Uma rubrica de Maria Estela Guedes com realização de Sara Sousa na Rádio Transforma, em radiotransforma.net
Indicativos
000 – SARA – Para hoje temos
«Outra conversa com Federico García Lorca»
1
Paco de Lucía & Ricardo Modrego – 12 Canciones de García Lorca para Guitarra (1965) Zorongo Gitano – 2:56’
2
Verde que te quiero verde – Romance Sonámbulo – Federico García Lorca – Ricardo Fernández del Moral – 4:29’
3
SARA – No ano passado saiu um livro de Maria Estela Guedes na editora Urutau, intitulado “Conversas com Federico García Lorca”. É melhor ser ela a contar…
ESTELA – áudio lorca_01 – 5’
É um livro de poemas, porém encontra-se nas minhas conversas com Lorca muita informação biográfica acerca do poeta andaluz. O livro começou por acaso em Nova Iorque, quando entrei num alfarrabista e um simpático senhor de barbas brancas meteu conversa comigo.
Ele lembrou-me Allen Ginsberg, um dos escritores da beat generation, e daí até me ocorrer o livro de Lorca, Poeta em Nova Iorque, que é um dos expoentes da modernidade, por isso um precursor deles, foi um piscar de olhos. Anos mais tarde, fui por acaso a Pontevedra, onde continuei a escrever sobre Lorca, no Café Moderno, local onde ele escreveu e reviu o seu livro Poeta em Nova Iorque. Em Madrid, já no ano passado, voltei a usar o meu caderno para escrever sobre ele, a propósito de uma casa de flamenco perto da Plaza Mayor. Foi em Setembro, ia então a caminho de Granada, já sem nenhum acaso, pelo contrário. Fui a Granada de propósito para conhecer o poeta mais profundamente, visitando as casas onde cresceu e viveu, hoje museus, enfim, os seus lugares. Diga-se que tudo em Granada espelha Federico García Lorca, logo no desembarque do avião, no aeroporto que tem o seu nome. Tem o seu nome por fora e por dentro, e confesso que me desagradou ler os seus poemas nas portas envidraçadas das casas de banho. Não é preciso tal exagero, ele beira o mau gosto.
O meu livro regista quase tudo o que estudei, vi e vivi em Espanha, especialmente em Granada, à procura do Federico. Agora partilho algumas das nossas conversas convosco, acompanhadas por música para ele e composta por ele. Há muito material lorquiano na internet. Federico García Lorca não foi apenas poeta, pintor, dramaturgo e fundador do teatro universitário La Barraca, conhecido em todo o mundo. Em Lisboa, por exemplo, o Teatro da Barraca presta-lhe homenagem. Lorca desenhava, tocava piano e guitarra e compôs canções para guitarra, que vamos ouvir. Toda a música seguinte ou foi composta por Lorca ou para os seus poemas. A única exceção será um trecho do “Amor Brujo”, de Manuel de Falla, por ter sido amigo muito próximo de Lorca, tão andaluz como ele. Amigo tão próximo que Federico lhe pediu ajuda, quando soube que as tropas do general Franco o iam prender. Ninguém o conseguiu ajudar e o poeta seria fuzilado no massacre de Viznar, sem direito a julgamento nem sepultura, pois o seu corpo foi dado até hoje como desaparecido.
Profundamente enamorado da música andaluza e cigana, Lorca tem sido homenageado por inúmeros artistas que compuseram a partir dos seus poemas e os cantaram.
Em Granada, nos bairros populares, em especial no de Sacromonte, reina a zambra gitana. Iremos até lá, às cuevas, casas abertas na rocha, onde a assistência comunga a alma andaluza no que é mais do que espetáculo, sim religião. Lorca era um frequentador assíduo destes rituais, o flamenco fazia-o vibrar. Aliás, a cultura popular andaluza foi a forma de modernidade assumida pelo poeta. Ele compilou antigas canções populares, e é na linhagem da cultura popular andaluza que se integram os seus mais conhecidos livros de poesia, Poema del cante jondo e Romancero gitano. Com a música andaluza vos deixo então, em resposta a algumas das minhas “Conversas com Federico García Lorca”.
