Para não dizer que não falei de flores

JOSÉ ROBERTO BAPTISTA
Para não dizer que não falei de flores [1]

“Não me é possível expender conclusões definitivas, predições e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil. Os problemas do Brasil relativos à economia, à sociologia e à civilização são tão novos, tão especiais e, sobretudo, dispostos de modo tão indistinto, em consequência da vastidão do país, que cada um deles exigiria um grupo de especialistas para esclarecê-lo inteiramente. É impossível ter uma noção completa de um país que ainda não tem uma vista de conjunto completa de si próprio e se acha em crescimento tão rápido que toda estatística e todo relatório já estão atrasados quando impressos.”
(Stefan Zweig. Brasil, País do Futuro. in http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/paisdofuturo.pdf)


Brasil, um país do futuro. Brasil, um país de futuro. Brasil, a terra da esperança. Brasil, o celeiro do mundo. Brasil, terra da felicidade e tantos outros epítetos surgem, diariamente, em vários títulos de artigos, manchetes de jornais, revistas e panfletos ao referirem-se ao Brasil.

Expressões como Brasil, o país do futuro norteiam desajeitadas opiniões de que o país não tem presente. Que o país vive uma espécie de fé que se retoma pelo todo sempre sob o manto da esperança.

Mas, de que Brasil estamos falando? Nunca é demais perguntar.

Do Brasil nordestino? do Brasil nortista? do Brasil sulista? do Brasil central? De um Brasil brasileiro, único?

Mas, o que significa dizer, exatamente, Brasil brasileiro?

O Brasil a que me refiro é o Brasil que coabita com uruguaios, mexicanos, norte-americanos, ingleses, portugueses, angolanos, italianos, gregos, austríacos, sudaneses, árabes, turcos, chilenos, israelenses, islandeses, noruegueses, australianos, chineses, japoneses, coreanos, irlandeses, espanhóis, paraguaios, bolivianos, etc., etc., etc., e, também, muitos, muitos brasileiros de nascença. Mais de 200 milhões.

Dentre todos, índios, barqueiros, seringueiros, agricultores, caipiras, sertanejos, caboclos, vaqueiros, cortadores de cana, plantadores, fazendeiros, aristocratas, políticos, engenheiros, médicos, professores, poetas, poetisas, diplomatas e muitos, muitos anônimos.

Também somos um país de vales, florestas, montanhas, planícies, planaltos. Somos um país banhado pelo Atlântico e cortado por rios de todos os calibres.

Mas esse ainda não é o Brasil. É apenas um sobrevoo a grande altitude que não nos dá a verdadeira dimensão daquilo que vemos. À grande altitude e distância, tudo parece menor.

O Brasil a que me refiro não pode ser reduzido a simples dados estatísticos, embora reconheça sua importância. Mas, também reconheço que não podemos medir os batimentos cardíacos utilizando uma fita métrica.

O Brasil a que me refiro é o Brasil de Gonçalves Dias, que numa crise de saudade o eternizou como sendo a terra das palmeiras onde canta o sabiá. Mas também cantam os corrupiões, os sanhaços, os surucuás, as saíras, os tangarás e tantos outros.

O Brasil a que me refiro é o Brasil de Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Hilda Hilst, Érico Veríssimo, Lya Luft, Nélida Piñon, Graciliano Ramos, Augusto dos Anjos, Ruth Rocha, Lima Barreto, Monteiro Lobato, José de Alencar, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Jorge Amado. E também de Camões, Almada Negreiros, Fernando Pessoa, Gabriel Garcia Marques, Ernesto Sabato, Jorge Luís Borges, Otavio Paz e tantos outros. O Brasil a que me refiro é, destacadamente, o país de Macunaíma, Iracema, Capitu, Emília e dos Capitães da Areia.

É também o Brasil das favelas, que demagogicamente começam a ser conhecidas como comunidades, termo que lhes subtrai toda antecedência e poesia. Aquela favela eternizada em verso e prosa não era uma comunidade. Era uma orgulhosa e altiva favela. A comunidade não é uma evolução natural da favela. Da mesma maneira que aculturado não é uma fórmula de evolução do índio. Velhas questões com novos nomes. Nada mais falso, nada mais indigno.

