Outros extratos de um primeiro romance-ensaio 2

 

ANTÍMIO DAMIÃO


Antímio Damião (Portugal). Autor / Desenhador Gráfico e Ilustrador / Formado em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa / Mestrando em Ciência Política na Universidade da Beira Interior.


A personalidade enigmática de Manuel Júlio, o carpinteiro, ainda que reunisse o respeito dos aldeões, suscitava, pelo contrário, um elevado número de críticas. Todavia, as deambulações constantes do seu cão suscitavam maior interesse. Mesmo assim, por mais que o animal vagueasse, maltratavam-no de quando em vez à pedrada e ao pontapé, sobretudo os beberrões saídos da taberna, que lhe aplicavam duros golpes de absurda e inexplicável crueldade, ao ponto de lhe urinarem para cima. À pobre criatura, de olhar melindrado e passo abatido, de pouco ou nada valiam a dor confusa dos seus latidos. Em vez disso, sobravam-lhe a fuga estratégica e o ganir inevitável. No entanto, como se desprezasse o mal de que padecia, vadiava pela aldeia e arredores, dotado de ágil elegância, larga curiosidade e um encardido tufo de pêlo sob o focinho, semelhante à barba rala e amarelada dum fumador inveterado. À noite, por entre as sombras da Rua dos Ciprestes, farejava as pedras da calçada e o reboco das paredes esfareladas da antiga fábrica de massas alimentícias. Mais adiante, lambia ralos e valetas e, a um canto escuro do portão da quinta do visconde terracovense, alçava a perna com agrado e aliviava a bexiga. Ao contrário de certos animais, parecia não ter dono nem primar pelo gosto da trela. Amava, sim, a liberdade, o desapego, o prazer das descobertas simples, e tudo via como se pela primeira vez. A sua condição canina levava-o a ladrar, num jeito embriagado, aos gatos fanfarrões que, aqui e ali, em cima de árvores e contentores do lixo, escarneciam dele e o incomodavam. Não obstante, elegia por norma a harmonia e passava ao lado de insultos e provocações. No tempo do estio, rebolava-se na terra quente e seca, e, quando sujo, corria a lavar-se no chafariz da praça. Por fim, já bebido e ensopado, sacudia a pelagem e borrifava o fontanário, em cujo granito os pingos se pregavam e logo se evaporavam à custa de um robusto sol de Agosto. Mas isto foi dantes. Ao longo do tempo, o cão, errando ao sabor da sorte, foi sendo confinado pelos muitos muros e cercas que entretanto se erigiram de forma a delimitar as propriedades abandonadas. Antes disso, resguardava-se num barril vazio no Beco das Taipas ou sob a fuselagem do avião decrépito diante da escola primária, dormindo ao som da chuva ou do pio nervoso das corujas. Quando a fome apertava, punha a língua de fora e ia rogar qualquer coisinha à porta da tasca ou do talho, a fim de matar a gana. Não obstante a antipatia ou a pouca comida com que aí se deparava, sobrevivia, uma e outra vez, à custa da caridade aldeã. Hoje em dia, em contrapartida, há todo um conjunto de regras e sinais, de marcos e interdições que o restringem aonde quer que vá, ao ponto de nem saber onde ficar. Agora, por mais sustento que mendigue, é alvo de um desprezo absoluto. Até as crianças, que tanto o apreciavam, cresceram e esqueceram-se dele como um sonho bom mas distante. Quanto a Manuel, seu dono, adia misteriosamente a morte, apesar da tísica de que padece. No trabalho, sua e escarra para a serradura acumulada no chão da oficina e fuma como uma chaminé. De vez em quando, limpa as mãos à camisa de flanela e encurva o pescoço qual ganso degolado. É tudo um sonho, pensa ele à medida que tece melancolias na alma e aplaina o tampo da mesa por lixar. Cansado, pousa a plaina na bancada e, por entre o segredar imaginário das ferramentas, vai até à janela e desembacia o vidro, com a mão suja. A neve cai e está um frio de rachar. Manuel fecha os olhos e bendiz a sua vida pacata. Com o passar do tempo, as badaladas do relógio de parede marcam as sete da tarde. A luz do lampião da rua entra pela janela. Manuel arruma o material e, espreguiçando-se, sai mansamente. A aldeia jaz sob um manto branco. O vento forte traz consigo um sabor a tristeza e desânimo. Manuel bafeja as mãos enluvadas, enrola o cachecol à volta do pescoço e contempla o horizonte. A caminho. No adro da igreja, o padre deambula em torno do cruzeiro. De calva ao relento e mãos atrás das costas, encara com apreensão o restauro em curso da igreja. O carpinteiro saúda-o e pergunta como vão as coisas. “Assim, assim”, responde o padre. Seguidamente, cruza as mãos, ora e benze-se, pedindo a Deus que as obras acabem depressa. O gesto, embora expressivo, não impressiona por aí além o carpinteiro. Em lugar de fé, há neste um vazio. Como tal, vira costas e afasta-se em silêncio. Por mais que desembarace as linhas da vida, estas voltam a enrolar-se. Na praça, a neve cobriu árvores, sebes, bancos; a água do chafariz gelou. Perto daí encontra o seu cão mordendo