Otelo Saraiva de Carvalho

 

Otelo Saraiva de Carvalho e Augusto Rozeira de Mariz

 

 

 

 

 

 

 

 

AUGUSTO ROZEIRA DE MARIZ
Otelo Saraiva de Carvalho / In memoriam


Embora bastante recente, a história relativa á prisão de Otelo Saraiva de Carvalho parece já envolvida em bruma indesejada. Um pouco mais para trás e tínhamos o nuestro hermano Fidel e o seu compincha Ernesto a fuzilar às braçadas e nem por isso eram menos idolatrados e estampados nas camisetas que se esfarrapavam á terceira lavagem. Com uma tal hereditariedade, o opróbrio de um era uma mancha envergonhada na obrigatória excelência dos outros.

Para avaliar da justeza das honras públicas e do possível luto nacional a proclamar, não podemos deixar-nos obnubilar pelos sentimentos individualistas que terão levado a repudiar o próprio pai na hora dramática da retirada para o Brasil, atitude nunca mais perdoada por mãe fiel e lacrimosa a cada aniversário da data fatídica; de nada serve também o tentar amordaçar a história para tentar fazer sobressair artificialmente notoriedades baseadas em medíocres manobras de bastidor com figurantes marginais, a expensas do interesse nacional. Mais digna a resposta de tantos perseguidos injustamente, saneados (what ?) sem processo e  deixados sem meios de subsistência durante anos, de outros, presos com instruções militares sem assinatura legível, quando não submetidos á tortura de simulacro de fuzilamento para confessarem a localização das quarenta mil metralhadoras provindas clandestinamente da Checoslováquia em malas no comboio Foguete. A mesquinhez e o rancor são o carburante de pusilânimes, mesmo se vitoriosos no momento; a longanimidade é o fruto do discernimento que vem do conhecimento da História, que vê mais longe e com mais exactidão. O luto nacional não está reservado a intelectuais, por mais notáveis que sejam, a cantadores, por mais insípidos, um dia a um ou outro atleta, por mais rico e vaidoso que se tenha tornado com simples movimentos de contrair e distender os músculos por cima da erva, a – lá poderemos chegar, votação do Orçamento oblige – a um ou outro animal mais querido e mais televisivo.

Otelo foi preso, preso e bem preso. A passear nas areias do Alvor, faço notar a Mário Soares a incongruência do facto. Otelo não era somente o chamado operacional do 25 de abril. Otelo, cujas qualidades operacionais são desconhecidas no geral, mostrou ser um estratega de alta qualidade e principal responsável da queda pacífica dum regime com fortes aspectos negativos. Praticamente sozinho, elaborou um volumoso plano dum golpe de estado que foi ao pormenor não só geográfico mas institucional e governativo, tratou da movimentação dos chaimites e do abastecimento completo da tropa, da coordenação com a comunicação social e com individualidades civis, foi até ao detalhe de designar especificamente os chefes de repartição a serem eliminados nesse próprio dia e substituídos por pessoas neutras ou de confiança que assegurassem a continuidade do Estado. Conhecendo nós o insucesso da tentativa de um mês antes, a 16 de março, e mais ainda o da revolta da Mealhada de há umas dezenas de anos atrás, a proeza de Otelo – menosprezada, á portuguesa – põe-no sem exagero num pedestal de génio da arte militar.

Daí a minha incompreensão, recebida com calma de Supremo Magistrado por Mário Soares. Otelo tinha prevaricado, tinha havido assaltos, mortes, crimes diversos, tinha havido a tarefa da justiça a ser comprida; o que me parecia incongruência era na realidade o deslizar tranquilo do rio da legalidade democrática, o Presidente da República não podia ir contra o curso normal da justiça.