O Brasil a que me refiro é um país criativo. O Brasil a que me refiro é o país do carnaval, da bossa nova, do samba de roda, do maxixe, do forró, do maracatu, do frevo, do choro, do calango, do carimbó, do cateretê, da catira, da ciranda, do coco, do maculelê, do siriá, do xote e de tantos ritmos estrangeiramente brasileiros. Também, é claro, o país do futebol, que faz a alegria das massas.

O Brasil a que me refiro adotou como padroeira Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Nada menos que a mãe de Deus. Tem como padrinho, no sofrido, mas festivo nordeste, o Cícero, aquele mesmo, o milagreiro dos pobres e desamparados; por aquelas bandas carinhosamente conhecido como o padim ciço.

O Brasil a que me refiro reza para São João, São Pedro, São Paulo, Santo Inácio, São Bento, Santo Expedito, São Jorge, São Sebastião, Santa Luzia, Santa Rita, Santa Inês, Santa Clara, Santa Filomena, Santa Bernadete e até para Nossa Senhora de Todos os Povos, entre tantos outros.

O Brasil a que me refiro é o país dos católicos. Mas também dos protestantes, dos judeus, dos islâmicos, dos umbandistas, dos candomblecistas, dos budistas, dos hinduístas, dos kardecistas, dos quimbandistas, dos agnósticos, dos ateus.

O Brasil a que me refiro é o Brasil do presente – que está, e se faz, presente. O Brasil multicultural. O Brasil multicolorido. O país das Gabrielas cravo e canela, e das Marias de todos os nomes, todas as cores e todos os cheiros; dos Joões do centro, do norte, do sul, do leste e do oeste.

O Brasil a que refiro é o país dos sabores. Das sardinhadas e das bacalhoadas portuguesas, das pizzas e do macarrão italianos, das alcachofras e escargots franceses, dos sushis japoneses, do queijo minas, da feijoada de todas as origens, orgulho do povo, e do arroz com feijão, tudo, tudo preparado com o jeitinho brasileiro, carinhosamente à moda brasileira.

Um país com tudo. Inclusive com falta de escolas, com falta de programas efetivos e abrangentes de assistência à saude, com escandalosa falta de segurança pública, com insuficiência de moradias para os mais necessitados, com falta de saneamento básico. Um país ainda desigual. Um país que tem consciência que os direitos de todos muitas vezes são privilégios obscenos de poucos.

O Brasil a que me refiro ainda não superou, na prática, a separação entre Igreja e Estado. Não é necessário grande esforço para perceber-se isso. Basta observarmos as longas e estéreis discussões sobre o aborto, as células tronco, a união entre pessoas do mesmo sexo.

O Brasil do presente existe. É real.

É com base nisso que brasileiros e – brasileiros de todas as nações – queremos construir o Brasil com outros matizes

Mas, o Brasil do presente é melhor que o Brasil do passado. Superamos uma ditadura militar afastando o amargo cálice de vinho tinto de sangue. Aprovamos a Lei da Anistia para presos políticos, ainda em pleno período militar, com ampla mobilização social. Lutamos por eleições diretas para presidente: Diretas Já. Aprovamos uma nova Constituição, cidadã.

No Brasil do presente estamos punindo corruptos, como nunca a história testemunhou. Estamos diminuindo a fome, o analfabetismo, lutando contra a pobreza pandêmica.

O Brasil não dorme, e nunca dormiu, em berço esplêndido. Nada há de mais falso.

O Brasil do presente é um Brasil diferente do Brasil do passado. Construído – e em construção – por milhões de brasileiros e brasileiros de todas as nações. O Brasil do presente é um Brasil de sempre: festivo, alegre, gentil, amoroso, hospitaleiro e, acima de tudo, livre. Numa palavra – brasileiro.

Brasil, um país do futuro? Brasil, um país de futuro?

– Apenas o Brasil. Nada além do Brasil. Isto para não dizer que não falei de flores.


[1] Pra não dizer que não falei das flores é o título de uma canção escrita e interpretada por Geraldo Vandré. Texto publicado originalmente na Revista InComunidade, ano 3, 2014, revisado e ampliado.