as entranhas duma galinha. Enjoado com o fedor das vísceras, reprime o animal. Rafael, velho por quem o carpinteiro nutre um respeito especial, passa por ali, agarrado a dois baldes cheios de estrume. Conquanto o cheiro do esterco o incomode, Manuel sorri para o velho. Este, por seu lado, meneia a cabeça, pousa os baldes no chão e tira um saquinho de tabaco e mortalhas do bolso do cardigã ensebado. Espalha o tabaco na mortalha e, com as mãos artríticas, enrola-a com perícia. “Há ratos no palheiro”, diz ele de cigarro na boca, acrescentando que está velho de mais para os caçar. O catarro fá-lo tossir; a barba, frisada e rança, agita-se como palha fina. O carpinteiro compadece-se, mas Rafael relembra-o de que só admite piedade na igreja e, de preferência, por altura das vindimas, em que a ajuda dos santos vem sempre a calhar. Esboça um sorriso e os poucos dentes podres sobressaem-lhe entre os lábios gretados. Cospe para o chão, pega nos baldes e despede-se com um melancólico aceno de cabeça. Na manhã seguinte, à chegada à carpintaria, as teias de aranha estremecem com a corrente de ar vinda do portão. Uma vez lá dentro, Manuel despe a samarra, arregaça as mangas, acende o lume — dia igual a tantos outros. A lenha, húmida, demora a atear-se; a luminosidade do fogo varre a penumbra matinal. A seguir, dá de comer aos gatos que aí rondam e, de imediato, afaz-se à escrivaninha que, a um canto, espera segunda demão de verniz. Terminada a tarefa, coloca-a a secar perto do lume. Às tantas, batem à porta. “O presidente”, murmura Manuel, limpando a bancada e indagando demais desleixos. O presidente da junta — de porte altivo, barbicha mefistofélica, olhar mordaz, chapéu de feltro e casacão de pêlo — espera à soleira da porta, compondo o monóculo e martelando a laje da soleira com a sua bengala de cedro. Manuel abre a porta, e o presidente, ao sentir o calor da lareira, entra de rompante, sem pedir licença, estacando diante do lume. Tagarela por natureza, perde o fio à meada do seu discurso e, corando, reveste o rosto de laivos demoníacos — dada a corpulência e o casacão, dir-se-ia um urso pardo. Por fim, respira fundo e continua a falar, descobrindo pouco depois a escrivaninha a seu lado. “Pelas barbas do profeta!… Você é um artista, caro Manel!”, rejubila-se, ao vê-la. O carpinteiro sorri, embevecido. O presidente, por sua vez, dá-lhe um safanão nas costas e, pegando na escrivaninha, pergunta ao carpinteiro se a pode levar já e pagar depois. Manuel, algo contrariado, concede o favor. À saída do presidente, ali cai um silêncio profundo. Um gato entra pelo buraco da porta dos fundos e começa a miar. Manuel dá-lhe um bocado de carne. O gato cheira-a, levanta o rabo e afasta-se, desagradado. Às sete em ponto, o trabalho termina e deixa de nevar. Manuel vai-se lavar no tanque das traseiras e, enregelado, seca-se a uma toalha e volta rapidamente a vestir-se. Ao sair, tranca o portão e comprova a magia cintilante das estrelas no céu negro. O bafo que lhe sai da boca revoluteia no ar e o seu espírito parece perder-se para lá da noite fria. Cobre os lábios com o cachecol e calça as luvas de lã. No acampamento cigano das redondezas, brilha uma grande fogueira, em redor da qual duas mulheres de cabelo longo e tez morena dançam de braços girando como saias rodadas. Os homens, de chapéu negro, batem palmas fervorosamente, sentados em escabelos. Perto daí, ouve-se um latido familiar. O cão de Manuel caiu numa vala, da qual o carpinteiro o instiga a sair. O animal obedece e, uma vez puxado pelo dono, lambe-lhe a mão e a cara, em jeito de agradecimento. Por conseguinte, ao pousá-lo no chão, o cão geme com pesar. Tem uma pata magoada, logo, Manuel não tem outro remédio senão carregá-lo até casa. Nessa noite, o cão, como que possuído pelo demónio, ladra incessantemente no quintal. Na manhã seguinte, Manuel enche uma tina de água morna e lava o animal. No fim do banho, este, satisfeito, salta da tina e sacode-se furiosamente, evidenciando uma magreza obscena. Depois, atira-se à tigela de comida como se não houvesse amanhã. Após a comezaina, adormece à sombra da laranjeira, aninhado na terra escura, todo ele deleite e preguiça. Enquanto dorme, Manuel vai à carpintaria e de lá volta com um machado, que depressa levanta no ar e com o qual, de uma assentada, decapita o cão. O sangue escorre e impregna-se no solo. Um esgar labial denuncia o desassossego de Manuel. Porquanto em torno da carpintaria jazem cães enterrados e os aldeões começam a desconfiar dele, Manuel esfola o cão na cozinha e trincha-o de modo a caber na maior panela lá de casa. Em seguida, estufa-o com batatas, couves, e, feito o cozido, serve-o numa bandeja, ao jantar. Na mesa dispõe ainda a cutelaria de prata e a toalha rendada da falecida mãe. “A que saberá?”, pergunta ele a si mesmo, à medida que fatia o ventre tenro do animal.

