Os viajantes sem rosto

 

NICOLAU SAIÃO


Viagem só há uma: só há

uma viagem. De vida só

uma – a semente no

coração: de grão, de mulher, de planície e

tempo

transparente viagem entre os rios

minutos

a rude viagem de nós a

mundo

palavra presa que de noite rompe

de noite toma

madrugada e língua

onda e treva, escrevendo

o verbo obscuro

de mão

e vento

– viagem uma só   queimando

a morte

axila em que formado se

consome o

furor da fome   frente

ao liso gomo de carne sob os dedos

de gente: o Homem.

Viagem uma só: terra

e pranto sobre os cantos

da cama

onde é sagrado o espanto de bichos

verbo então dizendo

o ânimo de dentro

o antigo mar afluente rompendo

enlouquecido a atenta

cruz de paixão em bosque e luz jacente:

quem se viaja em nós connosco ardendo?

 

Não mais se deixará por incendiada

a estrela-macho

de adultas águas no universo ausente

velhas vinhas de cachos excessivos

– esse o líquido posto no sinal de crescer

corpo

de guerra e fendido acaso

exposto

florindo em tudo seu pretexto de domínios

excedendo

o excesso.

 

Por moradas de só

placenta e mito

palavras de morte que vida seja em pouco

espaço inconcebível e distante

barco por olhos e meses de escancarada

manhã de terna e gritada

floresta

onde cai devagar a outra chuva

a sangrada chuva   impassível mesa

de pão esquecido no hábito dos gestos

desmedidos

aridez alargada de campo   afrontamento

de peito e praia   braço

incontável desvão   arquitectura

de beijo

e mordido silêncio

tanto   tanto

animal luminoso com seus dentes de infância e desejo

ano após ano no interior mais denso

onde a carne insinuada se queda (in)confessa

e rebenta

na espádua

na boca violenta

– o vestígio molhado

onde pasma o solar espasmo correndo.

 

Viagem de lonjura

conduzida: viagem mais loucura e mais

sentida. Viagem passo a passo

claramente planeta no morrer da

solidão

ilusão de mergulho na cidade acesa

fria e espessa

coração navegado de segredo e

cárcere

uma casa pairando por vingança   corredores suspensos

de jardins calados

na curva dolente da

cólera e do

ódio sonoro do ar

apenas muro vestido de secura   riscos

de estranhas manchas   rugas

dias idos

tudo o que gera a calma conduzindo os defuntos e

os vivos acontecendo

por saudade e desgosto em momentos de

febre

em arrastado amor que fala e perde

– assim dito seria por quem brincou ao sol –

e de fora se impele contra a amargura e a

doença

camisola hostil e assustada

pela mão diferente e deslizante   a ânsia

consentida

chama invocada aflorando a sombra

do cabelo

em desmaios e queixas e

amor feito

talhado à imagem de

figura   de viagem   uma

viagem ousada

alquímica alquimia de escolhida memória

inferno inicial de ternura perplexa   mulher

mercúrio de criança dentro em

suor e dor

no Verão de não-virtude: de haver e ter

um Agosto infinito borboleta fugindo

ao suspiro   de pescoço de nádega de joelho

espelho de filhos no antes do prazer   da

possível indesmentida viagem suprema

funda de gemidos   a esperança

duma pele lambida tocada   criando

mais pesadas as horas de não despertar

mais contadas as vozes de não existir

Noite que em si de si fugia

noite que em si revelava o dia

noite que junto ao umbigo encontra o peso da areia morta

noite sensual e fresca sabida companheira da eternidade

livre ao pôr-do-sol da multidão

– um olhar rápido ao oceano circundante

quando um olho com outro olho se choca

um lábio ocultando a

unha a polpa da

conversa interminável   viva erecção

de ruas enchendo o mundo   anca

de agonia e grandeza   de expelido amor.

 

Uma

não mais: que é viagem

o trémulo tapado cantar dos que dormem

uma raiz perpétua   vasta como

um corpo dado ao sono outonal

girando sobre tantos havidos corações.

 

Viagem: uma só e

frágil   na apodrecida porta imensa do tempo

perturbada

florescente arbusto de fruto masculino

feminino contorno de desespero

 

para sempre

destruídos.


in “Residência Fixa”
ns