Outra conversa com Lorca
LIVROS COM MÚSICA

Uma rubrica de Maria Estela Guedes com realização de Sara Sousa na Rádio Transforma, em radiotransforma.net

 

Indicativos

000 – SARA – Para hoje temos

«Outra conversa com Federico García Lorca»

1

Paco de Lucía & Ricardo Modrego – 12 Canciones de García Lorca para Guitarra (1965) Zorongo Gitano – 2:56’

https://youtu.be/-KmrM-7kNOU

 

2

Verde que te quiero verde – Romance Sonámbulo – Federico García Lorca – Ricardo Fernández del Moral – 4:29’

https://youtu.be/NylMkrFkCEY

3

SARA – No ano passado saiu um livro de Maria Estela Guedes na editora Urutau, intitulado “Conversas com Federico García Lorca”.  É melhor ser ela a contar…

ESTELA – áudio lorca_01 – 5’

É um livro de poemas, porém encontra-se nas minhas conversas com Lorca muita informação biográfica acerca do poeta andaluz. O livro começou por acaso em Nova Iorque, quando entrei num alfarrabista e um simpático senhor de barbas brancas meteu conversa comigo.

Ele lembrou-me Allen Ginsberg, um dos escritores da beat generation, e daí até me ocorrer o livro de Lorca, Poeta em Nova Iorque, que é um dos expoentes da modernidade, por isso um precursor deles, foi um piscar de olhos. Anos mais tarde, fui por acaso a Pontevedra, onde continuei a escrever sobre Lorca, no Café Moderno, local onde ele escreveu e reviu o seu livro Poeta em Nova Iorque. Em Madrid, já no ano passado, voltei a usar o meu caderno para escrever sobre ele, a propósito de uma casa de flamenco perto da Plaza Mayor. Foi em Setembro, ia então a caminho de Granada, já sem nenhum acaso, pelo contrário. Fui a Granada de propósito para conhecer o poeta mais profundamente, visitando as casas onde cresceu e viveu, hoje museus, enfim, os seus lugares. Diga-se que tudo em Granada espelha Federico García Lorca, logo no desembarque do avião, no aeroporto que tem o seu nome. Tem o seu nome por fora e por dentro, e confesso que me desagradou ler os seus poemas nas portas envidraçadas das casas de banho. Não é preciso tal exagero, ele beira o mau gosto.

O meu livro regista quase tudo o que estudei, vi e vivi em Espanha, especialmente em Granada, à procura do Federico. Agora partilho algumas das nossas conversas convosco, acompanhadas por música para ele e composta por ele. Há muito material lorquiano na internet. Federico García Lorca não foi apenas poeta, pintor, dramaturgo e fundador do teatro universitário La Barraca, conhecido em todo o mundo. Em Lisboa, por exemplo, o Teatro da Barraca presta-lhe homenagem. Lorca desenhava, tocava piano e guitarra e compôs canções para guitarra, que vamos ouvir. Toda a música seguinte ou foi composta por Lorca ou para os seus poemas. A única exceção será um trecho do “Amor Brujo”, de Manuel de Falla, por ter sido amigo muito próximo de Lorca, tão andaluz como ele. Amigo tão próximo que Federico lhe pediu ajuda, quando soube que as tropas do general Franco o iam prender. Ninguém o conseguiu ajudar e o poeta seria fuzilado no massacre de Viznar, sem direito a julgamento nem sepultura, pois o seu corpo foi dado até hoje como desaparecido.

Profundamente enamorado da música andaluza e cigana, Lorca tem sido homenageado por inúmeros artistas que compuseram a partir dos seus poemas e os cantaram.

Em Granada, nos bairros populares, em especial no de Sacromonte, reina a zambra gitana. Iremos até lá, às cuevas, casas abertas na rocha, onde a assistência comunga a alma andaluza no que é mais do que espetáculo, sim religião. Lorca era um frequentador assíduo destes rituais, o flamenco fazia-o vibrar. Aliás, a cultura popular andaluza foi a forma de modernidade assumida pelo poeta. Ele compilou antigas canções populares, e é na linhagem da cultura popular andaluza que se integram os seus mais conhecidos livros de poesia, Poema del cante jondo e Romancero gitano. Com a música andaluza vos deixo então, em resposta a algumas das minhas “Conversas com Federico García Lorca”.

