Os Malefícios da Chuva 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


No dia em que enlouqueci chovia.

A primeira coisa que notei foi que um automóvel se dissolvia, mesmo ali, à minha frente. Quando os pingos de água o atingiam, suavemente, iam escorrendo metal e tinta como cera sob o calor de uma lareira. Não, não parecia alucinação mas apenas um fenómeno bizarro tão real que o poderia tocar. Foi quando olhei para as minhas mãos. Com um tom azulado e cristalino as gotas fizeram-nas brilhar com uma aura um pouco pútrida naquela tarde cinzenta. Talvez fossem nervos. Estava a passar por várias dificuldades ao mesmo tempo, que tinham aparecido subitamente ou fui eu que não vi os sinais prenunciadores, talvez nítidos para outros mas não para mim, atormentado pelo trabalho que se acumula, pelo chefe, exigente e estúpido, cansado de ver a vida andar às voltas, sem uma saída, um pouco de liberdade ou de calma.

Claro que podia, tão-só, estar a ver a natureza íntima das coisas: os pingos de água poluída estavam a corroer o automóvel, o tom esverdeado das minhas próprias mãos prefigurava a morte e a decomposição, ao mesmo tempo que elas brilhavam com a vitalidade do que ainda poderiam conseguir. Todavia, essas visões derradeiras eram de tal modo vívidas e perturbadoras que decidi ir para casa. Não estava preocupado, um pouco apreensivo, talvez. Um bom descanso curar-me-ia. Por outro lado, não foi sem um certo fascínio que vi todas essas distorções. Uma imersão radical num contínuo fluido onde tudo parecia exactamente o que não era. Ah, e as luzes. No alcatrão molhado da cidade uma miríade de cores, de formas distorcidas, emergiam, feéricas e delirantes numa sinfonia do absurdo.

Foi, então, em meio dessa realidade insubmissa da alucinação que entrei no autocarro que me iria levar até casa. Porém, os outros passageiros aglomerados num grupo compacto de faces enegrecidas olhavam-me de soslaio mas com insistência perscrutadora e murmuravam entre si numa língua estranha e áspera. Vi várias lâminas que passavam uns aos outros, vi garras e dentes afiados. Tive medo. Saí. E, até chegar ao apartamento, na calçada lodosa das ruas, lutei contra o assalto de formas incongruentes, perdi-me porque de súbito o caminho que tão bem conhecia tinha-se transformado numa selva opressiva, húmida e tropical, onde grandes animais mutantes me observavam do alto das retorcidas árvores que tapavam o Sol. Mesmo assim, em pleno delírio de transmutação de tudo em outra coisa qualquer, não sei quantas horas depois, cheguei ao meu prédio e talvez o alívio tenha feito diminuir a intensidade das distorções e puderam estabilizar-se as formas.

Entrei em casa e exausto ainda pude decidir que na manhã seguinte, depois de um bom sono, iria ao médico.   Fora apenas um episódio esporádico, raciocinei. Afinal apesar de tão intensas visões as minhas percepções tinham voltado à normalidade e os objectos da minha sala-de-estar pareciam ser o que sempre foram.

Entrei no quarto. E não era o meu quarto. Era uma enorme câmara abobadada e antiga onde na penumbra dourada e gélida da sua estranha vastidão não se lhe reconheciam os contornos ou os cantos, único modo de lhe discernir as dimensões. Mesmo assim avancei, podia ainda encontrar uma cama, descansar, esquecer. A esperança da normalidade não me abandonara, pelo menos, não por completo e enquanto andava naquela galeria descomunal reparei que o tecto estavam mais baixo. Depois que, afinal, a câmara se afunilava de tal modo que já não poderia continuar. Virei-me e dei com uma parede que me obliterava o retorno e percebi que o espaço onde estava era diminuto e que continuava devagar mas implacável a reduzir-se. Sufocava porque tinha gasto o oxigénio da exígua cela. Um momento mais e seria esmagado. O último pensamento antes de adentrar no negrume interno de um sono sem sonhos foi alívio.

Acordei numa cama de hospital, magro, com o cabelo todo branco, e envelhecido. Tinham passado dois anos, cinco meses e vinte e oito dias desde essa tarde.

Agora estou bem mas, por vezes, nos reflexos capto o vislumbre de um rosto que me olha atentamente e não é o meu.


JOÃO PEREIRA DE MATOS