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Falla – El Amor Brujo – Danza ritual del fuego (Barenboim) – 4:06
5
SARA – Oscuro amor
Como eu, Poeta, ouvi dizer que tremeste
Por um homem
De obscuro amor. Porquê?
que soy amor, que soy naturaleza! — respondes.
Olha que nem todos compreendem.
(…)
A tenebrosa palavra
Deixaste nos Sonetos del amor oscuro.
A Dalí amaste oscuramente? A ele, que a ti não amava,
E nas mulheres mais ardia
Inflamado no olhar de Gala?
Amaste, como eu amei, um homem.
Porquê?
Porque somos amor, porque somos natureza!
Esplendor das núpcias com a diversidade
Que a Natura oferece à vida
E às variantes da humanidade.
A furiosa paixão que tudo tolda
E não deixa ver mais nada
Por ser intangível o amor deles.
Só o nosso tocamos e aspiramos
E depois, anos volvidos
Como cortante chuveiro da idade
Rebrilham na boca as sílabas do sal
E sequiosas metáforas da água.
6
Tangos del amor oscuro – Ricardo Fernández del Moral – Federico García Lorca – 4:50
7
SARA – Da saudade
(…)
Sinto saudades das lojas
Da Rua de Santa Catarina
Saltitante e ruidosa
Os músicos a darem-lhe alma
O fumo
Esse cheiro consolado e aldeão
Da castanha assada.
Só as gaivotas persistem
Nos seus voos iluminados
Aqui por cima dos telhados,
A copiarem
A intangibilidade das aves de rapina
Quando sobrevoam campinas
Soberanas,
Pontas das asas franjadas,
Paradas,
Prontas para um voo picado
Súbito
Veloz
Mortal
Como esta doença invisível que pode estar em cima
Em baixo, ao lado da respiração que a absorve,
Lhe dá alento e vida,
A tira da condição de inerte,
Para a nós beijar os pulmões numa asfixia.
Sinto saudades de antanho
Das praias desertas, puras, temperadas com sal e sol,
Sem lixo, sem lixo, sem lixo
Sinto saudade da verdura
Impura dos campos
Da erva que só as patitas dos pardais conspurcavam
Sinto saudades dos regatos
Que as libélulas sobrevoavam
Sinto saudades da modéstia, do calor da lareira,
Das rãs a coaxarem nos tanques
Das frígidas manhãs
Em que apanhávamos a carreira para a Guarda
Sinto saudades, saudades, saudades
Como antes desta vida entre arames
Farpada, surrada, surrada
Surrada e sem abrigo
Sem futuro
Interrompida como um poema a que acabou o assunto
E termina em ti
No teu desejo infinito para tão curta vida.
Anda jaleo, jaleo
Ya se acabo el alboroto
Y ahora empieza el tiroteo
Y ahora empieza el tiroteo.
8
Teresa Berganza *Anda, jaleo* by F.G. Lorca – 2:15
9
SARA – Blue Moon
Com a língua saboreias
O fundo do cante.
Com o nariz aspiras
A jasmim o perfume
Dos jardins da Alhambra.
Trazem ao ouvido o fogacho azul
Da música andaluza.
Cante jondo, a lua na água do poço
Lua grande, gigante vestida de nardos.
Blue Moon, o luar é todo teu, bebe-o, de leite.
Tinhas a música no sangue
O piano que tocavas
E a guitarra com que te deitaste
Depois da zambra gitana
Na cueva de Sacromonte.
Ay, a Lua do tamanho do mundo,
Gigante, gigante
Dão-lhe os astrofísicos o nome de
Blue Moon. E os olhos, Federico, os teus olhos tão doces
Tão negros de carvão!
Abalroadas pela lua branca
De nardos branca
Que os teus olhos miraram negros, ay!
La luna vino a la fragua
con su polisón de nardos.
