Os Mercados de Lisboa

ALEXANDRE HONRADO

LUGARES DE CULTURA
Os Mercados de Lisboa . Ou como a cultura transforma os territórios


Este trabalho não teria sido possível sem o apoio e disponibilidade de Luísa Carvalho, Presidente da Associação dos Comerciantes nos Mercados de Lisboa e dos lojistas do Mercado Alfacinha de Lisboa.


 “Banalizar a linguagem é banalizar o pensamento que ela veicula.”
Teodoro Adorno (Adorno, 1999).

            Abandonados – pois o progresso impôs outros atrativos de índole sócioeconómica, isto é, cultural -, os mercados de Lisboa são grandes centros de memória que a cultura intenta agora preencher de novos motivos, não perdendo todavia a raiz, a tradição, que um dia lhes conferiu a deferência. São inovação no revivalismo, todavia.

Um projeto que combina sinergias, a dinâmica das Juntas de Freguesia, esforço camarário, e de concessionários, com a Associação de Comerciantes nos Mercados de Lisboa, está em curso, transformando mercados de víveres em equipamento cultural, polo de encontro de cidadãos de novo estilo.

Sobre o que é este projeto, como se desenvolve, o que já fez, o que procura  – é o que apurámos aqui, num trabalho que formalmente pertence aos estudos culturais.

Ao mesmo tempo, foram apreciadas forças e fraquezas, oportunidades e ameaças, o detalhe interno (organização) e externo (ambiente) dos exemplos descritos. Finalmente, é um trabalho sobre a própria cidade como lugar cultural.

Como nota curiosa, ressaltamos do vocabulário específico generalizado nos mercados uma palavra que usámos, de forma dupla, no título do nosso ensaio: lugares. Para o mercado, o ‘lugar’ é cada um dos espaços ocupados pelo vendedor – o lugar da hortaliça, do peixe, da carne, dos cereais, da fruta – para nós é a abrangência, um espaço físico ilimitado, cidade sem muralhas, um macro-criador.

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            Percorremos, naturalmente, um corpo teórico relacionado com o tema – como a cultura transforma os territórios. Não é de estranhar portanto que o que escrevemos se mostre influenciado por ideias como “ambivalência” ou “paisagem de ansiedade” – vimo-las em Bhabha (2007) – , as carências, deformações e incompreensões dos tipos de cultura – trouxemo-las de Bennet (1993), ou a importância da cultura (que reforçámos em tantos autores, a começar pelo irónico mas escorreito Terry Eagleton (Eagleton,2002), que nos levou até visões aprofundadas da cultura, ajudando-nos a entender a homogeneização da “cultura de massas”, da função da cultura na estruturação do Estado-Nação e da construção de identidades e sistemas doutrinários.

A partir de Eagleton, firmámos conceitos em torno do sistema cultural, de produção e consumo: criadores, público e mediadores. De cultura erudita vs. cultura popular e em particular da democratização da cultura e democracia cultural – assim chegámos ao âmago deste trabalho que procurou ver (ao vivo, no local) um exemplo prático dessa afirmação.

Associações (de comerciantes), Câmara Municipal, Juntas de Freguesia, concessionários, apostam presentemente na reanimação de equipamentos – e na interpretação da cultura de novo formato. Em última análise, todos concordam em que os mercados são cultura por si mesmos e pela capacitação de serem pontos de encontro entre pessoas – confluência intercultural no multicultural – de características muito próprias, aliando inovação ao peso da tradição. (Um combate à “ambivalência” marcando novas cores e imagens numa “paisagem de ansiedade”?).

Sabe-se hoje que na economia o peso da cultura é enorme – mesmo que o Orçamento Geral de Estado (quase) não a contemple, talvez pelo erro político habitual de que o Estado não sabe investir nem é bom gestor nas poucas áreas que lhe podem trazer retorno e notoriedade de curto, médio e longo prazo. Aliás, aprendemos que a expressão “economia da cultura” revela uma noção funcional da cultura associada a determinadas atividades económicas relacionadas com a criatividade e os seus respectivos produtos.

As indústrias culturais podem definir-se como as atividades que permitem produzir, distribuir e colocar no mercado bens e serviços culturais. E este tipo de economia está presente, e pode reforçar-se, no exemplo que trabalhámos.

