Os sinos, a Páscoa e o vento maroto

 

ALFREDO RAMOS ANCIÃES


Domingo de Ramos do ano 2008 em Massamá

Palavras-chave: comunicação, Páscoa, sinos, bens culturais


No actual ano de 2020 não haverá esta procissão devido à pandemia covid-19.

Os sinos da Sé de Lisboa dão o sinal de início de Revolução.

“Tlão … ressoam os bronzes da sé … tlão … badaladas, lentas no respirar suspenso … tlão … arrastadas no nervoso dos corações … tlão … seus semblantes rígidos, olhos vigilantes … tlão … cinco … as mãos aferradas às coronhas das pistolas … tlão … seis … dos punhos de punhais, dos cutelos … tlão … sete … ih! cum raio! … tlão … oito …

Ao soar da última pancada, as sentinelas veem chegar um fidalgo que se apeia de pomposo coche, como a ter audiência com Sua Excelência o secretário de estado [Miguel de Vasconcelos] …” (1).

(1)CAMPOS, Fernando – O Lago Azul.- Viseu: Difel, S. A; Tipografia Guerra, 2007, 304 páginas.

Resumo indicativo sobre esta Obra. O Autor Fernando Campos tem uma interessante veia literária, também de historiador, cientista e filósofo. Nesta obra– O Lago Azul, o autor descreve interessantes páginas de História de Portugal, nomeadamente sobre os descendentes de D. António Prior do Crato, proclamado Rei de Portugal após a morte de D. Sebastião. Fernando Campos põe o vento como narrador. O vento está em todo o lado, em toda parte. Nesta obra o vento descreve e toma partido, por vezes é maroto. Campos dá-nos a conhecer o destino do Prior. Põe em destaque o ambiente entre católicos e protestantes; o nascimento da Holanda, as paisagens suíças e o definhar de Portugal quando integrado na monarquia dos Filipes.

Sinos de transmissão mensageira /

Bens de importância primeira. /

Comunicais atenção, /

Dor, alegria aflição /

Festa, folia, reunião.

Desde tempos remotos se utilizaram os sinos. Regularmente ao alvorecer podia ouvir o toque das almas. Ao meio-dia e cinco, o Ângelus. Os fiéis respondiam com uma Avé Maria. Antes do cair da noite tocava a Trindades. Momentos para oração e recolhimento. À tarde tocava para o terço ou missa; aos domingos e dias santos tangiam sonoridades para as eucaristias. O último toque do dia fazia-se com o cair da noite. Era o toque das almas ou toque das Avé Marias. A estes toques de rotinas juntavam-se os toques horários.

Com a eletricidade, o velho relógio de carretos é substituído. As horas passam a ecoar através de altifalantes instalados na torre.

No dia de Páscoa tocam os sinos pela tarde enquanto decorre a passagem do compasso e se recebe a comitiva nas casas transmitindo cumprimentos e a Boa Nova: “Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia”.

Os sinos anunciam cerimónias e avisos: batizados, casamentos, enterros. Os toques a rebate acontecem em caso de fogos.

Distintos em mais de uma dezena de casos, os toques têm o seu código próprio. As várias sonoridades, ritmos e frequências determinam o tipo de informação. Podem tanger sons tristes ou alegres, lentos, rápidos ou ultra rápidos, dobrados ou singelos, fortes ou leves. Em caso de morte, permitem informar o tipo de pessoa: adulta ou criança. Hoje em dia continuam alguns destes trechos sonoros. Os sinos cumprem funções. De tão presentes e disponíveis, quase não damos pelo seu valor.

Nas últimas décadas os sinos perdem alguma importância, fruto de alterações na vida social e tecnológica. Relógios de pulso e telemóveis, hábitos diversos, televisão, informática e quebra de hábitos religiosos têm determinado alterações de rotinas e emergências.

Em algumas torres e casas de Sineiros decorrem exposições. Aqui, em Portugal, no Brasil e noutras partes do globo.

Torre e casa do Sineiro de Leiria. Na Wikipedia

“As igrejas de São João del-Rei tem  um interessante e peculiar sistema de comunicação através dos sinos. Sabe-se por exemplo, pelo repique, dobre ou toques onde será realizada a solenidade; se haverá procissão; hora de missa, quem será o celebrante e muitas outras informações. Nos dobres fúnebres fica-se sabendo se a pessoa falecida era homem ou mulher e até mesmo qual será o horário do funeral […]” Cf. OLIVEIRA: 2007).

Devido a este bem histórico, cultural e turístico, alguns sinos e toques têm vindo a ser classificados como Património Imaterial.

É comum situar-se o início da utilização dos sinos por volta do século VI, altura em que começam a ser construídas igrejas nas povoações. O som era considerado a “Voz de Deus”. Afugentava perigos, unia as pessoas, dava segurança.

Torre sineira da Beselga

 “Não há sinos tão afinados como os da Beselga” dizia um amigo de todos – o Alberto Pereira, mais conhecido por Alberto francês natural de Beselga – Penedono, nas Terras de Magriço e do Demo. “Quando bem repenicados parece que subimos ao céu”.

