VITÁLIA SANTOS
Vitália Santos (Portugal). Funcionária autárquica e licenciada em Turismo. Brasfemense, descendente de um mestre canteiro, seu avô materno, e sobrinha do último canteiro da freguesia de Brasfemes, José Ferreira de Figueiredo (n.1930-f.2012), mais conhecido pela sua alcunha «Zé Cagarelho». Sim, porque todos os Brasfemenses têm e são conhecidos pelas suas alcunhas. Tal como a maioria dos Brasfemenses (de gema), a arte da cantaria atravessou gerações na sua família. Também a sua família, ainda, possui parcelas na Serra do Ilhastro.
A Serra de Brasfemes e a Serra do Alhastro, Oleastro ou Ilhastro (topónimo romano que significa “monte das oliveiras”), encontram-se inseridas na zona calcária Souselas/Brasfemes, no concelho de Coimbra. Das pedreiras da Serra do Ilhastro eram extraídas pedras de cantaria, com que se fizeram muitas obras na região pelas mãos dos canteiros e lavrantes.
Na heráldica de Brasfemes, outrora terra de canteiros, são visíveis na sua simbologia, o sino que representa a torre sineira da igreja da freguesia; os picos (martelos) que representam a grande atividade de canteiros e artesãos de pedra; e o Contrachefe que significa a parte inferior do escudo – o dentado é usado para representar a serra de Ilhastro, que contém boa pedra de cantaria, muito branca e lustrosa, como escreveu em 1873, Augusto Soares d’Azevedo Pinho Leal[1]:
“A Serra de Ilhastro tem muito boa pedra de cantaria, muito branca e lustrosa.
No alto tem 1500 metros de comprido e uns 800 metros de largo onde se cultivam oliveiras. Situada em posição alta e fragosa, mas fértil, Brasfemes está situada por matas e florestas, eucaliptos e pinheiro bravo, manta esta que se desenvolve em planalto que muralha a Freguesia.”
Já o naturalista José Maria Rosa de Carvalho menciona as pedreiras e a serra nas cartas que dirige ao conceituado zoólogo e político português José Vicente Barbosa du Bocage (n. 1823/f.1907). Não é de admirar o interesse de Rosa de Carvalho pela serra, dado que a mesma possuiu grande diversidade de habitats, de flora e fauna[2]. As Serras de Brasfemes e do Ilhastro têm igualmente sido objeto de estudo pela Universidade de Coimbra[3].
Ao consultarmos os registos paroquiais e os livros de sepultamentos da freguesia de Brasfemes, constatamos que a profissão de canteiros é a que mais se evidencia.
Sem sombra de dúvidas, podemos afirmar que antigamente a Serra do Ilhastro era a fonte de sustento de muitas famílias. Da serra dependiam os fornos da cal, os canteiros das suas pedreiras, os moleiros dos moinhos, os lagares das oliveiras, os pastores do pasto da mata, os agricultores das vinhas e os caçadores da caça. A serra era «galinha dos ovos de ouro» de um povo que respeitava a natureza pois dela dependia. Os terrenos não estavam abandonados e era com orgulho que os asseavam. De referir ainda que, no passado, existiam vários lagares de azeite. Uma das localidades tem, inclusivamente, o topónimo Lagares, e nas proximidades, numa antiga quinta do Remungão que foi pertença do Mosteiro de Lorvão, funcionava, até há bem pouco tempo, um lagar de azeite.
Mas, a guerra, a emigração e a instalação da Cimpor, em Souselas, nos princípios dos anos 70, em muito contribuíram para o desaparecimento de muitas das profissões, incluindo a de canteiros. A empresa cimenteira não só representava o progresso que chegava acelerado e que abalroava a sustentabilidade pacata duma comunidade rural e local, como também continua a ser uma séria e real ameaça à existência da própria Serra do Ilhastro. Nos anos 80 e 90, os proprietários das parcelas na Serra do Ilhastro eram assediados para que vendessem a sua parte à empresa cimenteira, numa altura em que, por coincidência ou não, dois dos presidentes da Junta de Freguesia de Brasfemes, eram também eles, funcionários da Cimpor.