Assim sendo, a dotação financeira das Juntas de Freguesia tenta a operação (pelo menos) da gestão destes equipamentos e do seu resgate. Nalguns casos, sem grande vocação, é certo, e sobretudo sem grande formação específica.

Sabemos hoje que, mesmo ao nível do poder central, um dos maiores défices está na falta de gestores culturais. Os que temos são poucos. Os poucos que temos têm poucas habilitações, as mais das vezes. E logo para exercerem atividade numa das áreas mais movimentadas e de maiores recursos do tecido social. São as exigências, em suma, dos novos desafios da gestão cultural (que obriga a maior investimento nos estudos culturais, área ainda subestimada do conhecimento).

Está, no entanto, em curso um plano de reestruturação dos mercados de Lisboa – alguns, como o mercado 31 de Janeiro (quase em pleno, na sua atividade) ou o do Forno do Tijolo (o mais pequeno, com uma população de utentes muito diversificada sob o ponto de vista étnico) já têm uma atividade regular e notável, mas outros, como o mercado de Arroios ou o Alfacinha dão ainda primeiros passos. No mercado de Arroios, por exemplo, as obras de reestruturação e da periferia do mercado estavam adiadas há décadas – obras tanto do parque de estacionamento como do Mercado. Em Arroios o desafio foi estabelecido aos comerciantes mais jovens. Todas as lojas estão viradas para a rua. E no telhado podem cultivar-se produtos “verdes” – num projeto inédito.

No Mercado do Forno do Tijolo – outro dos 28 exemplos possíveis de analisar em Lisboa -, quando a área para os comerciantes diminuiu, pois houve uma transferência dos comerciantes para fora da nave central (e os que ficaram nesse espaço não tiveram as condições ideais para poderem desenvolver o seu negócio), a Junta local desenvolveu esforços (que envolvem negociar com a Associação Industrial Portuguesa, A.I.P., e com a Câmara Municipal). A necessidade é a dos comerciantes poderem ter uma porta aberta para o exterior (da nave central).

No Mercado 31 de Janeiro, o mais evidente é haver mais conforto para os próprios clientes. Os comerciantes ganharam também melhores condições de trabalho.    Os três mercados que visitámos em detalhe – Forno do Tijolo, 31 de Janeiro e Alfacinha – são muito diferentes entre si (pelo espaço que ocupam, pela rota no modelo de passagem da cidade e dos seus hábitos, pela configuração e tipo de oferta). Os utentes no entanto, são do mesmo tipo, isto é: durante a semana, os mercados são frequentados por pessoas com uma faixa etária avançada; aos fins de semana, por jovens e casais de jovens. Essencialmente, o Mercado 31 de Janeiro vende muito para restauração, o que lhe confere ainda um outro tipo de clientela.
O Mercado Alfacinha beneficiou de obras profundas. Ainda não está na rota dos utentes, não há hábitos de utilização e é pouca a fidelização. Dada a sua “juventude” (até o nome é recente, nem está ainda nas indicações do trânsito nas imediações), começa por atrair os comerciantes (grandes facilidades de uso e ausência de preços de aluguer de bancas, isto é, de lugares). Procura-se atrair os clientes com uma oferta diversificada, não só das lojas/lugares como de atividades paralelas, de entretenimento e utilitárias (exemplo: as consultas de rastreio feitas pelos Médicos do Mundo e que atraem a população mais idosa).

Registamos como curiosidade que uma das tradições mais carismáticas e definidoras dos mercados está hoje proibida: apregoar. Há quem veja no pregão – uma divulgação pública, do que vai ser negociado, que por vezes se revestia de características artísticas e muito originais, com trinados e frases inspiradas – o pulsar do mercado. Quando alguém apregoa, as pessoas param para ouvir – é o que se diz. Para já, sem pregões, a oferta tenta ser diversificada: desde a possibilidade de cultivar produtos hortícolas em espaço próprio no mercado – o telhado, como referimos -, a tertúlias de poesia, encontros com escritores, atuações de músicos e atores, encontros com médicos e profissionais de saúde em equipas de rastreio e prevenção de doenças, com artesãos que usam os espaços para feiras e mostras, articulação com escolas, convívios intergerações, a disponibilização de uma oferta não tradicional nos mercados ou em minimercados (serviços de barbeiro, cabeleireiro, sapateiro, entre outros).

Aceita-se ainda ser aquele um centro atrativo para os artistas que procurem uma montra viva para o seu trabalho.