 

O homem que entrou e saiu da taberna estava habituado a papar léguas e a deixar sorrisos e histórias por onde passasse. Errava pelo mundo, à procura de um lar definitivo. Lamentava a incompreensão a que era votado, o azar constante, a incerteza do futuro. Esforçava-se para encontrar a felicidade, embora tudo lha negasse. Por sua vez, a peregrinação encorajava-o a viver e remetia-o ao silêncio, sobretudo quando as vozes da discórdia, que não recusava contanto que civilizadas e tolerantes, se convertiam em troça, calúnia e incompreensão. Cansado da sociedade humana, lançou-se à estrada. Antes de partir, jurou não regressar. Assim não sofreria emendas ou arrependimentos e evitaria a falência dos seus ideais. Ninguém sabe ao certo o seu nome e, pelo que consta, nunca se saberá, uma vez que perdeu a vida à custa de dois serviçais galhofeiros que o mataram em rusga injusta e cobarde de dois contra um. O corpo foi descoberto ao início da noite, junto à antiga fábrica de massas alimentícias, quando o sacristão da paróquia, já ébrio, regressava a casa depois de um serão na taberna da praça. Ao dobrar para a Rua dos Ciprestes, estremeceu de terror ao pontapear sem querer o tronco nu e agonizante do peregrino espojado no chão. O rosto, polpa de sangue e chagas, coroava-lhe a palidez da pele marcada por lanhos penetrantes, aplicados por naifa grossa e afiada; as suas lamúrias resumiam-se a um arquejar salivado; o seu cheiro era intenso e repugnante; a sua fraqueza e imobilidade impediam qualquer tipo de comunicação. O sacristão levou as mãos à cabeça, repetindo para si mesmo, durante largos segundos, o que fazer em face da tragédia. Tomou a mão do homem e, indeciso entre agir ou não agir, ficou a vê-lo morrer. Com efeito, o estertor do moribundo reduziu-se a um bafo débil e sibilante. O outro, pressionado pelo medo, correu enfim a casa do velho Rafael, donde telefonou a pedir ajuda às autoridades competentes. O sinistrado, entretanto, sucumbiu a sós, emanando um vapor vago que a noite acolheu com a maior indiferença.

