Os portugueses na Rota dos Sabores

 

 

 

 

 

 

MANUEL RODRIGUES VAZ


Comunicação lida aos 11 de Outubro de 2023, na Tertúlia à Margem, durante um almoço no Restaurante O Pote, em Lisboa


Puta que pariu! Puta que pariu!

Teria sido esta a reacção dos marinheiros portugueses ao provarem os novos pratos que os indianos começaram a fazer para experimentarem as Capsicum frutescens – capsaicina – da pimenta malagueta, que eles próprios tinham trazido da América do Sul.

Em Goa, devido a esta reacção, começou este produto a ser conhecido como putpri, que, de corruptela em corruptela, acabará por vir a ser chamado como piri-piri, palavra de origem swahili.

Destas primeiras experiências acabou por surgir o caril, misturando este produto com açafrão, cardamomo, coentros, gengibre, cominhos, casca de noz-moscada (macis), cravinho, pimenta, feno-grego, funcho e canela, condimento que viria ter importância excepcional na alimentação internacional. Esta foi uma informação que à última hora me forneceu o nosso contertuliano Álvaro Amorim, português de origem indiana que aos assuntos goeses dedica muita atenção.

Os primeiros europeus a ter contato com esta espécie da flora foram os membros da tripulação que acompanhou Cristóvão Colombo quando desembarcaram pela primeira vez na região das Caraíbas em 1492. Além de ser uma iguaria nobre muito apreciada pelos antigos habitantes das Américas, era também utilizada como corante natural e, sobretudo, como medicamento.

Segundo confirmam vários investigadores, o picante da capsaicina deve ter despertado o interesse de portugueses que há décadas buscavam a rara pimenta-preta da Ásia (a pimenta do reino, cujo químico ativo do picante é a piperina). No período de intensas trocas e viagens, navegadores portugueses trouxeram esta angiosperma para Portugal e para África, onde se tornou muito popular (gindungo ou piri-piri), e acabaram por a levar também para a Ásia, onde se tornou um ingrediente do tradicional caril. Menos de um século depois de ser levada para a Europa, a pimenta-malagueta devido às suas qualidades, espalhou-se por diversas culturas ancestrais, incluindo a Arábia, a Índia, a Tailândia, a China, entre muitas outras regiões.

A palavra angolana gindungo tem uma origem tão inesperada como simples, e foi-me contada recentemente por um chef que passou uns anos em Luanda nos anos 90. Ele ouviu-a, por sua vez, a um seculo no Bom Jesus, especialista em fazer cachimbos de encanto, que os viandantes pretendiam comprar a todo o preço, mas que eram apenas pertença dele, que se deleitava em os aprimorar ainda mais. O António Matos era irmão do Fernando Neves, que chegou a estar à frente do restaurante S. João, no Maculusso, cujos proprietários eram o João Melo e o seu falecido irmão. Já agora, vem a propósito dizer que o Fernando Neves, falecido há dezassete anos vítima de cancro mortal, e que geria também o restaurante Serra da Estrela, na Feira Popular, era tão intrépido como ousado, pelo que, em Portugal, para fazer marketing ao seu espaço Serra da Estrela, que detinha na Feira Popular de Lisboa, chegou a candidatar-se à presidência da República. Na verdade, os seus principais objetivos foram conseguidos e ficou célebre uma movimentada viagem de apresentação aos meios de comunicação da sua candidatura no distrito da Guarda, com o apoio do partido MRPP, em que os três dias da volta foram bem regados e bem comidos em suculentas refeições nas casas das suas três esposas segundas. A primeira é que não gostou desta história e despachou-o de casa ficando a deter o tal Espaço da Serra da Estrela, que ampliou para o Shopping das Amoreiras, pelo que a saída foi Angola, onde há sempre lugar para quem quer progredir.

De uma maneira geral nas línguas do norte de Angola, o que chamamos agora como gindungo era conhecido como ndungo, isto é, em português, coisa agradável, e deu origem diretamente a um prato muito simples e saboroso, agradável, o Meia Ndungo, ou Menhandungo, confecionado com peixe seco assado, cebola e o respetivo gindungo.

Tendo descoberto as qualidades do ndungo não só para ampliar os sabores na gastronomia, mas porque ao intensificar a transpiração purificava o organismo e provocava o refrescamento do corpo, os colonos portugueses começaram a conservá-lo em gim, que lhe apurava o sabor. Quando o pediam para a mesa – Traz-me aí o gim do ndungo! – estamos mesmo a ver com o que aconteceu. A preguiça provocou a evolução e depressa houve a simplificação habitual. Rapidamente o ndungo passou a ser gindungo. Razão também porque deve ser escrito com g e não com j, como erradamente muita gente continua a fazer.

Em Moçambique, o gindungo é conhecido como piri-piri, palavra swaíli, que significa “pimenta-pimenta” referindo-se a generalidade das pimentas. Em Portugal, é usual encontrarem-se essas pequenas pimentas, enforcadas em guirlandas em diversos mercados, especialmente do interior serrano. Atualmente, em circunstância alguma, na maior parte dos restaurantes portugueses, é servida galinha ou frango sem a pergunta “Com piri-piri?” ou Sem piri-piri?.

A introdução da palavra ‘caril’ na língua portuguesa remonta a 1563, conforme o seu primeiro registo escrito. É possível que a palavra tenha entrado na língua portuguesa através da sua forma canaresa karil, até hoje utilizada em Goa. Segundo outras fontes, a palavra seria proveniente do concani-marata kanddhí e, por sinédoque, teria passado a designar ensopados de vegetais ou de carnes, com especiarias.

Já a palavra curry, que é mais usada no Brasil, foi incorporada à língua inglesa em 1598, proveniente do tâmil e do malabar kari, que significa ‘molho’.

Além do caril, os portugueses estão igualmente na origem de dois apreciados pratos da cozinha goesa: o vindalho, corruptela dos pratos temperados em vinha-de-alhos, um termo bem português, e que é hoje bastante usado na Inglaterra como vindaloo, e o sarapatel, que tem base no sarrabulho alentejano, com particular destaque para zona de Castelo de Vide, onde era confeccionado principalmente, em vez de carne de porco, com carne de borrego ou cabrito, talvez numa memória da arreigada presença de uma comunidade judaica e depois marrana. Em contrapartida, da Índia trouxeram os portugueses a deliciosa canja, já nos anos de 1500 usada como anti-inflamatório, qualidades que estão sobejamente reconhecidas.

Mas avancemos. Vamos à mandioca, que, estando actualmente presente em muitas regiões do mundo, especialmente em África, sendo a terceira maior fonte de carbohidratos nos trópicos, depois do arroz e do milho, e é um dos principais alimentos básicos no mundo em desenvolvimento, existindo na dieta básica de mais de meio bilião de pessoas. Espalhada para diversas partes do mundo, tem hoje a Nigéria como seu maior produtor.

Nativa da América do Sul, dali foi levada pelos portugueses para o Continente negro e ali foi disseminada devido a ser mais rentável, pois era de produção abundante e mais fácil de ser processada que a farinha de trigo europeia.

Realmente, foi com o progressivo ressurgimento da navegação comercial, que iriam acontecer as grandes descobertas geográficas que ao mesmo tempo aumentaram e aproximaram o mundo. A chegada dos marinheiros portugueses ao Oriente proporcionou um fácil abastecimento de todo o tipo de especiarias, algumas conhecidas, outras ignoradas, permitindo que possam chegar a todas as mesas.

Já agora, que falámos de farinha, convém acentuar que a palavra pão não existia nas línguas bantu pela simples razão que era um produto desconhecido, pelo que, tanto em Angola como nas outras regiões vizinhas onde o português era a língua franca nos séculos XVI ao XIX, ainda hoje a palavra para identificar este produto é simplesmente pan, dada a dificuldade que os não portugueses têm para o ditongo ão.