“Os artistas contemporâneos não têm a obsessão pela antecipação da história a qualquer preço e, pelo contrário, privilegiam o espaço e a geografia. Em relação ao tempo, a nossa cultura artística contemporânea tende a atualizar os operativos com vocação universal.” Ribeiro (2002)

            A curto prazo, o mercado parece destinado a reocupar um espaço na cidade e a oferecer-lhe uma alternativa original. A ideia da qualidade é um dos trunfos. Mas é um processo lento, progressivo, este de revitalização dos mercados.


A importância da cultura

A importância da cultura – e nela, necessariamente, o património para o desenvolvimento sustentável (desempenhando um papel fundamental na construção da paz, na construção de processos de reconciliação, no estabelecimento de pontes de diálogo e cooperação intercultural – é o ponto de partida e de chegada deste trabalho, mesmo atendendo a que se trata de um estudo de caso.

Aceitámos ainda o conceito de glocal – na senda das ideias do sociólogo Roland Robertson (Robertson: 1992) que vê no conceito de glocalização o mérito de restituir à globalização a sua realidade multidimensional.

Partimos da certeza de que uma cidade é um trabalho em curso (Ribeiro, 2000) dos primórdios de uma remota história a cada obra, por mais pequena, em execução quotidiana do tempo presente – numa arquitetura transgénera, de disforia, no desenho do mapa do genoma urbano onde cada um de nós desempenha um papel fulcral.

A cidade é mutante, isto é, produto de mutações permanentes. Entende cada vez mais que o património é uma forma de criação; e que o entendimento do património é criador.

Ao estudarmos os mercados, acabámos por instalar-nos em última etapa no mercado (recém batizado) Alfacinha (para distanciar-se de um nome tido por pouco conceituado (era antes o abandonado mercado da Picheleira, isto é, erguido numa zona de piche/alcatrão ou do seu trabalho. Note-se que o piche é a forma líquida e pegajosa do betume, um hidrocarboneto escuro similar que é geralmente chamado alcatrão).

A nomeação – ou a integração ou reconhecimento de um equipamento ou local – confere a “autenticidade de uma coisa” como diria Walter Benjamin, (Benjamin: 1992) que chegou mesmo a usar o termo e conceito de ‘aura’ para esse reconhecimento.    O património precisa dessa aura. De ser tangível. Isto é, de ser um discurso dimensionado sobre vestígios, uma atualização (de preferência, permanente), mas alcançável, físico e ao alcance de cada um. Palpável.

A geografia (e o espaço, seu objeto de estudo) devem ser inscrição criativa, em prejuízo do tempo.

Sem privilegiar o tempo, procurámos ainda neste nosso trabalho os mercados na História. E fomos forçados a recuar muito. São centros de comércio – mas também de proteção desse comércio. Até pela herança.

A ascensão da cidade, muito longe de apagar antigos elementos de cultura, na realidade juntou-os. Aumentou a sua eficácia e o seu alcance. Muitas funções, que até ali estavam dispersas e desorganizadas, encontraram-se numa área limitada – e os componentes da comunidade foram mantidos num estado de tensão e interação dinâmica. É a partir desse centro tenso e musculado que irá nascer a cultura urbana. A cidade aprendeu a expressar-se. Ampliou o secular e o sagrado que continha. Ultrapassou-os. Ampliou a noção de vida.

A origem dos mercados em Portugal estará na Fundação da Casa dos Vinte e Quatro em 16 de Dezembro de 1383, que constituía um órgão deliberativo da administração municipal de Lisboa – e, mais tarde, de outras cidades do Reino de Portugal e do Império Português – composto por representantes das corporações de ofícios ou guildas. Foi extinta em sequência da vitória do liberalismo e da monarquia constitucional. Teve uma vida ativa de 451 anos (anulada por Decreto Real de 7 de Maio de 1834, no reinado de D. Pedro V). A fundação da Associação de Lojistas de Lisboa, teve lugar a 1 de Abril de 1870, tendo completado 146 anos de existência recentemente. Em 1897 formou-se a associação de Vendedores dos Mercados da Figueira e, em 1899, a Associação dos Mercados de Produtos Hortícolas.

No século XX foi constituída a Associação de Classe dos Vendedores de Mercados e em 1940 o Grémio dos Vendedores. Depois de Abril de 1974, pensou-se numa Associação que seria constituída em 1975 com o nome Associação dos Comerciantes nos Mercados de Lisboa, que dura até agora.