El niño la mira mira.
El niño la está mirando.
És tu quem a está mirando
Com os teus olhos profundos
De cipreste, carvão e água
És tu quem afaga
Com mãos de jasmim e laranja
Num jardim de Granada.
Guardiões da memória, insaciáveis,
Engolem paisagens, rostos e sorrisos
Mas quando tocas, Federico
Quando tocas o rosto da Lua no seu perigeu
Encostada à janela do teu dormir
A tua boca cintila de amor
Todo o teu corpo ressuscita
Erguido pelo sexto sentido
Esse que todos os outros contempla e embala
El niño la mira mira.
El niño la está mirando.
(…)
El niño la mira mira.
El niño la está mirando.
10
El Romancero Gitano – Romance de la Luna, Luna – Federico García Lorca – 4:37
11
Diego El Cigala – Flamenco por FGLorca – 5:26’
12
SARA – Barrio del Sacromonte
Ai, Federico!, saudades tínhamos tantas
De Granada!
Acorda-te a luminosa manhã
Que manhã luminosa
E que noite atrevida
Do povo cigano
Encastrado na rocha da Sierra Nevada.
Ai, Federico!
O pé faz o sapato
Ao bailar o flamenco!
É trepidante e endemoninhado o sapateado!
Prometi a nós mesmos voltar a Granada
Ao bairro embutido
Nos rochedos caiados.
Pés bons para o bailado
Mãos percutidas mais que castanholas
Ai, Federico, saudades tínhamos tantas de Granada!
INDICATIVO – Outra conversa com Federico García Lorca – de Maria Estela Guedes e Sara Sousa
13
SARA – Chamamos a atenção para as canções seguintes. Na primeira, uma sevilhana, é o próprio Federico García Lorca quem acompanha ao piano La Argentinita. Na segunda, Leonard Cohen interpreta uma bem conhecida canção do poeta andaluz, a “Valsinha vienense”, a que chamou “Take this waltz”.
16
Sevillanas del siglo XVIII (Federíco García Lorca al piano) – 2:40’
17
Leonard Cohen – Take this waltz – TVRIP – 1988 – Subtitulado inglés y español – 4:06’
https://youtu.be/jWMOqVKHeSQ –
18
SARA – Café Moderno
Eis-nos no Café Moderno, Federico
Às dez em ponto da manhã.
(…)
Comprei o livro que em parte escreveste aqui
Saboreando a esplanada
Comprei-o na Librería Paz
E sabes lá o que aconteceu
Vou informar pois é mais raro que milagre
(…)
E então, Poeta, vou almoçar com a Céu
E com a Azenha,
Admiramos a bela edição com faixa azul
E mais tarde recolhemos à casa do nosso editor
Wladimir Vaz, da Urutau.
Mostro o livro
Ele comenta, na sua paz de alma habitual
Que tinha encomendado essa
Mesmíssima edição crítica
Pela Internet
E ainda não chegara o tempo da surpresa
Tocam à campainha
E ERAS TU, FEDERICO!
Tu, nas mãos do carteiro
Eras tu que chegavas
Poeta em objetivo
Acaso sonhado por perfeitos surrealistas!
(…)
São dez horas em ponto
No Café Moderno
E não cinco de la tarde
A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
São sempre exatamente dez da manhã
Ou da noite
Se preferes
É o que testemunha
O velho relógio de parede.
Chego sempre às dez em ponto
Mais poética não podia perfilar-se a pontualidade
E às dez em ponto escrevo
Reescrevo
Pago a conta e saio
De acordo com o relógio
No teu grito parado.
Parado ali, nas 22 horas, explica
Sublime
O empregado
Porque é sempre às dez em ponto
Há quase cem anos
Que o Café Moderno cierra.
A las cinco de la tarde.
¡Ay qué terribles cinco de la tarde!
¡Eran las cinco en todos los relojes!
¡Eran las cinco en sombra de la tarde!
19
Enrique Morente el “Llanto por Ignacio Sánchez Mejías” – 4:45’