Pai de família

 

 

RODRIGO LESTE


Rodrigo Leste é ator, poeta e produtor cultural. Publicou A Infernização do Paraíso — poesia e O Labirinto de Machado de Assis — contos. Precursor das publicações independentes em BH, coeditou o jornal alternativo O Vapor e a revista Circus. Nos palcos desde 1974, já encenou cerca de quarenta espetáculos teatrais. Produz e apresenta o Web-Programa Radiopoemas.


A. chegou no final da tarde de domingo em I., pequena cidade do Sul de Minas. Ele tinha enviado o seu currículo para a unidade local do Instituto Federal de Educação e foi convidado para uma entrevista que se realizará na manhã seguinte. Se aprovado, deve ir morar e lecionar em I. Depois de se hospedar no singelo hotel do lugar, saiu para dar uma caminhada. Acabou chegando numa pracinha, num bairro não muito distante do centro, onde sentou-se em um banco de cimento, bem sujo e meio quebrado. Abriu o livro que trazia, um romance de Jack London, e retomou a leitura. De repente, atrás dele, surge a um grupo que conversa em um tom de voz exaltado. A. escuta, mas tenta continuar concentrado na história de O Lobo do Mar. A falação prossegue e A. nota que só uma pessoa tem a palavra. Ele continua olhando para o livro, mas, na verdade, a conversa passa a lhe interessar.

— Assim num dá! –Exclama a voz grave e cheia de autoridade. — Tem que ter responsabilidade, comprometimento. Tô por aqui de me matar e vocês só fazendo corpo mole, ninguém vai à luta, tenta ajudar.

Fica evidente que está acontecendo uma reunião familiar, bem no meio da praça. A. contém sua curiosidade, refreia o desejo de se virar e ver o que se passa, prefere continuar fingindo que lê, enquanto escuta com muita atenção.

— Se vocês não mudarem, eu acabo dando a louca e caindo no mundo, sumo e ninguém me encontra mais. Já encheu! Nenhum de vocês quer nada com a dureza, é só preguiça, lambança, confusão. A tonta mor ali, a mãe de vocês, não é capaz de dar jeito nas coisas, não tem um que estude, que leve a escola a sério, vivem só aprontando; não é à toa que toda hora a diretora me chama e lá vou eu ouvir desaforo. E o dinheiro que eu enfio em casa parece que vai pro ralo, nunca dá pra pagar as contas, tá sempre faltando e eu passando perrengue, tendo que pendurar as contas no armazém, no açougue.

— Diz logo, mulher, fala onde você enfia o raio do dinheiro que eu dou? — Uma criança começa a chorar alto. — Cuidado aí, estrupício, você vai acabar deixando a Marcelinha cair, que diabo! — Rita! Pega o bebê do colo da sua mãe, tenta acalmar essa menina.

faz grande esforço para continuar de costas para o grupo, sabe que um movimento indiscreto pode acabar encerrando o assunto. A voz grave continua o seu discurso:

— Esse filme eu já vi: agora todo mundo é bonzinho, agora todo mundo chora e eu levo a culpa, fico sendo o capeta. Tô por aqui com vocês! — quase grita.

A tarde cai em I. As luzes dos postes de iluminação da praça se acendem. A. se mantém sentado com o livro aberto na mão. A única razão de permanecer ali é o fato de tentar continuar acompanhando o que está sendo dito.

— Pra mim chega! É domingo,mas preciso trabalhar porque não tenho o direito de ter nem um dia de folga, nem um. Tô avisando: não quero saber mais de papo, quero resultado, quero ver a casa brilhando, quero os meninos estudando, quero ver a Marcelinha sendo tratada como o bebê mais bem cuidado do bairro. É por isso que me mato, é por isso que arranco o dinheiro só Deus sabe como. Alguém quer falar? Alguém tem uma solução?

A. ouve o nítido tilintar metálico de muitas pulseiras.

— Então? Estamos conversados? — Surgem alguns murmúrios de concordância.

Agora A. escuta o nítido toc-toc de saltos altos sobre as pedras do piso da praça. A seguir, passa por ele um homem atarracado usando um microvestido negro brilhante, cheio de pulseiras e anéis, brincos e colares, além de uma tiara sobre os cabelos louros cacheados. Caminha equilibrando-se em um tamanco dourado de saltos exageradamente altos. A. constata que trata–se do pai de família, aquele da voz grave cheia de autoridade, que parte para a sua jornada de trabalho.

Já que não precisa mais disfarçar sua presença, A. vira-se a tempo de ver os familiares do sujeito: duas mulheres, uma mais velha de cabelos brancos, a outra mais nova que tem a cara mais desanimada do mundo. Um menino de uns oito ou nove anos e uma garota de uns doze ou treze que carrega um bebê. Depois de olhar com respeito e até admiração para o pai de família que vai trabalhar, eles saem da praça e começam a se enfiar vagarosamente na casa modesta que fica logo ali em frente.

Os grilos iniciam a sua cantilena noturna. O vento anuncia a chegada da chuva. A. ergue-se do banco, com seu Jack London sob o braço e, a passos largos, caminha de volta ao hotel.

A. sente que o cara está a ponto de explodir.

— Diz logo, mulher, fala onde você enfia o raio do dinheiro que eu dou? — Uma criança começa a chorar alto. — Cuidado aí, estrupício, você vai acabar deixando a Marcelinha cair, que diabo! — Rita! Pega o bebê do colo da sua mãe, tenta acalmar essa menina.

A. faz grande esforço para continuar de costas para o grupo, sabe que um movimento indiscreto pode acabar encerrando o assunto. A voz grave continua o seu discurso:

— Esse filme eu já vi: agora todo mundo é bonzinho, agora todo mundo chora e eu levo a culpa, fico sendo o capeta. Tô por aqui com vocês! — quase grita.

A tarde cai em I. As luzes dos postes de iluminação da praça se acendem. A. se mantém sentado com o livro aberto na mão. A única razão de permanecer ali é o fato de tentar continuar acompanhando o que está sendo dito.

— Pra mim chega! É domingo,mas preciso trabalhar porque não tenho o direito de ter nem um dia de folga, nem um. Tô avisando: não quero saber mais de papo, quero resultado, quero ver a casa brilhando, quero os meninos estudando, quero ver a Marcelinha sendo tratada como o bebê mais bem cuidado do bairro. É por isso que me mato, é por isso que arranco o dinheiro só Deus sabe como. Alguém quer falar? Alguém tem uma solução?

A. ouve o nítido tilintar metálico de muitas pulseiras.

— Então? Estamos conversados? — Surgem alguns murmúrios de concordância.

Agora A. escuta o nítido toc-toc de saltos altos sobre as pedras do piso da praça. A seguir, passa por ele um homem atarracado usando um microvestido negro brilhante, cheio de pulseiras e anéis, brincos e colares, além de uma tiara sobre os cabelos louros cacheados. Caminha equilibrando-se em um tamanco dourado de saltos exageradamente altos. A. constata que trata–se do pai de família, aquele da voz grave cheia de autoridade, que parte para a sua jornada de trabalho.

Já que não precisa mais disfarçar sua presença, A. vira-se a tempo de ver os familiares do sujeito: duas mulheres, uma mais velha de cabelos brancos, a outra mais nova que tem a cara mais desanimada do mundo. Um menino de uns oito ou nove anos e uma garota de uns doze ou treze que carrega um bebê. Depois de olhar com respeito e até admiração para o pai de família que vai trabalhar, eles saem da praça e começam a se enfiar vagarosamente na casa modesta que fica logo ali em frente.

Os grilos iniciam a sua cantilena noturna. O vento anuncia a chegada da chuva. A. ergue-se do banco, com seu Jack London sob o braço e, a passos largos, caminha de volta ao hotel.

 

RODRIGO LESTE
Monstro da perfeição
Contos
Brasil, 2022