Na verdade, são muito portugueses, os dois alimentos de primeira importância para os seres humanos: os cereais (no texto grego simplesmente chamado de ‘secos’), com que Deméter alimenta os mortais, e o vinho (poeticamente designado pela perífrase ‘bebida líquida do cacho’), descoberta de Baco, que o deus transmitiu aos Homens. Se, relativamente aos cereais, se percebe, pelo uso do verbo que significa ‘alimentar’ (cf. ektrephei), que são as suas potencialidades nutritivas que o transformam num produto de primeira necessidade, no que diz respeito ao vinho, a designação que lhe vem atribuída de ‘remédio dos males’ remete‑nos para um domínio já na Antiguidade tido por indissociável da alimentação, a saúde. De facto, pode chamar‑se ao vinho pharmakon, termo empregue tanto com sentido benéfico de paliativo (‘remédio’), como sucede no caso presente, como com valor pejorativo (‘veneno’), remetendo para um elemento agressor da saúde.

Além da mandioca, perduram na gastronomia angolana dois pratos fundamentais, a ombrear com os nacionais muamba e kizaka. São eles o cozido à portuguesa e o cozido de bacalhau, este ainda imprescindível na consoada.

Em Cabo Verde influenciámos nitidamente o seu principal prato nacional, a cachupa, que é um cozido à portuguesa em que as batatas são substituídas por milho pilado, assim como na Guiné o caldo de chabéu não passa de uma caldeirada tropicalizada, tal como o gostoso calulu à moda de S. Tomé. Por diversas razões, especialmente a distância, em Moçambique não se nota tanto a influência portuguesa na cozinha, embora o seu caril é diferente do indiano e integra um elemento novo, a maçã reineta.

O peixe cozido à portuguesa continua a ser um prato obrigatório em Angola, assim como no Japão, onde toma o nome de tempura. Neste país do longínquo Oriente, ainda deixamos o bolo que eles conhecem como Castela, corruptela do que não passa de um bolo de claras que em Português se diz claras em castelo, assim como o pão-de-ló, que os japoneses apresentam com alguma criatividade. É preciso dizer que a utilização de ovos caracteriza ainda hoje os bolos portugueses, sendo exemplo a Sericaia, que nós trouxemos de Malaca, onde se utilizava o mel para lhe dar mais sabor e que os alentejanos aproveitaram para ajudar a comercializar as suas ameixas.

Da China trouxemos a tecnologia que revolucionou o cultivo da laranja doce, pelo que, ao transmiti-la aos árabes, que só conheciam a azeda, – a sua naranj – homenageiam o nosso país, dando-lhe, em todo o mundo árabe, o nome de portugala. De notar que depois, em Tânger, elaborarão um citrino mais pequeno, que se chamará tangerina, que os franceses conhecem como mandarine, de certo modo também uma evocação de Portugal ao utilizar a palavra mandarim, de origem portuguesa.

Da China também trouxemos o chá, que a princesa D. Catarina, filha de D. João IV, expandirá na corte do marido, Carlos II, tornando-se um hábito de consumo que ainda hoje perdura. Muito antes, no começo do século XV, já a “pérfida Albion” assim como a Alemanha, consumia muita marmelada ida de Portugal, que hoje dará nome a tudo o que seja compota em inglês, marmelade.

De vários modos, foi a expansão marítima dos portugueses que originou toda uma mudança na alimentação a nível mundial, levando a outros costumes alimentares, às vezes, por via indirecta. Por exemplo, a tradição de doçaria nos conventos em Portugal tem tudo a ver exactamente com os descobrimentos. Havendo necessidade de cordames e de velas, para equipar as caravelas, havia que produzir cera em grande quantidade para a sua manutenção e conservação, daí a necessidade de haver apicultura nos mosteiros, cujas ordens tinham o monopólio de fornecimento para as empresas de navegação. Por outro lado, a necessidade de as freiras engomarem diariamente os seus hábitos de vestuário levava a terem de fazer criação de galinhas, para a produção de ovos, o que levava logicamente à produção de doçaria, no que as freiras foram exímias durante alguns séculos, levando especialmente a fazerem banquetes quando o rei passava, esmerando-se cada convento em servir o melhor ágape, numa compita sem fim.

Na verdade, foram os agora tão criticados descobrimentos que trouxeram – e levaram – as mais notáveis contribuições no sentido de melhorar-se a nutrição dos homens, acentuando o cunho que, desde muito tomara, de finura requintada e artística. Da Ásia, chegaram a canela, o cravo, o sagu, o caril, o chá, o café, a pimenta negra, que se naturalizou em França com o nome do seu primeiro importador Monsieur Poivre.

A América paga adiantado a civilização que iria beber da Europa, oferecendo-nos, além da mandioca, o milho, a batata, o tomate, a pimenta vermelha, o pimentão, o chocolate, a baunilha, o amendoim, o mate, a quina, o peru e o tabaco.

A África, que fornecera já a tâmara, o coco, o açafrão e outras bênçãos árabes, deu-nos o inhame, a banana, a cana-de-açúcar, o bicho-da-seda, o algodão, além de várias espécies de plantas exóticas passíveis de aclimatação. Mas a grande dádiva alimentar dos árabes à Península foi, sem dúvida, a açorda. Lembremos Gil Vicente na Farsa dos Almocreves. «Tendes essa voz tão gorda/que pareceis alifante/Depois de farto de açorda». Não é por acaso, como diz Roby Amorim, no seu copioso livro Da mão à bocaPara uma história da alimentação em Portugal, que das 300 palavras portuguesas que os gramáticos concordam terem origem árabe, a grande maioria dizem respeito à agricultura, aos pesos e às medidas, à cozinha, à confeitaria e perduram com força insistente, a demonstrar a boa aceitação e a implementação que tiveram ente nós.

Retribuindo, por exemplo, a cana do açúcar com que a ilha da Madeira o regalara, o Brasil fornece-lhe e aos Açores, o milho, o abacaxi, o maracujá e a deliciosa pitanga.

Efectivamente, foi a que agora chamamos primeira globalização que modificou muita coisa nisto de comeres, fazendo jus à décima musa, Gastereia, a quem começámos a exigir todo um ritual ao seu culto, consagrando-lhe inclusivamente um grande preito dos seus fiéis a 21 de Setembro, que marca o início do Outono.

Da China trouxeram os portugueses o começo de outro hábito que viria a assinalar a chamada civilização: a utilização do garfo. Efectivamente, até há pouco tempo, as refeições, em Portugal e nos outros países latinos, eram comidas com as mãos, daí o termo manducar, que significa comer à mão, levar a comida à boca com a mão, que é, de resto, o étimo de manjar, que, por sua vez, está na origem do verbo francês manger, comer. Daqui também um rifão popular: Quem não trabuca não manduca

Termino transcrevendo um excerto de Fialho de Almeida, em Os Gatos: «A cozinha portuguesa é a mais requintada, a mais voluptuosa e a mais sápida do mundo, e a única grande concepção que tivemos, de carácter anónimo, digna de arcar com as epopeias cíclicas das raças aglutinativas e persistentes, como a hindu, etc. Verdade seja que tivemos mestres excelentes, herdando por exemplo o árabe a caçarola e a arte de fritar e refogar, o que foi muito, e que as descobertas não nos serviram só para nos dar a vazante ao espírito batalhador e às más inclinações dos fidalgos fadistas que se arruinavam na metrópole, senão delas auferimos, com as especiarias do Oriente, os picantes do Brasil, e a arte de adoçar dos países gulosos como a Turquia, a Índia e os sultanatos mouros da orla de África, subsídios culinários, condutos, mimos, receitas que muito cedo nos fizeram tomar a dianteira dos povos gastrónomos».

De certo modo, isto confere com o conhecido jantar tipicamente português que o caseiro do Jacinto, na Cidade e as Serras, do nosso Eça de Queiroz, serve ao grupo que chegava de Paris. Por abertura, «o caldo, que era de galinha e recendia» Estava precioso: tinha fígado e moela, o seu perfume enternecia. Depois, «arroz com favas», frango assado no espeto e salada temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão. E, para regar, vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde, – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo».