. 142; “Na escuridão não era possível vedar as frestas do casco”, p. 158; “a quilha batia em fragas e oscilava”, p. 158; “pelear por isso”, p. 249; “ancho”, p. 102; “cerca de si”, p. 103; “quitar”, p. 281; “cuchilho aguçado”, p. 152.
Neste mar de vocábulos e expressões dignos de nota, há ainda espaço para a utilização de figuras de estilo, termos originais, uso dos cinco sentidos, como se poderá constatar nos exemplos que se seguem:
“morder a dor”, p. 143; “aquele sul mostrava-se bravio e danoso”, p. 173; “endemoninhados”, p. 121; “olhos marejados com lágrimas”, p. 142; “tristura”, p. 152; “ranger das madeiras” p. 249; “se ouvia o marulhar das águas” p. 249; “De pronto as águas tornavam-se negras de novo”, p. 191; “cheiro salgado da maresia”, p. 172.
Enfim, a linguagem foi trabalhada com afinco, criando cumplicidades, auxiliando a verosimilhança, transportando-nos para a época e contextos vivenciados e gerando, por conseguinte, o tal realismo descritivo de que atrás falámos.
No fundo, nesta sua versão fidedigna dos factos, pois assente em fontes, alicerçada na consultadoria científica de um historiador versado nestas matérias, João Morgado faz deste um romance mimético, sem qualquer dúvida. Como tal, o desfecho é já conhecido pelos compêndios da História. Assim, a originalidade da obra em análise reside no modo como os factos são relatados, uma vez que, ainda que documentados em fontes, não deixam de estar dispostos ao sabor da imaginação do ficcionista que nos conta a sua versão da história, daí que os momentos descritivos e a linguagem usada sejam instrumentos fundamentais auxiliadores da sua versão da História. Neste sentido, o olhar do escritor aproxima-se ao do cineasta, uma vez que o leitor ou o espectador se comprometem a embarcar nesta viagem revivida à luz da sua perspetiva. Fazemos agora a viagem, não pelo Google Earth, como fez Carlota Simões no já mencionado Simpósio dedicado a Magalhães (2021, pp. 35-56), que, de resto também é bem interessante, mas pela escrita de João Morgado. É pelo seu olhar atento, recriando cenários, diálogos, experiências, processando na sua mente informação colhida e vertendo-a, pela escrita, em imagens, intentando recontar como tudo aconteceu, que revivemos, 500 anos depois, esta aventura. Portanto, João Morgado apresenta-nos a outra face da história, que vai desde o lado humano de Magalhães, aos medos e anseios dos marinheiros, aos ritmos nem sempre desejáveis, pois lentos e desesperantes, aos fracassos que, muitas vezes, são aligeirados ou até mesmo apoucados nos compêndios da História, acabando assim por, de alguma forma, neste contexto específico, apresentar pinceladas do tal lado iluminador dos sentidos da História de que Miguel Real nos fala, tão a preceito do pós-modernismo. Ou seja, a trama principal é inquestionavelmente mimética, mas o recontar da história assume, especialmente no que à humanização das personagens diz respeito e ao relato de certos dramas que são menos propagandeados, um contorno mais ficcional, como é apanágio do romance, onde é permitido este contrato mágico com o leitor.
Por tudo quando foi dito, em boa hora João Morgado assinala o 5.º centenário das comemorações em torno da primeira circum-navegação ao Planeta, através deste belíssimo Romance Histórico que nos coloca perante vários dados factuais, baseados em robustas fontes consultadas, usando-se de uma linguagem que procura ancestrais raízes de época, recontado de uma forma séria e simultaneamente divertida um dos grandes feitos da história da Humanidade: o primeiro abraço ao Mundo. Como já se aludiu, o que prende efetivamente o leitor não é, por razões óbvias, o final, já conhecido pelos compêndios da História, mas a capacidade que João Morgado tem de anestesiar os sentidos do leitor, surpreendendo-o, a cada passo, com a sua forma peculiar de dizer, com o seu hábil manejo da linguagem, com a sua versão dos acontecimentos e das personagens envolvidas, com aprumado arranjo estilístico, obrigando-o a ler a obra de um só fôlego.
Enfim, perante o enorme caudal de informação e de aspetos estilísticos dignos de nota que esta obra comporta, é impossível em poucas páginas fazermos uma circum-navegação global à obra; nem era esse o nosso propósito. Intentámos tão-somente abrir um pouco o véu, aguçar a curiosidade, despertar o interesse para futuras leituras, no fundo, oferecer uma espécie de aperitivo que antecede uma degustação gourmet que será saboreada, em tempo e hora a gosto, por cada um de vós. Recordado Umberto Eco, para quem o texto é um “mecanismo preguiçoso (ou económico) que vive da mais-valia de sentido que o destinatário lhe introduz” (Eco, 1993, p. 55), ou seja, necessita que alguém o ajude a funcionar, apraz-nos dizer que cabe, por conseguinte, a cada um de vós a possibilidade de «acabar» a obra. Convocamos ainda, neste fecho, as pertinentes palavras de Ernesto Guerra da Cal que, num contexto específico, acerca da análise estilística que empreende em torno da obra queirosiana, dizia:
“[…] sabemos de antemão que não conseguiremos encontrar a rosa, de que falava Gourmont, na sua fragrância; mas se conseguirmos rodeá-la, examinar algumas das suas pétalas e aproximarmo-nos do ‘sanctum’ inacessível e inexpugnável do seu segredo vivo, consideramos isso mais que suficiente, e ficaremos satisfeitos” (CAL, 2001, p. 55).
Também nós, através da leitura realizada, tentámos apenas salientar alguns tópicos, em nosso entender, dignos de um olhar mais apurado.
Bibliografia
CAL, Ernesto Guerra da, Língua e Estilo de Eça de Queiroz, 4.ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1981.
COELHO, Jacinto do Prado, Problemática da História Literária, Lisboa, Ática, 1961.
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