A cidade como metáfora viva


Gaston Bachelard (Bachlard, 1996) dizia que “apenas o espírito é científico” e isso pode indignar os mais materialistas, os mais exatos, para usar uma expressão querida a alguns cientistas. O espantoso é descobrir, entendida a história do homem, que o verdadeiro valor para um pensamento ingenuamente elementar é a obsessão e a intensidade.

Seja permitida, então, a metáfora entre a cidade e o que a faz viva, o que nela é orgânico e respirável, transmutação e animal: cidade é corpo tangível. E espírito (científico ou criativo, libertador).

Entre a promessa utópica e a promessa ideológica, a cidade é uma entidade no espaço. Cresce – ou limita-se, constrói-se ou cede aos discursos da desconstrução, é a um mesmo tempo paredes e não-lugar, instantaneidade e prolongamentos de tendências longas e conservadoras, fluxos de ver e de viagem, cultura de rizoma e sementeiras.

A cidade é habitação e coabitação; habitantes e sem abrigo, hortas, enormes edifícios e pequenos becos, animais de estimação e de esgoto.

O que é diverso convive sem grande tensão (já o que é adverso sofre o confronto e o seu preço). A cidade, todavia, não é cultural no sentido estrito. É multicultural. É plural. Exige ser intercultural – o que a homogeneizaria ou lhe permitiria maiores entendimentos e a construção de uma paz efetiva pelo encontro das suas diferenças.

É heterogénea e enganadora, a cidade. Sobretudo é enganadora. É itinerário, interseção, centro e monumento. É a ilusão e a metáfora. O local onde se muda de vida. O oposto ao campo onde a vida nos muda. A cidade é ainda equipamento. Ocupação. E transitoriedade.

Na cidade perseguimos o funcional e, todavia, a maior parte dos seus elementos nada tem a ver com os citadinos, são rupturas e descontinuidades no espaço, marcos que ignoramos quando lhes passamos à frente. Nem sempre disfrutamos do que está do outro lado da fachada, em suma.

Na sua qualidade de espaço de acolhimento, por outro lado, a cidade parece ser um ponto de encontro geográfico de variedade ilimitada. Ou seja, nem uma língua comum anda pelo ar, que a cidade é sempre o local de acolhimento de muitas migrações e redime-se na vozearia, onde sotaques se mesclam na língua da cidade. E os tons de pele, os modos de vestir, as opções nos pedidos gastronómicos vão revelando a diversidade. Todos diferentes. Todos iguais aparentemente e depois no grande plano a diferenciarem-se. Todavia, não sejamos otimistas: a cidade é também os seus silêncios.

Na baixa da cidade e nas suas colinas, há o espetáculo animado dos inúmeros turistas que tomam de assalto os espaços e os usam como seus. É a cidade flutuante, provisória, a prazo, num colorido bailado sazonal. Isso tornou-se comum nas muitas baixas e colinas das muitas cidades – e hoje as vilas querem deixar de o ser e as aldeias diluem-se, pequenos satélites em busca de uma identidade, ou melhor de uma autonomia.

Ao pensar a cidade como acolhedora de não lugares – sim, depois de ler Marc Augé (Augé: 2005) -, partimos de algumas incertezas e distinguimos o espaço urbano e o seu preenchimento, a distanciar-se de George Steiner e da (sua) Ideia de Europa (Steiner: 2005), repondo o conceito de itinerário à guarda do que nele emana do urbano – meditemos sobre a etnologia da solidão. É que, olhando em redor, a cidade é esse contraditório: populosa. Etnográfica. E dentro dela a solidão ocupa lugares (e não lugares) inquietos. Como em nós, afinal.

De um modo sereno, podíamos admitir que a cidade é um objeto e que é objeto. Um objeto que se concebe, muda no papel, forma-se e deforma-se com opções da municipalidade, da política, dos tempos – e é objeto de olhares diferenciadores. E transforma-se em nós, por nós, para nós, fora de nós.

A cidade possui um interesse didático autónomo e particular, oferece aos seus intérpretes uma metodologia de reflexão sobre marcas de subjetividade na apreensão da realidade. A sensação de pertencer e de estar contido.

Será isso a cidade? Os carros apitam, os elétricos gemem. Os barcos partem. Há um rio que define a cidade e a limita. Há pessoas como rios.

