Os gatos absurdos de Maria Azenha

 

 

 

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Texto de apresentação de «O livro do absurdo», de Maria Azenha (Urutau, 2024). Auditório da inComunidade, 27 de Abril de 2024, Porto.


Mais um excelente livro de Maria Azenha, com a sua proposta de exposição ou explicação do absurdo. Começando pela indicação de que ab+surdo diz respeito ao ouvido, àquilo que o ouvido percebe como dissonante, música desagradável, Maria Azenha logo o dimensiona no âmbito das sonoridades, no cenário das ruas, nos locais ruidosos, onde se ouve parte do que lhe fere a sensibilidade e ela assimila como absurdo. Dissonante e por isso absurdo é o facto de se ouvirem em Lisboa muitas línguas estrangeiras, que a autora deixa patente nos títulos e em alguns versos dos poemas. A amplitude do lugar dissonante vai da casa ao mundo, como ilustra o poema “O dia da Europa”, em que o ruído é o das bombas.

E, para o leitor, o que é absurdo neste livro? Diria que é a “Natureza morta” do poema assim intitulado, ao mostrar que essa modalidade, ou descritivo, da pintura declara que não há perguntas nem respostas, ou seja, a natureza morta anula o ruído, portanto a palavra. Porém o ouvido não é o único órgão de percepção da realidade, os olhos também a assimilam, bem como os restantes órgãos dos sentidos. Talvez por isso a personagem principal deste livro seja cega. Quais os seus bens? – Uma caneta. Que perigo enfrenta? – O do suicídio, pela certa. Vamos ouvir:

EARTH 

abri todas as portas

não havia ninguém

 

encontrei um cego

uma caneta

uma corda

 

o Homem do Absurdo

Podia considerar que o narrador, pois trata-se de uma história, encontrou uma série de objetos independentes. Prefiro entender que encontrou uma personagem com alguns atributos. Trata-se do Homem do Absurdo, e com ele a questão do conhecimento, expressa no abrir portas. Vamos imaginar que esta personagem em esboço é algo como um peregrino, um eremita que busca o saber, abrindo portas, e que as suas chaves são pobres e poucas – a caneta, ferramenta de comunicação, a cegueira, capaz de imaginar, não esquecendo que Homero é cego, ou seja, é um vidente, e por fim uma corda. A corda é absurda, convenhamos, por isso vamos supor que é instrumento de morte porque existe nesta uma porta para o conhecimento do Além.

A morte é um dos temas mais insistentes do livro, por isso não estranhamos que um deles seja o de Deus. Tema nitzscheano, tal como o proposto no último verso do poema “Avant-garde”, ao referir a obra “Para além do bem e do mal”. Já ficam mareados de absurdo esses temas da filosofia contemporânea, quando deus desce do seu trono metafísico ao corpo exigente de funeral, com poemas em vez de flores a acompanhar um ritual que se intitula vanguarda:

 

AVANT-GARDE 

incluirei poemas de deus

no seu funeral

 

aquilo que se faz

por amor

está

 

para além do bem e do mal

Voltemos ao Homem do Absurdo e sua caracterização. Cego, apesar de ter vivido onze anos com um oftalmologista, muito dado a fobias, com tendência suicida, já entrado em anos, pois custa-lhe dobrar os joelhos, alguma obesidade, de sanidade mental delicada, com vinte anos de experiência de psicanálise, tanto mais pessimista quanto político, ateu, militante holístico, o Homem do Absurdo é uma personagem complexa, a que falta acrescentar a suspeição de narrador na primeira pessoa, aqui e ali. A sua autobiografia dispersa-se pelos poemas, de forma direta ou indireta, mas no longo texto intitulado «Como será estar morto durante duzentos anos» a sua história de vida concentra-se e cresce em importância, conferindo a este último livro de Maria Azenha o caráter narrativo a que venho prestando atenção.