 

Quando os pássaros adejavam loucamente em torno dos silos abandonados do apeadeiro ferroviário como Harpias em redor de um Titã couraçado, a tempestade adveio. O comboio, já perto da sua chegada, foi travado por um enorme ramo de sobreiro que, à custa da força bruta dos ventos, caiu perigosamente na via férrea. Os passageiros, apanhados de surpresa pela fatalidade, foram obrigados a sair do comboio e a caminharem até ao apeadeiro, quais vultos trôpegos ante a alvorada ainda mortiça, abalroados pela ira gélida e irrefreada das rabanadas. Olegário Esteves, ex-mineiro rude e honesto, lamentou o contratempo. Era sempre assim: nada o ajudava, nada resultava, nada batia certo. Melhor faria se ali ficasse entre carris, açoitado pela chuva, imerso no fusco alvorecer e flanqueado pelas canas agitadas e vergadas dos canaviais, à mercê do vendaval. Havia nele um rancor que há muito o asfixiava como uma forca. Ser-lhe-ia possível refazer a vida depois de tantas contrariedades? Atrás dele seguiam os restantes passageiros, convictos de entreverem, lá ao fundo, as paredes caiadas do apeadeiro e a luz dos semáforos da ferrovia. A dada altura, o comboio reatou a marcha e repescou os passageiros mais adiante, conduzindo-os em segurança ao seu destino. Olegário, inconformado, preferia ter enfrentado a tempestade. A seu ver, quanto maior o esforço tanto maior a recompensa. O mundo, pensou ele à medida que a alvorada despontava do outro lado dos montes, é uma caverna de mágoas e crueldades, atenuado, no entanto, pelos coros de vozes que, nos templos, cantam louvores ao Criador. Ao sair do comboio, entreviu Vidal, o filho do guarda-freio, que, de mãos trémulas, se encaminhava para ele com uma camisa rota e ensanguentada, encontrada ao acaso na via férrea. Dadas as circunstâncias, Olegário esqueceu o que tinha a fazer e foi entregar a camisa à polícia. A mancha indelével do mal tingira de escarlate aquele Outono.

 

Os charcos em redor da escola primária gelaram com o frio. Uma velha porta de madeira repousa à tona de um charco qual jangada imóvel em mar gelado. Quando os miúdos saem ao recreio, saltam o muro em torno da escola e, da margem, com um agrado furioso, apedrejam a porta. Os mais corajosos saltam para cima desta como índios na inércia invernal, rodeados de eucaliptos geados, cacos de gelo nas poças de água, giestas descarnadas e um cheiro a chamiço, zimbro e lenha queimada. As minhocas despontam da terra como línguas agitadas. Mais atrás, a escola ergue-se aquém do prata enevoado do céu, moradia imperial de livros e carteiras, qual castelo bege de alpendre alto donde tantas gerações caíram com menor ou maior estropício. Os miúdos, sempre que podem, recebem estranhos à pedrada, excepto o professor, que, de manhã, chega à escola em passo lerdo mas seguro, ciente da sua discreta autoridade. A auxiliar, mulher grisalha de meia idade, reverencia-se-lhe ao passar, não vá ele queixar-se ao director. No entanto, aquela, sempre que pode, açoita, com uma vara, os alunos rufias. Em resposta, estes, ao toque para o recreio, acotovelam-se e amontoam-se junto à porta de saída, competindo por um lugar à janela na cantina ou pelo canto mais abrigado no telheiro do pátio. Neste corrupio de anseios e injúrias, improvisam-se armistícios à passagem do professor, que finge ignorar a animosidade que paira no ar. Com efeito, sente o pavio curto dos alunos que esperam ansiosamente pela sua entrada na sala de aula, para, só então, explodirem num furor irrefreável. Porquê castigar os de tenra idade?, pensa ele. No Inverno, tem o costume de ficar em casa a corrigir os trabalhos de casa. Apesar das respostas disparatadas da criançada, há quem já revele talento quer para as ciências sociais, quer para as exactas. Vidal, o filho do guarda-freio, faz parte desta estirpe. Todavia, apesar das boas notas escolares, sonha acordado durante as aulas e, olhando pela janela, imagina-se em viagem pelo espaço sideral, à boleia de um dos OVNIS que muitos juram ver pairar de quando em quando sobre a serra. Apesar da sua inocência, crê que uma treva abissal vem cobrindo a aldeia e o mundo, e, por esta razão, sonha em fugir dali. Até lá, resiste na primavera da vida, mas descobrirá a seu tempo as mentiras dos adultos. De igual modo, da boca desdentada do pai escorre uma peçonha abjecta de saliva e álcool, bem como uma sabedoria reles de tirano que, de vez em quando, aplica a vergastada condenável no dorso frágil da criança. Vidal, magoado, sai de casa e vai brincar junto do poço. Por entre as flores da roseira, lobriga uma aranha grande e negra, em cujo abdómen assenta uma caveira vermelha. Apavorado, manda um salto atrás e fica a olhar para ela, segura e sempre a postos no centro da teia. Quando o pai lhe bater, fugirá rapidamente como a aranha. Para isso, roubará o cofre escondido na cozinha e, aproveitando o sono do progenitor, partirá de bolsos cheios, rumo à cidade do outro lado dos montes. Se Deus quiser, ver-se-á ao desvario nesse longínquo frenesi e contemplará as maravilhas que o caixeiro-viajante lhe relatou um dia ao abrigo da lua e das estrelas.