Foi então que lembrei um caso idêntico, com as diferenças que o bom senso reconhece imediatamente. Foi o caso do Marechal Pétain, o militar francês que se ofereceu ao vencedor alemão para dar a aparência da continuidade ao Estado Francês, tentando alegadamente minorar sofrimentos e manter uma certa coesão nacional: ”Faço á França o dom da minha pessoa” – disse. E colaborou ao mais alto nível com a ocupação alemã, com as suas atrocidades e os seus crimes, uns chamados de guerra e outros denominados simples e usuais prevaricações de opressor sem escrúpulos.

Acabou a guerra e a justiça teve de ser reposta na balança, e Pétain, alquebrado e impotente, sem sequer conseguir acompanhar o seu processo com lucidez, foi condenado a ser morto legalmente, isto é, a ter de colocar o pescoço numa máquina para facilitar que a cabeça lhe fosse cortada com uma enorme lâmina.

Estava-se diante duma daquelas situações que numa boa pena dariam matéria para um bela tragédia, e que na realidade dariam muita dor de cabeça aos novos dirigentes franceses, porque Pétain tinha sido o generalíssimo que tinha conseguido vencer finalmente as tropas alemãs numa outra guerra, chamada a primeira Guerra Mundial, e tinha merecido uma gratidão fervorosa da parte de muitos milhões de franceses, uma boa parte dos quais tinha servido sob as suas ordens na difícil campanha da reconquista da liberdade. A sua execução traria desordens à vida nacional que não se sabia onde poderiam parar, e em todo o caso não era o momento de soprar ainda mais no fogo ainda vivo da normalização do fim da guerra.

A situação causou perplexidade no Ministro da Justiça, Pierre-Henri Teitgen, que se abriu com o chefe do governo provisório, o General De Gaulle. Não foi caso de se falar de que a insuficiência de víveres e o racionamento alimentar rigoroso a que era sujeita a população francesa tivesse a mínima solução com a distribuição de bocados do corpo do supliciado, mas o testemunho de Teitgen, no filme “Le Chagrin et la Pitié” (“ A tristeza e a compaixão”), de Harris e Sédouy, serviu de fundo á nossa conversa de praia. Contei que Teitgen foi ver o General para tentar resolver este problema para que não se produzissem sequelas graves.

De Gaulle recusou, entre muitas, a graça presidencial para um escritor conhecido, Robert Brasillach, com o argumento de que este, com o poder da escrita, tinha sido mais colaborador do que muitos executantes de terreno. Foi o mesmo advogado que defendeu Brasillach e Pétain, Jacques Isorni, que quando foi efectuar a derradeira diligência de pedir a graça para o condenado, foi recebido com ostensiva arrogância, recordando-se de que o general, de quem dependia a vida do seu cliente, passou os poucos minutos de audiência a soprar malcriadamente baforadas de fumo proveniente dum rolo de tabaco incandescente pendurado dos seus lábios, dirigidas para a cara do interlocutor tetanizado e receando agravar ainda o caso que o trazia. De pouco serviu a sua moderação, Brasillah foi morto com requintes de crueldade burocrática, como outro que, depois de se ter envenenado, foi reanimado, fizeram-lhe vinte e oito lavagens de estômago, estenderam-no numa cadeira para poderem desfechar para cima do corpo os bocados de chumbo que estavam previstos no regulamento.

Teitgen sublinhou todas as circunstâncias que acompanhariam forçosamente a morte provocada num demente que tinha objectivamente colaborado com o ocupante, mas que tinha no seu activo a glória da vitória numa guerra sangrenta, e chamou a atenção para o ressentimento face ao desequilíbrio duma sanção para um tal herói indiscutível e que beneficiava duma admiração quase mística inculcada na população.

No fim da demonstração de Teitgen, De Gaulle sentenciou:

– “Pétain colaborou com o inimigo, e como tal deve ser condenado á morte; mas Pétain foi o herói que salvou a França na primeira Guerra Mundial, e como tal deve ser amnistiado”.

Ainda passaram algumas semanas desta saudosa conversa com Mário Soares, a deambular na Praia do Alvor antes do almoço, e Otelo Saraiva de Carvalho foi amnistiado e libertado.