Antes de prosseguir nesse caminho, chamo entretanto a atenção para a minimalidade da maior parte dos poemas, curtos textos gnómicos, que em muitos casos apresentam uma estrofe inicial na qual a realidade imediata transparece, rematada por uma finda, estrofe ainda mais breve que a inicial, que contém a conclusão sentenciosa, mas fora já da realidade primeira. A sentenciosidade, possa embora traduzir uma realidade de primeiro nível, por variados processos de escrita poética desemboca no absurdo, num patamar surrealista. Vejamos o poema «Excuse me», ou «Se me dá licença», em cena interpretável como de elevador, veículo mais inspirador do que as escadas:

durmo num sétimo andar

nunca encontrei nas escadas Tchekhov

nem a orelha de Van Gogh

(…)

EXCUSE ME

Um silêncio, expresso por um parêntesis que contém reticências, e o remate cortês, advindo apenas da elipse do elevador, pois não é admissível que o Homem do Absurdo subisse e descesse a pé as escadas de um sétimo andar, sobretudo quando nas escadas nunca nenhum objeto bizarro fez a sua aparição. Tais situações despertam o riso, não o riso da alegria, sim a reação nervosa ao que transtorna. Tudo isto mescla emoções, desencadeia cenas insólitas como num teatro, sugerido aliás pelo pano que corre ou desce do poema «O cortinado caiu»:

alguns pais casam-se com filhas

algumas filhas casam-se com pais

as casas movimentam-se todo o dia

lavadas vezes sem conta

 

o cortinado caiu

O Homem do Absurdo é a principal personagem do livro de Maria Azenha, mas de similar importância são as crianças. Vemo-las no Natal, por exemplo, a jogar ao rapa, ou a ouvir a explicação de como se joga ao rapa e qual a significação das quatro letras nas quatro faces do rapa. Jogo infantil, em todo o caso, e como sempre, podemos progredir do jogo natalino para o rapa dos políticos, caso que me leva a comentar que a poesia de Maria Azenha é invariavelmente muito crítica em relação aos usos da política e da sociedade contemporânea. Aponte-se como exemplo, entre tantos, o poema “Manhãs submersas”, que parece armar-se com a autoridade de Vergílio Ferreira para assim abrir, na estrofe I, e as seguintes são ainda mais ácidas: “Continuo rodeada de idiotas / a poesia está na mercearia/ o natal na loja do cidadão”.

Voltando porém à criança, e o poeta é a maior delas, se me permitem, basta falar no Natal, como agora aconteceu, para elas acudirem em busca das prendas. O aspeto infantil pode apresentar-se na escrita, no léxico dessa idade, como se para falar de algo muito importante, de que só os arrogantes comentadores políticos sabem falar, como da Europa, fosse preciso baixarmos o volume de voz até ao sussurro das carteiras da escola primária. É o que lemos precisamente no poema “A Europa tinha que saber”, e tinha que saber que estamos todos no Rossio a jogar às cartas.

As cartas lembram a Rainha de Copas, sempre disposta a mandar cortar cabeças, lembram Alice e outros amigos, entre os quais o Gato de Cheshire, à espreita no final dos poemas, ele que é um permanente sorriso. Uma literatura que assume a inocência das crianças para corroer mais eficazmente o tecido podre do nosso tempo. A ingenuidade, equivalente nas letras ao naïf da pintura, assenta na interferência da criança no discurso, de tal modo que pode aumentar o absurdo de tal maneira que, em consequência, deus arranja um terçolho. Comentei o poema “Hermes Trimegisto e a sua tábua azul”.

Para concluir, insisto em que neste livro de Maria Azenha se verifica um desvio da lírica para a narrativa, com a presença de uma personagem, o Homem do Absurdo, com andamento de história sendo contada e com desfecho. Em vez do habitual fim feliz ou infeliz, os textos de Maria Azenha optam por uma linha oblíqua de tipo surrealista, como acontece com a árvore de Natal que sofria de falhas de memória:

 

A ÁRVORE DE NATAL QUE SOFRIA DE ALZHEIMER 

uma mulher colecionava bolas

pendurou-as na árvore de natal

 

o gato brincou com elas

por causa do distanciamento social

 

desapareceram o gato e as bolas

e a mulher também desapareceu

 

mais tarde bateu à porta

mas

a

árvore

não a reconheceu

Quanto ao gato absurdo, aquele que está e não está morto, ele demonstra, como quis Shrödinger, que é afinal o absurdo do ser e não ser a matéria quântica da poesia:

 

NO ARMÁRIO DA FÍSICA QUÂNTICA 

um dos fundadores da teoria quântica Schrödinger

contou a famosa história do gato para enfatizar

que a teoria quântica diz algo absurdo

o gato não observado de Schrödinger

está simultaneamente morto e vivo – até que observá-lo

faça com que esteja ou morto ou vivo

 

digo então:

este poema que não foi observado por Schrödinger

está ao mesmo tempo morto e vivo

se o observas morto o poema está morto

se o observas vivo o poema está vivo

o poema não existe nunca existirá sem ti

[…]

 

MARIA AZENHA
O livro do absurdo
Portugal/Brasil, Editora Urutau, 2024