Nas suas simbologias difusas, a cidade reinventa-se também nos muros, onde uma linguagem nem sempre perceptível se declara contra o sistema, em cores e formas inesperadas. Todos passam por elas, por essas pinturas, sem as verem realmente. Como tatuagens, que se vão multiplicando em pele e pedra.

A cultural mural tatua a pele da cidade.
Somos cultores de uma presença ausente.
Somos habitantes infelizes dos nossos hábitos.
Somos eufóricas recriações da nossa necessidade de lúdico.
Somos cidadãos num ecrã

“com a era da tela global, o que está em curso é uma mutação cultural enorme que afeta aspectos crescentes de criação e até mesmo da própria existência.” (Lipovetsky e Serroy, 2009).

Ao mesmo tempo em que tudo isto se dilui, aparentando a existência, a cidade não existe verdadeiramente (fazendo mesmo assim parte inseparável de nós).


A cidade da comunicação

Aparentemente, estamos na cidade porque estamos no grande ponto de encontro da Comunicação. Da comunicação humana, que é interpessoal, social, empresarial, pessoal, que é externa e interna.

Há poucos anos, comunicava-se na cidade de uma forma muito mais deficiente.
Hoje todos somos emissores e receptores tecnológicos.
Cada ser humano é um walkie-talkie – no entanto já ninguém se lembra desse aparelho fantástico que foi desenvolvido para a guerra e que a paz adotou como seu. Somos, mais sofisticados, sinais de feixes hertzianos, produtos de satélites e chips, dos agitados cabos de fibra ótica que nos percorrem como fluxos de células nervosas e um telemóvel sempre à mão. Esses cabos que agridem muitas vezes as fachadas dos prédios da cidade, aliados disformes das antenas, modernas ou esquecidas, dos telhados urbanos.

A mobilidade foi imposta ao telefone, coisa ancestral, nascida em meados do século XIX e condicionador do Mundo. Hoje, cada ser humano é um portátil ( e possui por vezes mais do que um).

O ser humano, paradoxalmente,  comunica-se e fala cada vez menos, pois sintetizou. É o triunfo da onomatopeia, da interjeição, da frase feita, da shortcut, dos emojis, emoticons, ideogramas da facilitação, de uma simbologia imediatista. O caminho para a linguagem gestual será um destino para todos– mas só quando a videochamada for universal.

A cidade é um enorme telemóvel debaixo do chapéu de chuva dos seus inúmeros satélites. E é telecomunicações, canais, sinais de fumo de uma poluição que procura fora de horas vender a nova ideia dos carros movidos a eletricidade e dos painéis de energia solar, que ajudam, muito na comunicação. E ao procurar a “amizade com a natureza” a cidade vai transformando, de modo radical, a natureza que a acolheu.

Mas a cidade tem apenas a ilusão de comunicar-se; gera muros de não comunicação, ergue obstáculos à proteção civil, deixa velhos isolados que morrem sem companhia, vítimas de todas as carências – e da solidão, essa característica forte das cidades pequenas, grandes ou desmesuradas. Do lado contrário, a cidade também é a rede solidária, que procura resolver problemas, levar alimentos e medicamentos aos que não conseguem sair de casa e criar abrigos para os sem abrigo e salas de chuto para os dependentes, numa estranha ambiguidade de “dar peixe e não ensinar a pescar”, como ensinava o velho conto.

Assim, a cidade também não é. Ou será uma bolsa com pequenas bolsas dentro, cidade composta de cidades. Com a ilusão de que é superior a outros lugares, como um novo não-lugar indiferenciado com atributos supranaturais. E o cidadão torna-se em última análise… uma cidade ele mesmo.

De repente, há um apagão. De repente há a grande catástrofe. De súbito, não há comunicação. Alguns minutos sem contactos telefónicos e o Instituto Nacional de Emergência Médica assume ter sucumbido ao caos. Imagine-se a Proteção Civil sem comunicação. Imagine-se tirar à cidade os seus semáforos, as suas chamadas telefónicas, os seus computadores de empresa com as suas ‘nuvens’ de alojamento de dados, os seus portáteis, os seus tabletes, os seus repetidos telemóveis? Imagine-se o tremor de terra à escala do terramoto? Ou o tsunami, a invadir becos, travessas, ruas, avenidas, vidas.

A cidade é a impreparação. É temor. Ameaça. Guerrilha urbana e atentado.