Miguel Torga caracteriza diferentes modos de operar os sinos. Em Novos Contos da Montanha (1966) diz este sóbrio Duriense:

“Os sinos tocavam festivamente, ia por toda a aldeia um alvoroço de noivado […] pela coragem com que puxavam a corda do badalo, pela maneira como repicavam ou dobravam, sabia-se a que terra pertencia o cadáver que baixava à cova. Cada aldeia enterrava singularmente os seus mortos. Os de Leirosa, bonacheirões, pacíficos, pobres, tocavam pouco, devagar, sem vontade e sem brio. Mas já os de Fermentões, espadaúdos, carreiros e jogadores de pau, homens de bigodaça […] davam sinais de outro modo, viril e triunfalmente.” (TORGA, Ob. cit. 12ª Ed. 1952, p. 41; 65)

Os sinos continuam a ser imprescindíveis mas, ainda que pudessem ser dispensados, conviria preservá-los como bens culturais materiais e imateriais, instrumentos de comunicação e de recurso quando outros sistemas possam eventualmente falhar.

Torres e sinos vêm sendo objeto de salvaguarda e de aproveitamento para desdobramento de funções.

Torre sineira e de relógio da Horta – Faial.

À curiosidade desta peça de arte e funcional acresce o facto de que é um dos poucos exemplares de torres sineiras independentes da arquitetura das igrejas, tal como acontece em Leiria, Penedono …

O presidente do Cabido da Sé chegou a ouvir “modinhas populares” tocadas pelos sinos e, depois da implantação da República, há informações de que foi pedido ao sineiro “para tocar ‘A Portuguesa’ e outras melodias republicanas” (“Os sinos de Leiria têm histórias para contar; Sé de Leiria” in http://www.regiaodeleiria.pt/blog/2011/12/23/torre-da-se-os-sinos-de-leiria-tem-historias-para-contar-fotogaleria/; http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9_de_Leiria )

Torres, sinos e toques: orientam, informam, animam. Contribuem para a riqueza urbana, social e turística.

Que a Páscoa continue em ressurreição, primavera, andorinhas, festas populares, sardinhas, união.


Bibliografia / documentação:

-CAMPOS, Fernando – O Lago Azul.- Viseu: Difel, S. A; Tipografia Guerra, 2007,

Fontes em linha, acedidas em 13.04.2017 e 21.04.2019:

-ANCIÃES, Alfredo Ramos – “038. Portugal é Memória é Presente é Mar e é Futuro” – http://cumpriraterra.blogspot.pt/2015/03/38-torres-e-sinos-que-tanto-dais.html

-ANCIÃES, Alfredo Ramos – “Os Sinos e a Páscoa” – https://cumpriraterra.blogspot.com/2017/04/038-os-sinos-e-pascoa-nas-terras-da.html

-CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; FONSECA, Maria Cecília Londres – “Património Imaterial no Brasil”  http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001808/180884POR.pdf ;

-LEIRIA, Manuel; CLARO, Sérgio, et al. – “Os sinos de Leiria têm histórias para contar”  http://www.regiaodeleiria.pt/blog/2011/12/23/torre-da-se-os-sinos-de-leiria-tem-historias-para-contar-fotogaleria/

-OLIVEIRA, Silvana Toledo de “Turismo e património cultural em São João DelRei/MG”.- http://www.eca.usp.br/turismocultural/silvana.pdf

-TORGA, Miguel – “Novos Contos da Montanha”. Coimbra: 12ª ed. 1952. Disponível in https://cld.pt/dl/download/ba71439a-c0fb-496c-8c1c-15faff92d8ee/Miguel%20Torga%20-%20Novos%20contos%20da%20montanha.pdf?public=ba71439a-c0fb-496c-8c1c-15faff92d8ee

Ainda RESPIGO In CAMPOS, Fernando – O Lago Azul.- Viseu: Difel, S. A; Tipografia Guerra, 2007)

– “A esta hora? – dá um passo em frente um dos guardas, a alabarda atravessada a barrar caminho.- Sua Excelência está ainda recolhida. Não é ocasião de despacho. Mostrai-me a convocatória …

– E quem és tu para me embargares a subir? – e o punhal resolve o caso, vai o outro a abrir a boca a gritar o alerta, já alguém surgido do lado lhe corta o grito com a lâmina afiada.

Saídos das sombras dos arcos, sobem os revoltosos a escadaria a toda a pressa. Sentem o arruído os alabardeiros e acodem de armas em riste. Cruzam-se, tinem, faíscam espadas, soam tiros, Miguel de Almeida, de saber em punho, assoma à varanda – esvoaço-lhe [é o vento a narrar] os cabelos brancos – e grita ao povo:

– Liberdade! Liberdade! Tempo de comprar com sangue a liberdade da pátria e acabar com a tirania de Castilha. Viva Sua Alteza o duque de Bragança! Viva el-rei Dom João quarto!

Em baixo, com eco, lágrimas a escorrerem pelas faces, reboa o clamor das gentes:

– Viva el-rei Dom João quarto!

O troço destinado ao forte põe em fuga os soldados castelhanos. Não sem luta. Combatem rijo […]” (obs. Os sublinhados nas citações são nossos)

 


ALFREDO RAMOS ANCIÃES