 

Um olhar atento explica por que razão as flores de laranjeira, nas tardes boas, se atropelam entre si para melhor absorverem os raios de sol que, preguiçosos, caem de um céu interpolado por farripas de branco que as nuvens lactam à medida que a vida cá em baixo explode através do galope destravado da miudagem que se esparge na plenitude livre dos campos, horas a fio, qual prelúdio de um acaso embebido no puro élan de ser, ainda que este viver absoluto se venha a esgotar por culpa dos catraios entretidos em desprezar a maturidade que abraçarão doravante. Assim corre a vida, senhoras e senhores. No entanto, na calada da noite, um clarão distante amplia-se no seio do matagal para logo se extinguir, pouco a pouco, qual chama murcha de vela. Seguem-se-lhe gritos cavos, intermitentes, que ecoam pelos meandros do bosque como prantos de besta selvagem. Um sapo gordo e lúbrico sai da vegetação tumultuosa à beira da estrada e estaca no asfalto, à luz do único lampião. Por instantes, reina a imobilidade, embargada pela morrinha persistente e pela correria do vulto que, do bosque para a aldeia, cruza a linha férrea. É tarde, meninos e meninas, muito tarde para que o que tenha acontecido seja algo de bom. Por fim, o vulto, à chegada à Rua dos Ciprestes, rende-se ao cansaço e, esvaído em sangue, cai por terra, em tronco nu. Transido de frio, pressente um leve pontapé no dorso, mas é já tarde, senhores e senhoras, meninos e meninas, para que possa restabelecer-se. Momentos depois, a sua alma vogará no vento do levante, em voo de águia sobre Cova da Terra, velando o sono dos aldeões. No dia seguinte, os sinos dobram a rebate. Quem morreu?, perguntam os anciãos, rendidos à presença íntima da morte.

 