Atualmente, restam-nos vestígios do passado, testemunhos de outras azáfamas quotidianas, entre os quais, os atuais nove exemplares, em estado de ruína, representativos de um dos maiores núcleos de moinhos de vento de todo o Município de Coimbra. Mais precisamente, um sub-grupo derivado de um dos maiores conjuntos de moagem em toda a região Centro que existiu ao longo da linha de cumeada da Serra do Ilhastro, com cerca de 30 exemplares, segundo um levantamento realizado no âmbito da Monografia de Souselas (2013, p.469-470), de autoria de João Pinho.
Se, por um lado, do alto da serra se vislumbram belas paisagens panorâmicas, se respira o ar puro e nos sentimos invadidos por uma paz de espirito, por outro lado, também os nossos olhos, num outro ângulo oposto, alcançam o resultado do progresso, de anos de exploração intensiva por parte da indústria cimenteira numa das zonas mais afetadas.
Quanto às peças em cantaria, podemos também apreciá-las em diversos locais de Brasfemes, mas é no Cemitério de Brasfemes que encontramos a maior mostra desta arte. Há inclusive jazigos que se destacam dos demais. Um deles, o jazigo central do benemérito António Maia e Costa (n. 1905/f.1982), com pedra em cantaria com pormenores decorados e alusivos às ferramentas manuais utilizadas pelos canteiros no seu ofício, entre elas o esquadro, o compasso e o cinzel.
Curiosamente, o símbolo da maçonaria remete aos instrumentos dos trabalhadores que, na Idade Média, dominavam as técnicas de construção em pedra. Ora o termo francês maçon, quer dizer pedreiro.
Na maçonaria, o compasso, que desenha círculos perfeitos, representa a busca da perfeição pelo homem, o esquadro, que forma ângulos retos, lembra que o homem deve levar uma vida igualmente reta: ética e honesta. Na maçonaria o cinzel é o instrumento utilizado pelos aprendizes e a ele estão atribuídos outros significados, tais como a beleza, a perfeição, o juízo, a escultura e arquitetura.
Jazigo de Fausto de Quadros (Cemitério de Brasfemes)Também neste cemitério está sepultado Fausto de Quadros que ingressou na Magistratura e foi desembargador e juiz da Relação de Lisboa. Entra para a Maçonaria em 1900, onde deteve o cargo de Grande Secretário-geral da Ordem, tendo sido expulso da mesma, pelo Grande Tribunal Maçónico Federal do G.O.L.U., em 1909. Foi benemérito em Brasfemes e consta na toponímia. Na sua última morada, pelas mãos do mestre Coimbrão, João Machado, mandou gravar no seu jazigo: “Quis ficar sepultado em Brasfemes, terra querida, onde passou a sua infância e foi feliz”.
Ainda relativamente à maçonaria, acresce mencionar que Luís Pereira de Sousa Barradas (n.1757/f.1841) era natural de Brasfemes, foi ministro do último governo de D. João VI, em 1825-1826, conhecido como governo Lacerda/Barros, e que substituiu o de Palmela/Subserra; Ministro da justiça, de 15 de janeiro de 1825 a 1 de agosto de 1826; juiz desembargador e foi Grão-Mestre Interino do GOL.
Esta pequena freguesia de Brasfemes, com os seus 1.969 habitantes (Censos 2011), apesar de outrora ter sido uma terra de canteiros, não possui uma escultura ou sequer uma placa toponímica em homenagem aos mestres escultores da pedra. E a Serra do Ilhastro, onde jazem as pedreiras e os moinhos de vento, tem vindo a ser cada vez mais frequentada por praticantes de várias modalidades desportivas e atividades de lazer, amantes da natureza, caçadores e outros. Porém, lá no alto da serra, a Cimpor parece o «predador» a aguardar o momento oportuno para abocanhar a sua presa. Por quanto tempo mais irá ela resistir?
[1] PINHO LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de – Portugal antigo e moderno: Diccionario Geographico, Estatistico, Chorografico, Heraldico, Archeologico, Historico, Biographico e Etymologico de todas as cidades, villas e freguezias de Portugal e de grande numero de aldeias, p.432.
[2] PARDAL, J. – Percursos da Natureza de Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra ,2005, p.116.
[3]ANTUNES, Tânia Maria Fernandes – Flora e vegetação da zona calcária Souselas/Brasfemes, 2012.