4

Falla – El Amor Brujo – Danza ritual del fuego (Barenboim) – 4:06

https://youtu.be/uUir35l5y8U

5

SARA – Oscuro amor

Como eu, Poeta, ouvi dizer que tremeste

Por um homem

                           De obscuro amor. Porquê?  

que soy amor, que soy naturaleza! — respondes.

Olha que nem todos compreendem.

(…)

A tenebrosa palavra

Deixaste nos Sonetos del amor oscuro.

A Dalí amaste oscuramente? A ele, que a ti não amava,

E nas mulheres mais ardia

Inflamado no olhar de Gala?

                           Amaste, como eu amei, um homem.

Porquê?

Porque somos amor, porque somos natureza!

Esplendor das núpcias com a diversidade

                              Que a Natura oferece à vida

                              E às variantes da humanidade.

A furiosa paixão que tudo tolda

E não deixa ver mais nada

Por ser intangível o amor deles.

Só o nosso tocamos e aspiramos

                                       E depois, anos volvidos

Como cortante chuveiro da idade

                              Rebrilham na boca as sílabas do sal

                              E sequiosas metáforas da água.

 

6

Tangos del amor oscuro – Ricardo Fernández del Moral – Federico García Lorca – 4:50

https://youtu.be/QTcTMfvB-Io

7

SARA – Da saudade

 

(…)

Sinto saudades das lojas

Da Rua de Santa Catarina

Saltitante e ruidosa

Os músicos a darem-lhe alma

                                           O fumo

Esse cheiro consolado e aldeão

                                Da castanha assada.

Só as gaivotas persistem

                       Nos seus voos iluminados

Aqui por cima dos telhados,

                                         A copiarem

A intangibilidade das aves de rapina

Quando sobrevoam campinas

                            Soberanas,

                                   Pontas das asas franjadas,

Paradas,

              Prontas para um voo picado

                    Súbito

                                   Veloz

                                             Mortal

Como esta doença invisível que pode estar em cima

Em baixo, ao lado da respiração que a absorve,

Lhe dá alento e vida,

                              A tira da condição de inerte,

Para a nós beijar os pulmões numa asfixia.

Sinto saudades de antanho

Das praias desertas, puras, temperadas com sal e sol,

Sem lixo, sem lixo, sem lixo

                   Sinto saudade da verdura

                                                Impura dos campos

Da erva que só as patitas dos pardais conspurcavam

Sinto saudades dos regatos

Que as libélulas sobrevoavam

Sinto saudades da modéstia, do calor da lareira,

Das rãs a coaxarem nos tanques

Das frígidas manhãs

Em que apanhávamos a carreira para a Guarda

Sinto saudades, saudades, saudades

Como antes desta vida entre arames

Farpada, surrada, surrada

Surrada e sem abrigo

                              Sem futuro

Interrompida como um poema a que acabou o assunto

                                                         E termina em ti

No teu desejo infinito para tão curta vida.

                            Anda jaleo, jaleo

                                  Ya se acabo el alboroto

                                        Y ahora empieza el tiroteo

                                                 Y ahora empieza el tiroteo.

 

8

Teresa Berganza *Anda, jaleo* by F.G. Lorca – 2:15

https://youtu.be/s6fmBp9BfjI

 

9

SARA – Blue Moon

 

Com a língua saboreias

O fundo do cante.

                     Com o nariz aspiras

A jasmim o perfume

                      Dos jardins da Alhambra.

Trazem ao ouvido o fogacho azul

                      Da música andaluza.

Cante jondo, a lua na água do poço

Lua grande, gigante vestida de nardos.

Blue Moon, o luar é todo teu, bebe-o, de leite.

Tinhas a música no sangue

O piano que tocavas

                  E a guitarra com que te deitaste

                  Depois da zambra gitana

Na cueva de Sacromonte.

Ay, a Lua do tamanho do mundo,

Gigante, gigante

Dão-lhe os astrofísicos o nome de

Blue Moon. E os olhos, Federico, os teus olhos tão doces

Tão negros de carvão!

Abalroadas pela lua branca

De nardos branca

Que os teus olhos miraram negros, ay!

La luna vino a la fragua         

                    con su polisón de nardos.            

    El niño la mira mira.           

             El niño la está mirando.

És tu quem a está mirando

Com os teus olhos profundos

De cipreste, carvão e água

És tu quem afaga

Com mãos de jasmim e laranja

Num jardim de Granada.

