Os cristãos e a política

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


Hoje, diante de propostas políticas que abertamente procuram
dividir, de forma maniqueísta, a sociedade entre
bons e maus, puros e impuros,
a pergunta do Evangelho é-nos devolvida, de novo,
com maior agudeza: diante destas injustiças,
de quem é que me faço próximo?

Alguns cristãos de várias denominações (católicos, metodistas, evangélicos, anglicanos, menonitas e presbiterianos) uniram-se em valores base para as eleições presidenciais, mediante a assinatura de um Manifesto. O 7Margens divulgou-o. Não teve a cobertura mediática que a sua significação merecia, não tanto pelo seu número, mas pelo próprio gesto ecuménico, em consonância com o oitavário de oração pela unidade dos cristãos. Mais a diante, tentarei mostrar o seu alcance no contexto da nova teologia política.

Sou dos que se manifestaram contra a febre da criação de partidos confessionais em Portugal, a seguir ao 25 de Abril de 1974[i]. A eclesiologia do Concílio Vaticano II (1962-1965) tinha superado o papel que, no passado, tinha justificado as chamadas democracias cristãs[ii]. Era preciso evitar o uso do nome de Cristo, directa ou indirectamente, para cobertura de práticas económicas, sociais, culturais e políticas em contradição com a sua mensagem e a sua intervenção histórica testemunhada no Novo Testamento.

Muitos cristãos que, nessa altura, se manifestaram contra partidos confessionais envolveram-se em várias organizações políticas, como era normal no pluralismo que se defendia. Para muitos dos católicos, que tinham perdido a esperança nas reformas da Igreja, que o referido Concílio tinha proposto – os chamados vencidos do catolicismo –, o envolvimento na política partidária passou a ser um substituto da religião. Acabaram por engrossar a ambígua designação dos chamados católicos não praticantes.

    Schillebeeckx (1914-2009) conta o que observou, nos EUA, em poucos anos de distância, em que a política era tudo, para se tornar quase nada, e as religiões sem Deus passarem a ser quase tudo. Não era uma situação exclusiva dos EUA. Este teólogo apresenta, no entanto, a forma de superar o exclusivo da política e o mundo das religiões sem Deus,por uma nova inteligência prática do Evangelho. A identidade cristã é continuamente desafiada. Só pode afirmar o seu inconfundível sentido, se ela própria se apresentar como novo desafio global, de geração em geração[iii].

    B. Metz (1928-2019) tentou, ao longo da sua vida, elaborar uma nova teologia política. Foi numa conferência, em Valadares, que nos deixou uma das últimas exposições da sua ideia de um cristianismo da compaixão, no século da globalização.

Para ele, o cristianismo da compaixão é um tema bíblico central. Apresentou uma explicação breve a partir das tradições do Novo Testamento. A atenção especial de Jesus, de certo modo o seu primeiro olhar, não se dirigiu ao pecado dos outros, mas ao sofrimento que eles padeciam. Esta sensibilidade radical ao sofrimento alheio caracteriza o Seu modo novo de viver.

Isto nada tem a ver com uma atitude dolorista, com um desgraçado culto do sofrimento. A paixão de Jesus por Deus está ligada à mística da compaixão pelos que sofrem. Esta é a raiz do cristianismo. É neste ponto que os cristãos devem ser interrogados: não terão os cristãos, ao longo do tempo, compreendido e praticado um cristianismo exclusivamente como uma religião sensível ao pecado e pouco sensível ao sofrimento? Não baniram os cristãos, demasiado depressa, do anúncio cristológico, a pergunta, o grito por Deus, perante a história do sofrimento do mundo? A compaixão exige a preparação para uma mudança do olhar, na linha de Mateus 25, 31-46, que pode ser expressa pelo imperativo categórico de H. Jonas: Repara, olha e ficas a saber.

Não basta ficar a saber. A mística cristã da aliança entre Deus e os seres humanos é diferente das religiões de olhos fechados, do Extremo Oriente. É uma mística de olhos abertos que não suporta a política que gera ódio, sofrimento e morte. Por isso, a mística da compaixão não é sentimental. Gera uma mística da alteração do mundo, uma mística de sensibilidade e ética políticas[iv].

    Referi, no começo desta crónica, oManifesto ecuménico marcado por uma concepção religiosa e cristã que não vive de olhos fechados para o que se passa fora do espaço geográfico da igreja, do templo ou da mesquita, no exclusivo da oração particular com Deus, mas em toda a vida: em casa, com a família, nos relacionamentos, no trabalho e, como não pode deixar de ser, também na vida cívica e em sociedade.

Para os signatários do Manifesto, no contexto da eleição para a Presidência da República, impõe-se aos cristãos retomar a pergunta dirigida a Jesus, no Evangelho de Lucas, como critério determinante do processo decisório do seu voto: Quem é o meu próximo?[v].

Na parábola do samaritano, toda a mensagem de Deus através de Jesus se consubstancia no encontro, na relação, nomeadamente daqueles que mais estão afastados de nós, dos que estão a ser oprimidos ou dos que sofrem. Qualquer voz que nos coloque contra estes irmãos, não é a voz de Deus.

Hoje, diante de propostas políticas que abertamente procuram dividir, de forma maniqueísta, a sociedade entre bons e mauspuros e impuros – negando o direito de asilo aos refugiados e segregando etnias; impedindo um processo de reintegração dos presos e sonegando a assistência aos mais pobres dos pobres – a pergunta do Evangelho é-nos devolvida, de novo, com maior agudeza, responsabilizando-nos, agora, como protagonistas da história: diante destas injustiças de quem é que me faço próximo?

Tanto as perspectivas do cristianismo da compaixão como as doManifesto citado, que deve ser lido na íntegra, não dispensam uma nova reconsideração da política. É o Papa Francisco que o lembra: «Actualmente, muitos possuem uma má noção da política e não se pode ignorar que, frequentemente, por trás deste facto, estão os erros, a corrupção e a ineficiência de alguns políticos. A isto vêm juntar-se as estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela economia ou dominá-la por alguma ideologia. E, contudo, poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?

«(…) Penso numa política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias viciosas. Não se pode pedir isto à economia, nem aceitar que ela assuma o poder real do Estado»[vi].

Fizeram bem aqueles que entregaram aos deputados a Encíclica do Papa, Fratelli Tutti. Faremos melhor se a praticarmos sem esperar por nova época de eleições.


[i] 25 Abril. Textos cristãos. Novembro 25Ulmeiro 1977, pp. 22-26

[ii] Cf. Ernesto Balducci, L’église des démocraties chrétiennes. Une rupture necessaire, in Lumière & Vie, 132, pp. 103-117

[iii] Cf. A Identidade Cristã, in Deus no século XXI e o futuro do cristianismo (Coord. Anselmo Borges), Campo das Letras, 2007, pp. 405-429

[iv] Cf. Sobre o Futuro do Cristianismo na Europa da Século XXI, in Deus no século XXI e o futuro do cristianismo (Coord. Anselmo Borges), Campo das Letras, 2007, pp. 431-442

[v] Lc 10, 25-37

[vi] Fratelli Tutti, 176 e 177


in Público 31.01.2021

https://www.publico.pt/2021/01/31/opiniao/opiniao/cristaos-politica-1948261