Alguém pôs uma escola do tamanho de uma península no caminho para o meu trabalho. Deparámos com ela, eu e o bando de Titãs que me acompanhava. Alguns alunos assistiam às lições nas salas de aula, outros, ao fundo do pátio, conviviam em alvoroço. Estes, cientes da nossa chegada, correram até nós, formando à nossa volta um corredor de punhos e olhares sinistros. Estacados como estátuas, obrigaram-nos a passar por entre eles. Como nenhum dos que me acompanhavam se decidia a avançar, tomei a iniciativa e adiantei-me. A decisão foi feliz. Os que me seguiam foram agredidos sem indulto pela estudantada. Por sua vez, continuei a eito, como se uma olhada atrás ditasse a minha morte. Atravessei o pátio e percebi pelo canto do olho que fora o único a fazê-lo. Trepei o muro e saltei para o outro lado. Em lugar do meu trabalho, havia agora um caminho acidentado e uma paisagem de rochas lunares e crateras. Senti na pele os cortes provocados pelas arestas de meteoritos e pelas escarpas laminadas das vertentes. Fugi a monte, sem perceber para onde ou porquê. Estava frio. Aproximei-me de algo estranho que queria alcançar. Por fim, caí no chão e assim fiquei. Em esforço, levantei a cabeça e, ao longe, vi um mar de supernovas em expansão. Deixei cair a cabeça sobre o braço e, à medida que o céu escurecia, um cometa passou-me diante dos olhos. Por fim, o vazio ditou o meu último sossego e aqui fiquei, em sono ciclópico, velando esta aldeia, neste monte esquecido pelos deuses.

 

No sonho, isolou-se na galeria superior do complexo fabril em ruínas junto aos enormes silos do apeadeiro. A ferrugem acumulava-se nas superfícies metalizadas. Ao princípio, julgou-se numa refinaria, dado o crude vertido nas paredes, mas, pouco depois, percebeu-se naquela fábrica devoluta e repleta de cadeias que pendem do tecto como lianas. A curiosidade levou-o a um poço abissal, rodeado de um corredor espiralado. Lá em baixo, um cão nadava de margem para margem, sem conseguir sair. A luz trespassava o vidro estilhaçado das claraboias no tecto. Quando os latidos do cão cessaram, Vidal encontrou-se dentro do velho avião à frente da escola primária. Um rio de lava afogava a aldeia; nuvens de fumo desfraldavam-se no ar. Um fio de luz varou o céu plúmbeo e alumiou a face de uma bela menina que, entre as ruínas da velha casa ao cimo da ladeira, o observava, imperturbável. De repente, foi erguido por uma coluna que irrompeu do solo e em redor da qual surgiu um lanço de escadas que desapareceu por entre as azinheiras do bosque. A menina, cujo grito se perdeu na distância, desfez-se em mil botões de rosa, e os aldeões, atacados por uma saraivada de pedras que pareceu vir da escola, dispersaram-se às carradas, num salve-se quem puder geral. Vidal viu-se então em queda desamparada, parando a pouco centímetros do solo. Fugiu para as lezírias, mas as lezírias já lá não estavam. Em seu lugar, havia um deserto de sal alvíssimo, a cuja brancura ele passou a pertencer através da desintegração do corpo, que, uma vez desfeito, deu lugar ao esqueleto e à fusão deste na alvura dominante. A seguir, o Sol saudou-o, varando a janela do quarto.

 

Onde estaria? Acordou e sentou-se sem perceber se o fizera. Naquele vazio, era impossível precisar fosse o que fosse. Estava só. Tacteou-se para confirmar se ainda existia. Porquê estar ali e não noutro lugar? Não via um palmo à frente do nariz e, pensando bem, nem a palma da mão. Era algo, disso tinha a certeza, ainda que não entendesse se pensava ou se pensava estar a pensar. Ainda assim, sentia-se vivo, com noção do corpo e dos pensamentos. Para além da escuridão, não ouvia nada, não via nada, não tacteava nada, nada de nada. E o nada era negro, o mais escuro e desolador que se possa imaginar. Deitou a cabeça nos braços e adormeceu sem entender se adormecia. Quando acordou, viu uma luz. Estremunhado, esfregou os olhos. Era uma luz, sim, na distância. Reanimado, correu para lá. A luz, aparentemente próxima, estava na realidade bastante afastada. Por tal razão, demorou muito tempo a lá chegar, quiçá a eternidade. Sem perceber, viu uma porta iluminada. Parou diante dela, coroado pela luz mortiça de um candeeiro de metal suspenso a metros do solo. A vigia da porta não permitia ver o interior. Bateu nela. Nada. Bateu novamente. Nada. Gritou até ao limite das suas cordas vocais. A porta abriu-se. Ouviu passos. O coração disparou. Alguém desceu uma escadaria e os passos interromperam-se, seguidos de uma respiração ténue e arquejante. Uma luz vermelha acendeu-se de súbito, revelando um vestíbulo sombrio com mesa de canto à esquerda e duas cortinas de veludo mais adiante. Dois ingressos repousavam em cima da mesa, um deles com o seu nome. Teve a sensação de que alguém, algures, o troçava. Entretanto, as cortinas arredaram-se de par em par e, no vestíbulo escarlate, surgiu uma ruiva arrebatante. O escritor, entusiasmado, susteve a respiração. Naquele momento, nada existia senão ele e a que o esperava do outro lado. A mulher sorriu. Deslumbrado, avançou para ela, porém, por qualquer motivo, não conseguiu transpor o umbral da porta. Por mais que tentasse, e muitas foram as tentativas, algo invisível lhe barrava a entrada. Com o desejo a consumi-lo, percebeu que daí a pouco a noite terminaria e ele ali, à espera de entrar, até chegar a manhã que nunca viria. Encostou-se à parede e deixou-se cair no tapete da entrada, de braços estendidos sobre os joelhos. Para lá do tecto inexistente, viu o céu enevoado. A chuva não tardaria a cair.