A cidade do silêncio, por exemplo, causa-nos medos. A cidade sem luz, com lugares esconsos, com recantos tomados pelos sem-abrigo, pior ainda, pelos marginais do crime urbano – ou os bairros insondáveis onde a pobreza se encontra em trincheiras de zinco e cartão, acampando à beira da cidade rica.

Cidade? Um jogo de criança com peças de encaixar.

Quem se recorda da Cidade de Deus (1993) (um estóico antigo podia ler a Cidade de Zeus)? Mas Agostinho difere profundamente dos estóicos. Pelo menos quando diz que a cidade não é de uma ordem de coisas, mas de uma sociedade que se deseja verdadeira, reunida num mesmo espaço para toda a eternidade. Uma cidade onde se partilha o segredo da predestinação divina, que começa com a criação do mundo e do tempo para não terminar com o fim de um e a consumação do outro.

A falsa cidade, hoje, é um amontoado. Um cortiço. Um grande convívio de alojamentos. Quem dorme na cidade nem sempre trabalha na cidade. Quem trabalha na cidade dorme muitas vezes fora da cidade.

A cidade é também a sua simbologia. Que não a torna universal mas a questiona.

Cada cidade revê-se na forma como se aponta. Dos sinais corporativos aos sinais mundanos. A pictografia sinalética não tem um alcance universal – até porque é historicamente situada, como qualquer outra linguagem, num contexto sociocultural específico –, mas a sua própria pretensão “universalista”, obrigando a um elevado grau de redundância na transmissão da mensagem, conduz ao uso empobrecedor da caricatura e do estereótipo, nomeadamente ao nível das representações de género.

A cidade é também a lei. E o clandestino. E o imigrante e o migrante. O refugiado. É agitação. (Tão longe andará Agostinho quando disse “A paz da Cidade Celeste é a sociedade daqueles que, na ordem e na concórdia, fruem Deus em comum e fruem Deus uns aos outros”). Deus? Na cidade? E todavia abundam os templos. Das velhas e das novas crenças. E todavia os homens descendem dos homens (não, não é um erro de género; os homens e as mulheres descendem de si – devia escrever-se assim). E a comunicação que aprenderam para sobrevivem juntos foi criada por todos. Para todos.

Repetiria Marc Augé (2006) neste momento a ideia repetida da etnologia da solidão.

As cidades não existem. A menos que aceitemos que sejam uma convenção das nossas prioridades. É talvez a rede de comunicações que as mantêm.

Nesse sentido, a cidade é a ilusão de todos os refugiados. Os que vieram do campo trocando a escravatura que os ligava à terra pela escravatura das máquinas industriais. Os que vieram das máquinas industriais para o espaço comum do consumo.   O desejo de ter e ser um pouco da cidade.

Devíamos ter direito à terra. Não ao rincão do semear, mas ao pedaço que nos é reservado no ato de nascer. E todavia, pagamos para usá-lo. E somos pródigos em destruí-lo.

A cidade, como ampliação da vila que desprezou sem saudade a aldeia que abandonou, é o que fica do espaço na imaginação de cada um que se atreveu a querer mais. Também nesse sentido, a cidade é o material e o imaterial, o visível e o invisível, a fronteira para uma nova forma de ver a luz do sol (que na cidade enferma das grandes construções e das eternas sombras) e de reinventar a escuridão (não há mais luz artificial do que nas cidades).

Aceitamos que as utopias são a antecâmera das realidades que dela sucedem. Fiquemos por imaginar o modelo utópico de que cada homem é uma cidade. E uma sociedade de extensão restrita. Pode ser a utopia capaz de assegurar a vida humana futura?

Um dia chegará esta memória às cidades que hoje vivem a ilusão da eternidade. 


Conclusão

“A cidade monolítica que cresce à custa da destruição de recursos naturais e de valores culturais, avançando no território sem olhar ao necessário equilíbrio energético e à sua sustentabilidade ecológica, está condenada. Há hoje que recriar a unidade urbe-ager (cidade-campo) que deverá ser o objetivo fundamental do ordenamento do território e do
urbanismo”. (Gonçalo Ribeiro Telles: 2003)

            A cidade pulsa. É o ser. Mutante.

Bhabha (1994) fala-nos do mundo de hoje como de uma vivência de um “estado de transição” (o comportamento das sociedades para com as suas minorias, as de género, as sociais, as culturais, as étnicas).