Guardiões da memória, insaciáveis,

Engolem paisagens, rostos e sorrisos

Mas quando tocas, Federico

Quando tocas o rosto da Lua no seu perigeu

                    Encostada à janela do teu dormir

                    A tua boca cintila de amor

Todo o teu corpo ressuscita

                Erguido pelo sexto sentido

                Esse que todos os outros contempla e embala

El niño la mira mira.               

               El niño la está mirando.

(…)

                El niño la mira mira.        

                               El niño la está mirando.

 

10

El Romancero Gitano – Romance de la Luna, Luna – Federico García Lorca – 4:37

https://youtu.be/nfKaoHBfDIk

 

11

Diego El Cigala – Flamenco por FGLorca – 5:26’

 

12

SARA – Barrio del Sacromonte

Ai, Federico!, saudades tínhamos tantas

                      De Granada!

Acorda-te a luminosa manhã

                      Que manhã luminosa

E que noite atrevida

                       Do povo cigano

Encastrado na rocha da Sierra Nevada.

Ai, Federico!

                   O pé faz o sapato

                   Ao bailar o flamenco!

É trepidante e endemoninhado o sapateado!

                   Prometi a nós mesmos voltar a Granada

Ao bairro embutido

                   Nos rochedos caiados.

Pés bons para o bailado

Mãos percutidas mais que castanholas

Ai, Federico, saudades tínhamos tantas de Granada!

 

INDICATIVO – Outra conversa com Federico García Lorca – de Maria Estela Guedes e Sara Sousa

 

13

SARA – Chamamos a atenção para as canções seguintes. Na primeira, uma sevilhana, é o próprio Federico García Lorca quem acompanha ao piano La Argentinita.  Na segunda, Leonard Cohen interpreta uma bem conhecida canção do poeta andaluz, a “Valsinha vienense”, a que chamou “Take this waltz”.

 

16

Sevillanas del siglo XVIII (Federíco García Lorca al piano) – 2:40’

https://youtu.be/eaDa58CkL6k

 

17

Leonard Cohen – Take this waltz – TVRIP – 1988 – Subtitulado inglés y español – 4:06’

https://youtu.be/jWMOqVKHeSQ

18

SARA – Café Moderno

Eis-nos no Café Moderno, Federico

Às dez em ponto da manhã.

(…)

Comprei o livro que em parte escreveste aqui

Saboreando a esplanada

                                            Comprei-o na Librería Paz

E sabes lá o que aconteceu

Vou informar pois é mais raro que milagre

(…)

E então, Poeta, vou almoçar com a Céu

E com a Azenha,

Admiramos a bela edição com faixa azul

E mais tarde recolhemos à casa do nosso editor

                                    Wladimir Vaz, da Urutau.

Mostro o livro

Ele comenta, na sua paz de alma habitual

Que tinha encomendado essa

Mesmíssima edição crítica

Pela Internet

E ainda não chegara o tempo da surpresa

Tocam à campainha

                              E ERAS TU, FEDERICO!

Tu, nas mãos do carteiro

                         Eras tu que chegavas

                                        Poeta em objetivo

Acaso sonhado por perfeitos surrealistas!

(…)

São dez horas em ponto

No Café Moderno

E não cinco de la tarde

A las cinco de la tarde.

Eran las cinco en punto de la tarde.

Un niño trajo la blanca sábana

a las cinco de la tarde.

São sempre exatamente dez da manhã

                              Ou da noite

                                         Se preferes

É o que testemunha

O velho relógio de parede.

Chego sempre às dez em ponto

Mais poética não podia perfilar-se a pontualidade

                          E às dez em ponto escrevo

                                        Reescrevo

                                                     Pago a conta e saio

De acordo com o relógio

No teu grito parado.

Parado ali, nas 22 horas, explica

                                   Sublime

                                   O empregado

Porque é sempre às dez em ponto

Há quase cem anos

Que o Café Moderno cierra.          

A las cinco de la tarde.           

¡Ay qué terribles cinco de la tarde!               

¡Eran las cinco en todos los relojes!              

¡Eran las cinco en sombra de la tarde!

 

19

Enrique Morente el “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías” – 4:45’

https://youtu.be/3YWpKiQ2S-o

 


Britiande, 19.02.2023

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