Para que a Terra não esqueça

 

NICOLAU SAIÃO


O dever da memória é algo de inquestionável, de fundacional e de absolutamente importante para a preservação da Democracia e, por extenso, dos valores civilizacionais.

   Daí que em regimes autoritários os seus dirigentes procurem que a memória dos factos, a lembrança dos acontecimentos que nortearam o passado, seja algo de obscuro ou, preferencialmente, de absoluta ocultação.

    Nesta conformidade, é um valor relevante e um acto demopédico agir-se mediante a escrita ou a palavra por extenso para que a memória desses factos e a lembrança desses tempos inquietantes não se perca ou não fique solapada pelo cinismo obscurantista e sinistro.

   Assim sendo, aqui deixamos a seguir o texto, esclarecedor, da autoria do Prof. Vicente Ferreira da Silva, e que extraímos da Imprensa com os devidos respeitos e com agradecimentos ao seu autor. – ns


Do(s) genocídio(s) soviético(s) – o massacre de Katyn

Entre os regimes soviético e nazista é inquestionável que há diferenças. Mas também existem semelhanças que não se limitam ao totalitarismo e/ou à limitação da liberdade. As políticas sociais são disso exemplificativas. Em ambos os casos, apesar de diferentes sustentações, políticas e científicas – racial e mendeliana por parte dos alemães e ideológica e lamarckiana por parte dos soviéticos –, foram implementados programas de eugenia. Outros exemplos são o genocídio, o extermínio e a violenta repressão do Estado.

Pese embora este artigo refira apenas um dos episódios que caracterizam os regimes socialistas, que não se cingem à experiência soviética, deve ser salientado que as raízes destas políticas fundamentam-se nas ideias de Marx e Engels, que, em 1849, afirmando a superioridade dos alemães e da sua cultura, entre outras, expressaram: “(…) Todas os outros povos e nacionalidades [da Áustria], grandes e pequenos, estão destinados a perecer brevemente na tempestade mundial revolucionária (…). Na próxima guerra mundial, desaparecerão da face da terra não apenas as classes e dinastias reaccionárias, como também todos os povos reaccionários. O que é, claramente, um passo no sentido certo”.

A política de estado soviética, de erradicação de nacionalidades resistentes à doutrinação e aos interesses comunistas – implementada por Lenine, justificada por Trotsky [Terrorism and Communism: A Reply to Karl Kautsky (1920)] e seguida por Estaline – caracterizava-se, basicamente, por três vectores: a) extermínio físico, deportação e relocalização; b) genocídio cultural pela supressão da língua e das tradições e; c) diluição étnica pela fixação de pessoas de outras nacionalidades no mesmo território. O massacre de Katyn, ocorrido depois do fim do período do terror vermelho bolchevique, é disso ilustrativo.

Há oitenta anos, pondo em prática ideias defendidas de Marx e Engels, ideias que Estaline aplaudiu e comentou em Os fundamentos do Leninismo (1924), a polícia secreta soviética, na altura conhecida por Comissariado do Povo para os Assuntos Internos (NKVD), executou cerca de 22 mil soldados e cidadãos polacos. Sob as ordens de Laventri Beria, comandante do NKVD, o genocídio, aprovado pessoalmente por Estaline e por Vyacheslav Molotov, Kliment Voroshilov e Anastas Mikoyan, membros do politburo soviético, ocorreu entre abril e maio de 1940.

Apesar do nome, nem todas as vítimas foram executadas na floresta de Katyn, na Rússia. Algumas foram-no nas prisões em Kalinin e Kharkov, e em diversos outros lugares. Do total de mortos, só aproximadamente 8 mil eram prisioneiros de guerra. 6 mil eram agentes de autoridade pública, polícias, e o restante simples cidadãos, das mais variadas profissões – professores, artistas, pesquisadores, historiadores, etc. – presos sob a acusação de serem sabotadores, espiões, latifundiários, empresários, industriais, advogados, funcionários públicos e padres.

Como é que isto foi possível?

O Pacto Molotov–Ribbentrop, também conhecido como Pacto de Não Agressão Germano–Soviético, assinado a 23 de agosto de 1939, incluía um protocolo secreto que dividiu os territórios da Polónia, Lituânia, Letónia, Estónia, Finlândia e Roménia, entre a ex-URSS e a Alemanha. Através deste protocolo, que colocava o leste da Polónia e os Estados Báltico sob domínio soviético, Estaline recuperava o “império perdido de Lenine”.

O exército vermelho, sustentado nos termos acordados no Pacto, invadiu a Polónia a 17 de setembro, e, devido às instruções dadas pelo governo polaco, praticamente não encontrou oposição. Dois dias depois, sob a orientação de Beria, agentes e colaboradores do NKVD, construíram uma série de campos de detenção onde foi feita uma elaborada identificação e selecção dos prisioneiros. Paradoxalmente, a triagem feita pelos soviéticos foi facilitada pelo próprio sistema de recrutamento polaco que referenciava, como oficiais da reserva, todos os jovens que terminassem o curso universitário. Deste modo, não foi difícil ao NKVD prender igualmente milhares de elementos da intelligentsia polaca.

Ainda no âmbito do Pacto Molotov–Ribbentrop, foram realizadas várias reuniões entre o NKVD e a GESTAPO, para, entre outros assuntos, discutir a troca de prisoneiros. Daqui resultou que o NKVD ficou com a custódia de cerca de 40 mil prisoneiros de guerra, incluindo 1057 oficiais, oficiais da polícia e 25 mil soldados polacos. Chegados aos campos de concentração, todos aqueles que não demonstraram uma atitude pró-soviética foram executados.

Note-se, igualmente, que não foram apenas razões ideológicas que justificaram o assassinato em massa. A futura resistência à presença e influência soviética na Polónia também pesou na decisão. E como sabemos, a ex-URSS aumentou consideravelmente a sua área de influência após a II guerra mundial, onde também aplicou as suas políticas repressivas.

Não se iludem. Esta é a liberdade que o PCP (e o BE) defendem: a liberdade para obedecer cegamente. Nenhuma outra é tolerada ou permitida.

Se, por exemplo, a ex-URSS e/ou a Coreia do Norte são os paradigmas de democracia de Jerónimo de Sousa, não duvidem da sua sinceridade quando pergunta o que é uma democracia? É evidente que desconhece o que é a democracia e o seu significado. Caso contrário, não apoiaria regimes ditatoriais. Nem as suas práticas.

Não há ditaduras boas. Nem à direita, nem à esquerda!

Vicente Ferreira da Silva

(in Observador)