 

As furgonetas, sejam de caixa aberta ou estejam estas cobertas de lona, passam nas ruas da aldeia, o seu estrépito desengonçado a relembrar o tambor lasso de uma máquina de lavar. As máquinas e os veículos também morrem. Tanto que um frigorífico serve de amparo àquele muro torto, uma torradeira jaz naqueloutro entulho de terra. Por mais que o progresso tecnológico se anuncie, as suas falhas fazem-se notar. Nada dura para sempre. Além disso, tudo se estranha mais quando dois homens se entrecruzam de noite, em silêncio, de mãos nos bolsos, contritos. Na verdade, qualquer um deles anseia saber por quem passou e, como tal, olha para trás na esperança de saber quem era. Tarde de mais. Um deles mergulha já na treva adiante e tudo volta à normalidade inexplicável das coisas. Quando a calma impera, há passos furtivos que estorvam a noite e que ciência alguma consegue explicar. Nesta dimensão oculta, as anomalias agitam o edifício da normalidade como um tropel de furgonetas. Os padrões dogmáticos do real enquadram a aldeia numa verdade normal que a todos apraz. A vida faz-se de aceitação e esgota-se na cartilha da conformidade. Este fado estende-se de dia para dia, nas vozes e nos gestos dos que o cantam. No entanto, há quem desafine ou se esqueça do seu estribilho e eleja outros caminhos para andar. Nestes atalhos insondáveis abundam maravilhas que só aos sonhadores se revelam: rios de leite e mel, sobreiros deformados em cujo tronco se abrem portas de estanho, pilares de serpentes entrelaçadas, altares de ónix e arcadas de folhas secas. Um cheiro de lavanda e gasolina palmilha cada espaço, cada veio de ouro, cada recanto mágico de erva orvalhada. Há girassóis que se desprendem do solo e, de raízes soltas, executam, com perícia, marchas e pinotes de danças russas; há pedras ribeirinhas que, ao sol, espirram exacerbadas pela passagem da água fresca; há lanços de escadas até ao céu, pontes de pedra que interligam árvores e cabeços, galerias subterrâneas que se estendem ao centro da Terra, palácios de ninfas encantadas, uma infinitude de grandezas extraordinárias. Porém, nada disto importa, porque aos homens já não interessa sonhar. Antes o pragmatismo, a felicidade aparente e escolhida a dedo, a recusa da paciência e do pensamento próprio, a segurança exagerada, a frieza da separação e a recusa do contraditório. Tudo menos a imprevisibilidade. O lastro viral do medo fez um mundo que ninguém quer, um mundo onde os homens se tornam reféns de si mesmos e o risco da liberdade se apaga à distância de um clique. Se nada há a esperar, há que sacudir o pó das guilhotinas e decapitar os culpados, impedir o derrame das trevas, parar as rotativas do pânico. Nunca as utopias se adaptaram e pertenceram à realidade. Aliás, todas elas fracassam e perecem no esquecimento como um espantalho ignorado pelos pássaros.