Um conceito relevante no autor é o de que “a globalização começa em casa” e que há indicadores que ajudam a entender se as sociedades são capazes de materializar, ou não, os fundamentos da globalização, criando um “cosmopolitismo vernacular” (outro dos fundamentos da modernidade. Isto é, um factor de hibridização das sociedades e culturas, um elemento da “mudança de paradigma cultural”).

Não serão os mercados de que falamos – verdadeira globalização em casa, resistência económica de escala e ponto de encontro salutarmente interpessoal e fortemente entrelaçado, cultural -, um sintoma de novos tempos?

A cultura é representação, momento agora, traço dominante de dominantes ancestrais, antecipação, vanguarda. De certa forma é um espelho.

Curiosamente, o último livro (edição póstuma) que saiu em Portugal do semiólogo Umberto Eco (2016), contém exatamente um ensaio “Sobre os Espelhos”.       O espelho é o fenómeno limiar, aquele que marca os limites entre imaginário e simbólico.

Lacan (1966) escreveu abundantemente sobre espelhos (imagem e realidade, nós e o refletido). Os espelhos e a língua são já para Freud (1969) os fundamentos mais fortes de uma identidade. Somos o que refletimos?
Segundo Adorno tudo se torna negócio (na indústria cultural). (Adorno: 1997). E na devolução ao espelho? Todo o negócio se torna cultura?
Espelho de nós, os mercados levam-nos às origens – as feiras medievais, as feiras-francas, as lojas, as vendas, os pequenos centros de comércio onde as primeiras trocas se faziam e o capitalismo nascia. E fazem-no num momento de crise (e de descrédito do próprio sistema capitalista).

Se para Adorno, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa de ser reduzida a mecanismos psicológicos, este novo tipo de oferta (cultural) no formato mercado parece permitir um expansionismo da imaginação, um apaziguar psicológico. Um consumo menos musculado, para lá do consumismo generalizado.

É um ponto forte, convenhamos.

O que diria Bennett (1993) deste microfenómeno, ele que defendeu que a globalização traz grandes oportunidades económicas (esta contrapartida é local, próxima do glocal?)?

Podemos finalmente, entender aqui a presença da relação património-política.   O legado cultural integrado que agrega uma comunidade.
As políticas culturais contemporâneas são no essencial políticas públicas, estatais e não só.
Não haverá melhor exemplo do que os mercados.
Falta talvez pesar um outro fator: a cultura e os públicos da cultura.
Esta oferta é plural. Para já, parece agradar aos extremos – as estatísticas que nos apresentaram mostram os seniores e os mais novos como os utentes privilegiados do equipamento e do seu conteúdo. Há que estudar os públicos e entender os seus comportamentos intermédios, as suas necessidades e anseios. Eles estão nos mercados – pois são os que dão razão de ser ao mercador e à sociedade que assenta nestes pilares: consumo e consumidor, interação das partes em festa do mercantilismo contemporâneo.

Para meditação, encerre-se com as palavras de Terry Eagleton (2002) que merecem pensamento aprofundado.

“A origem da ideia de cultura enquanto modo de vida característico está, assim, intimamente ligada à atração anticolonialista do Romantismo pelas sociedades “exóticas” suprimidas. O exotismo ressurgirá no século XX nos traços primitivistas do modernismo, um primitivismo que acompanhará o crescimento da moderna antropologia cultural. Fará a sua reaparição bastante mais tarde, desta vez sob a forma pós-moderna, numa romantização da cultura popular, agora dotada de um papel expressivo, espontâneo e quase utópico outrora desempenhado pelas
culturas «primitivas». Terry Eaglton (2002:25)


Referências

Para este trabalho entrevistámos Luísa Carvalho – ver https://www.youtube.com/watch?v=8abN4CR-_UU&spfreload=10 -, a presidente da Associação dos Comerciantes nos Mercados de Lisboa. Link criado a 19 de Maio 2016.

A entrevista foi obtida usando uma grelha metodológica rigorosa: uma análise de tipo SWOT, que dirigiu a conversa no sentido de apurar forças, oportunidades, fraquezas e ameaças relativamente ao Mercado Alfacinha e à sua reanimação, bem como à política cultural que lhe está inerente.

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Alexandre Honrado .  PhD |Cand. Cultural Studies – University of Lisbon. CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa