Outros extratos de um primeiro romance-ensaio

 

ANTÍMIO DAMIÃO


Viveram como almas gémeas naquele cantinho modesto do interior, possuídos por forças estranhas e ecos de outrora que se escutaram, vivos, na infinitude do tempo. Era o amor de sempre, repetido noutro lugar. Renasceram durante três luas e sóis, nas alcovas sujas dos celeiros e no leito dourado das searas sacudidas pelo vento, no erotismo bucólico do campo, longe de olhares indiscretos, rostos manchados de felicidade em confluência de terra e céu. Porém, por mais que o amor agite a poeira dos tempos, tudo acaba e decai. Anos depois, separaram-se. Agora, quando as searas varrem as memórias para o poente e o calor da terra se torna súmula de saudade, o Sol, uma vez posto, afunda-o na melancolia. Chegado o crepúsculo, recorda a amada e conversa sozinho com ela. Por vezes, faz piqueniques na seara e nas escadas do adro da igreja, enquanto as abelhas e as moscas zunem em torno do pão com compota. Enlouqueceu, pensam os outros. Recolhida a toalha e o cesto, regressa a casa, vagaroso e espicaçado pelo tridente da recordação. Em boa verdade, tudo começou num arraial vadio cuja memória teima em ficar, em noite de paixão e partilha vividas por dois dos seus mais dedicados artistas: ela de cabelos de seara dourada e olhos escuros de breu; ele um pouco mais velho, conservador e ingénuo, frente a frente, na Praceta das Estrelas. Ele reteve dela os beijos inicialmente tímidos mas gradualmente lascivos, o apelido aristocrático e a preposição “DE”, assim, em maiúsculas. “Tenho um chapéu lá em casa, anos oitenta, muito pop. Talvez o leve amanhã à noite, à discoteca. Vais, não vais?” A voz dela era grave, sumptuosa; parecia gostar de provocar e seduzir; e embora denunciasse uma leve insegurança que ele intuiu mas que preferiu ignorar, continuou a falar com desembaraço. Ainda que não lhe apetecesse ir dançar na noite seguinte, porque em verdade preferia ficar ali a embriagar-se de palavras no abismo daqueles olhos escuríssimos em cujas pupilas se reflectia o dourado calaceiro dos lampiões, ele ponderou, fez-se difícil e, por fim, recusou. Porém, depois da insistência dela, e tomado pela excelência do momento, aceitou o convite. Riram como se insinuassem o que pensaram sem nada saberem disso. Afinal, que mais interessa ou há a saber senão o entendimento de dois espíritos inquietos? A pele dela deslizou-lhe sobre a testa. Um beijo reticente, com sabor a amora silvestre e malte, marcou os lábios de ambos. O mundo parou num olhar hesitante como uma fantasia indecisa que só os corpos entendem. Para quê falar? Num gesto puro de espontânea vontade, o véu caiu, e os rostos, ortodoxas máscaras da sensibilidade, acusaram o crime de querer, presos em e por si mesmos, olhos e mãos tremendo na aproximação e no anseio de rasgarem a barreira decorosa da beleza e da roupa, como se Adão e Eva, à luz da maldita espera usada do desejo, desesperassem pelo beijo da serpente num prístino éden de província. “Não costumo ser assim”, aventou ela. “Como?”, volveu ele. “Atrevida.” A solidão foi-se, os cães sopraram, o vento latiu, e esses dois espíritos, que já mal entendiam o escorar do dia no escoar da noite, trocaram memórias de sábados febris em bares pejados de carrancas e ébria passividade, de sapatos solteiros à beira-rio, do que foi e interessa revelar antes que o tempo o apague. Deus perdoa, é certo, em perpétuo consenso, a tola sinceridade dos amantes, do mesmo modo que a paixão mais intensa antecede a brevidade de um adeus. Às vezes, disse ela, sonhava com um mundo delirante e melhor que a vida, do que isto, o visto, do que tudo. Sacudiu o cabelo, juntou as pernas em cima da cadeira e recolheu-as contra o peito. Tombou a mão esguia de lado donde pendeu o cigarro que fumou como se isso afastasse os piores traumas. Em menina primou pelo desassossego, confessou. A dada altura, os carros, poucos, abandonaram o recinto, acossando a calma das ruas semiescuras e salpicadas por bandeirinhas ridículas e multicoloridas. Cheirava a churros, flor de laranjeira e cerveja. Ao fim de um tempo, acabaram sentados na argamassa lisa de um degrau de porta, lado a lado e troçando dos que, àquela hora, davam os seus mui embriagados passos de dança no baile do arraial. A música alta ditava a boémia. Os resistentes ficaram e outros debandaram como gado assustado — havia filhos a deitar ou sexo a fazer. As faces cansadas denunciavam a necessidade de conforto doméstico em detrimento do divertimento nocturno. No fim, ninguém diria que aquele baile viesse a ser o apogeu de uma era, a derradeira mostra de uma datada alegria de viver, tida na comunhão gloriosa de sorrisos e abraços que, na loucura do coreto apinhado de pândegos, semearam e celebraram, durante anos, a aliança dos espíritos livres que, nesse tempo quente e festivo, riram e dançaram noites adentro. O amor é luz desaforada, impossível de travar, pois até os cegos sentem a luz. Para quê o fardo oneroso dos dias tristes quando certas noites de antanho compreendem as mais bonitas e auspiciosas fábulas?

A personalidade enigmática de Manuel Júlio, o carpinteiro, ainda que reunisse o respeito dos aldeões, suscitava, pelo contrário, um elevado número de críticas. Todavia, as deambulações constantes do seu cão suscitavam maior interesse. Mesmo assim, por mais que o animal vagueasse, maltratavam-no de quando em vez à pedrada e ao pontapé, sobretudo os beberrões saídos da taberna, que lhe aplicavam duros golpes de absurda e inexplicável crueldade, ao ponto de lhe urinarem para cima. À pobre criatura, de olhar melindrado e passo abatido, de pouco ou nada valiam a dor confusa dos seus latidos. Em vez disso, sobravam-lhe a fuga estratégica e o ganir inevitável. No entanto, como se desprezasse o mal de que padecia, vadiava pela aldeia e arredores, dotado de ágil elegância, larga curiosidade e um encardido tufo de pêlo sob o focinho, semelhante à barba rala e amarelada dum fumador inveterado. De noite, por entre as sombras da Rua dos Ciprestes, farejava as pedras da calçada e o reboco das paredes esfareladas da antiga fábrica de massas alimentícias. Mais adiante, lambia ralos e valetas e, a um canto escuro do portão da quinta do visconde terracovense, alçava a perna com agrado e aliviava a bexiga. Ao contrário de certos animais, parecia não ter dono nem primar pelo gosto da trela. Amava, sim, a liberdade, o desapego, o prazer das descobertas simples, e tudo via como se pela primeira vez. A sua condição canina levava-o a ladrar, num jeito embriagado, aos gatos fanfarrões que, aqui e ali, em cima de árvores e contentores do lixo, escarneciam dele e o incomodavam. Não obstante, elegia por norma a harmonia e passava ao lado de insultos e provocações. No tempo do estio, rebolava-se na terra quente e seca, e, quando sujo, corria a lavar-se no chafariz da praça. Por fim, já bebido e ensopado, sacudia a pelagem e borrifava o fontanário, em cujo granito os pingos se pregavam e logo se evaporavam à custa de um robusto sol de Agosto. Mas isto foi dantes. Ao longo do tempo, o cão, errando ao sabor da sorte, foi sendo confinado pelos muitos muros e cercas que entretanto se erigiram de forma a delimitar as propriedades abandonadas. Antes disso, resguardava-se num barril vazio no Beco das Taipas ou sob a fuselagem do avião decrépito diante da escola primária, dormindo ao som da chuva ou do pio nervoso das corujas. Quando a fome apertava, punha a língua de fora e ia rogar qualquer coisinha à porta da tasca ou do talho, a fim de matar a gana. Não obstante a antipatia ou a pouca comida com que aí se deparava, sobrevivia, uma e outra vez, à custa da caridade aldeã. Hoje em dia, em contrapartida, há todo um conjunto de regras e sinais, de marcos e interdições que o restringem aonde quer que vá, ao ponto de nem saber onde ficar. Agora, por mais sustento que mendigue, é alvo de um desprezo absoluto. Até as crianças, que tanto o apreciavam, cresceram e esqueceram-se dele como um sonho bom mas distante. Quanto a Manuel, seu dono, adia misteriosamente a morte, apesar da tísica de que padece. No trabalho, sua e escarra para a serradura acumulada no chão da oficina e fuma como uma chaminé. De vez em quando, limpa as mãos à camisa de flanela e encurva o pescoço qual ganso degolado. É tudo um sonho, pensa ele à medida que tece melancolias na alma e aplaina o tampo da mesa por lixar. Cansado, pousa a plaina na bancada e, por entre o segredar imaginário das ferramentas, vai até à janela e desembacia o vidro, com a mão suja. A neve cai e está um frio de rachar. Manuel fecha os olhos e bendiz a sua vida pacata. Com o passar do tempo, as badaladas do relógio de parede marcam as sete da tarde. A luz do lampião da rua entra pela janela. Manuel arruma o material e, espreguiçando-se, sai mansamente. A aldeia jaz sob um manto branco. O vento forte traz consigo um sabor a tristeza e desânimo. Manuel bafeja as mãos enluvadas, enrola o cachecol à volta do pescoço e contempla o horizonte. A caminho. No adro da igreja, o padre deambula em torno do cruzeiro. De calva ao relento e mãos atrás das costas, encara com apreensão o restauro em curso da igreja. O carpinteiro saúda-o e pergunta como vão as coisas. “Assim, assim”, responde o padre. Seguidamente, cruza as mãos, ora e benze-se, pedindo a Deus que as obras acabem depressa. O gesto, embora expressivo, não impressiona por aí além o carpinteiro. Em lugar de fé, há neste um vazio. Como tal, vira costas e afasta-se em silêncio. Por mais que desembarace as linhas da vida, estas voltam a enrolar-se. Na praça, a neve cobriu árvores, sebes, bancos; a água do chafariz gelou. Perto daí encontra o seu cão mordendo as entranhas duma galinha. Enjoado com o fedor das vísceras, reprime o animal. Rafael, velho por quem o carpinteiro nutre um respeito especial, passa por ali, agarrado a dois baldes cheios de estrume. Conquanto o cheiro do esterco o incomode, Manuel sorri para o velho. Este, por seu lado, meneia a cabeça, pousa os baldes no chão e tira um saquinho de tabaco e mortalhas do bolso do cardigã ensebado. Espalha o tabaco na mortalha e, com as mãos artríticas, enrola-a com perícia. “Há ratos no palheiro”, diz ele de cigarro na boca, acrescentando que está velho de mais para os caçar. O catarro fá-lo tossir; a barba, frisada e rança, agita-se como palha fina. O carpinteiro compadece-se, mas Rafael relembra-o de que só admite piedade na igreja e, de preferência, por altura das vindimas, em que a ajuda dos santos vem sempre a calhar. Esboça um sorriso e os poucos dentes podres sobressaem-lhe entre os lábios gretados. Cospe para o chão, pega nos baldes e despede-se com um melancólico aceno de cabeça. Na manhã seguinte, à chegada à carpintaria, as teias de aranha estremecem com a corrente de ar vinda do portão. Uma vez lá dentro, Manuel despe a samarra, arregaça as mangas, acende o lume — dia igual a tantos outros. A lenha, húmida, demora a atear-se; a luminosidade do fogo varre a penumbra matinal. A seguir, dá de comer aos gatos que aí rondam e, de imediato, afaz-se à escrivaninha que, a um canto, espera segunda demão de verniz. Terminada a tarefa, coloca-a a secar perto do lume. Às tantas, batem à porta. “O presidente”, murmura Manuel, limpando a bancada e indagando demais desleixos. O presidente da junta — de porte altivo, barbicha mefistofélica, olhar mordaz, chapéu de feltro e casacão de pêlo — espera à soleira da porta, compondo o monóculo e martelando a laje da soleira com a sua bengala de cedro. Manuel abre a porta, e o presidente, ao sentir o calor da lareira, entra de rompante, sem pedir licença, estacando diante do lume. Tagarela por natureza, perde o fio à meada do seu discurso e, corando, reveste o rosto de laivos demoníacos — dada a corpulência e o casacão, dir-se-ia um urso pardo. Por fim, respira fundo e continua a falar, descobrindo pouco depois a escrivaninha a seu lado. “Pelas barbas do profeta!… Você é um artista, caro Manel!”, rejubila-se, ao vê-la. O carpinteiro sorri, embevecido. O presidente, por sua vez, dá-lhe um safanão nas costas e, pegando na escrivaninha, pergunta ao carpinteiro se a pode levar já e pagar depois. Manuel, algo contrariado, concede o favor. À saída do presidente, ali cai um silêncio profundo. Um gato entra pelo buraco da porta dos fundos e começa a miar. Manuel dá-lhe um bocado de carne. O gato cheira-a, levanta o rabo e afasta-se, desagradado. Às sete em ponto, o trabalho termina e deixa de nevar. Manuel vai-se lavar no tanque das traseiras e, enregelado, seca-se a uma toalha e volta rapidamente a vestir-se. Ao sair, tranca o portão e comprova a magia cintilante das estrelas no céu negro. O bafo que lhe sai da boca revoluteia no ar e o seu espírito parece perder-se para lá da noite fria. Cobre os lábios com o cachecol e calça as luvas de lã. No acampamento cigano das redondezas, brilha uma grande fogueira, em redor da qual duas mulheres de cabelo longo e tez morena dançam de braços girando como saias rodadas. Os homens, de chapéu negro, batem palmas fervorosamente, sentados em escabelos. Perto daí, ouve-se um latido familiar. O cão de Manuel caiu numa vala, da qual o carpinteiro o instiga a sair. O animal obedece e, uma vez puxado pelo dono, lambe-lhe a mão e a cara, em jeito de agradecimento. Por conseguinte, ao pousá-lo no chão, o cão geme com pesar. Tem uma pata magoada, logo, Manuel não tem outro remédio senão carregá-lo até casa. Nessa noite, o cão, como que possuído pelo demónio, ladra incessantemente no quintal. Na manhã seguinte, Manuel enche uma tina de água morna e lava o animal. No fim do banho, este, satisfeito, salta da tina e sacode-se furiosamente, evidenciando uma magreza obscena. Depois, atira-se à tigela de comida como se não houvesse amanhã. Após a comezaina, adormece à sombra da laranjeira, aninhado na terra escura, todo ele deleite e preguiça. Enquanto dorme, Manuel vai à carpintaria e de lá volta com um machado, que depressa levanta no ar e com o qual, de uma assentada, decapita o cão. O sangue escorre e impregna-se no solo. Um esgar labial denuncia o desassossego de Manuel. Porquanto em torno da carpintaria jazem cães enterrados e os aldeões começam a desconfiar dele, Manuel esfola o cão na cozinha e trincha-o de modo a caber na maior panela lá de casa. Em seguida, estufa-o com batatas, couves, e, feito o cozido, serve-o numa bandeja, ao jantar. Na mesa dispõe ainda a cutelaria de prata e a toalha rendada da falecida mãe. “A que saberá?”, pergunta ele a si mesmo, à medida que fatia o ventre tenro do animal.

As furgonetas, sejam de caixa aberta ou estejam estas cobertas de lona, passam nas ruas da aldeia, o seu estrépito desengonçado a relembrar o tambor lasso de uma máquina de lavar. As máquinas e os veículos também morrem. Tanto que um frigorífico serve de amparo àquele muro torto, uma torradeira jaz naqueloutro entulho de terra. Por mais que o progresso tecnológico se anuncie, as suas falhas fazem-se notar. Nada dura para sempre. Além disso, tudo se estranha mais quando dois homens se entrecruzam de noite, em silêncio, de mãos nos bolsos, contritos. Na verdade, qualquer um deles anseia saber por quem passou e, como tal, olha para trás na esperança de saber quem era. Tarde de mais. Um deles mergulha já na treva adiante e tudo volta à normalidade inexplicável das coisas. Quando a calma impera, há passos furtivos que estorvam a noite e que ciência alguma consegue explicar. Nesta dimensão oculta, as anomalias agitam o edifício da normalidade como um tropel de furgonetas. Os padrões dogmáticos do real enquadram a aldeia numa verdade normal que a todos apraz. A vida faz-se de aceitação e esgota-se na cartilha da conformidade. Este fado estende-se de dia para dia, nas vozes e nos gestos dos que o cantam. No entanto, há quem desafine ou se esqueça do seu estribilho e eleja outros caminhos para andar. Nestes atalhos insondáveis abundam maravilhas que só aos sonhadores se revelam: rios de leite e mel, sobreiros deformados em cujo tronco se abrem portas de estanho, pilares de serpentes entrelaçadas, altares de ónix e arcadas de folhas secas. Um cheiro de lavanda e gasolina palmilha cada espaço, cada veio de ouro, cada recanto mágico de erva orvalhada. Há girassóis que se desprendem do solo e, de raízes soltas, executam, com perícia, marchas e pinotes de danças russas; há pedras ribeirinhas que, ao sol, espirram exacerbadas pela passagem da água fresca; há lanços de escadas até ao céu, pontes de pedra que interligam árvores e cabeços, galerias subterrâneas que se estendem ao centro da Terra, palácios de ninfas encantadas, uma infinitude de grandezas extraordinárias. Porém, nada disto importa, porque aos homens já não interessa sonhar. Antes o pragmatismo, a felicidade aparente e escolhida a dedo, a recusa da paciência e do pensamento próprio, a segurança exagerada, a frieza da separação e a recusa do contraditório. Tudo menos a imprevisibilidade. O lastro viral do medo fez um mundo que ninguém quer, um mundo onde os homens se tornam reféns de si mesmos e o risco da liberdade se apaga à distância de um clique. Se nada há a esperar, há que sacudir o pó das guilhotinas e decapitar os culpados, impedir o derrame das trevas, parar as rotativas do pânico. Nunca as utopias se adaptaram e pertenceram à realidade. Aliás, todas elas fracassam e perecem no esquecimento como um espantalho ignorado pelos pássaros.