NICOLAU SAIÃO
“Um Café é o lugar onde podemos arruinar-nos, enlouquecer ou cometer um crime” – Vincent van Gogh
“Um Café tanto é um continente perdido como um lar encontrado” – Lord Alfred Jelly
Eles são territórios de solene aventura
com seus nomes diversos e pacatos
com seus nomes soberanos de antiga submissão:
Cafés do nosso mundo interior e exterior
a lembrar-nos o tempo, a liminar memória
tão conhecida e próxima, nocturna e singular.
– o Café onde um dia contemplámos o cerne
de que nos construimos: os Cafés da cidade
toada familiar
a que não se resiste
e por vezes nos muda a rima cá por dentro
setentrional como um cântico sob o luar de Fevereiro
seja só para a bica ou para maiores rumos
da primordial viagem:
o Facha e o Central, peculiares estações
onde li quer as opacas ordenações perfeitas
de Maurice Scève, Bulgakov, Antonin Artaud
quer a fulgurante linha de terra criada
por René Char e Nerval
– ainda não existia nessa altura a incisão deste silêncio –
pelas tardes de Verão, com amigos à mesa
(o Donato Faria, acompanhado
pelo Par Lagerkvist por dentro da cabeça
ou o Drago longilíneo que depois deu em romancista
ou ainda o Arnaldo, que tinha um pai polícia
o que é sempre matéria para odes
próprias ou alheias)
prolongados em conversas donde surgiam segredos
anos e anos depois
inteiramente sentidos. Cafés
como o Alentejano, substância de possibilidades metamórficas
e por isso tendo a ver com os proverbiais sete pontos
de orientação europeia
ou o Tarro das elegâncias funéreas
de magistrados, professores, lojistas finos
ou ainda o Luso, onde se viam geralmente o pernalta
e o seu irmão contabilista
o rico ou o obliquamente pobretana, o estudante e o doutor
e outros
negociantes dos arredores da existência e demais vilas.
Quantas vezes
na orla insubmissa das noites comigo mesmo
foi neles que senti, olhando os rostos em torno
o faiscar repentino das descobertas diárias
que a seguir se dispersam e vão por todo o lado
como redondas andanças dum sentir universal
e portanto bem nosso. As manhãs
repousadas, um contínuo pulsar
de entradas e saídas
porque sempre a tal nos ligam alegrias e tristezas
se adolescentes somos ou já adultos olhamos
os retratos do passado e o barulho do futuro.
Os meus Cafés existem muito para além de mim
nesta terra, naquela e naqueloutra ainda
– Cafés de Portalegre, um Café de Madrid
onde li as palavras que Bergamín escreveu
a traços largos numa parede, entre desenhos
de companheiros já idos ou simplesmente fuzilados,
o Café de Leiria (como se chamava a menina dos petiscos…?)
que tantas vezes acolheu com bondade comercial
a minha estranheza de militar por acaso
lá na mesa do fundo, com muitos anos a vir
e a abalarem p’ra diferentes latitudes
ao recordar com afecto as refeições a crédito
do fraternal patrão e as viagens p’ra casa.
Um Café de madrugada, sito em Ciudad Real
onde fômos comer churros, acompanhados
por canecões de chocolate a escaldar, mas mais propício
que um discurso de alcalde ou señoria. Um Café
rumorejante de Paris
onde tentei encontrar resíduos de poetas báquicos e resistentes
e em troca – we never know – quase fui engatado por uma londrina
que certamente nunca estivera na Rua da Junqueira
onde habita a última imagem de Café que frequentei
antes de passar à peluda.
Cafés, entidades secretas de tessitura incessante
em vós se pode
sentir o amor passar numa figura desfocada
entre outras coisas que passam, cintilam e logo após
se dissolvem entre ruas calcorreadas e planetas
ano atrás de ano divisados
– um de cada lado da mesa, construindo
o imenso mistério que em nós pode habitar
e trocamos como um eco enquanto mastigamos
às vezes com manteiga, às vezes com mostarda
as lembranças da vida e as sandes de fiambre.
Relembrando Max Ernst, grande pintor e poeta
“A MORTE NO JARDIM”
Hoje os pássaros não cantam como dantes
nem as portas batem como antigamente
nem os gatos, que tanto amavas
como dantes vagueiam no lar dos homens.
Partiste
e algo terminou, que não era
simplesmente o teu vulto de príncipe renano
traçando a rota primordial
ou apenas
a tua boca sussurrando nas planuras encantadas
les hommes n’en sauront rien.
Foi aqui que tu morreste, Max
nesta rua portuguesa onde as crianças brincam
neste pátio de casa provinciana a que as plantas conferem
a dignidade e o medo
a beleza interior de algo humilde que se evoca
foi bem aqui
nesta Cidade Inteira
repleta de inocência e de amargura
neste Café que se alonga como se quisesse devorar o espaço
neste quarto alugado onde os amantes se encaram
como se se vissem pela primeira vez
nesta praia policiada pela maldição das pátrias
neste silêncio
neste espanto
nesta ignomínia.
Alguém um dia desenhará nas paredes derruídas
o coração escondido da tua Ninfa Echo
com o ar de quem volta de uma grande viagem
com as mãos humildes e já serenas
sem que ninguém lho impeça
Algum dia, no doce recanto duma madrugada
alguém entenderá porque sabias tu que é bem real a Vila Petrificada
e então será possível o caminho até ao mar
e os homens saberão finalmente
qual a melhor mais bela delirante floresta
guarida para os cavalos e os animais nocturnos
E que será na penumbra das ruas desse mundo
onde cantamos, comemos, bocejamos, padecemos
que a alegria submersa se haverá de descobrir
paciente e subtil como uma estrela abrindo
sobre uma antiga casa.
Há gente que fala, dizias tu. Há gente que fala
mas as palavras sabem a azebre e a limalha
e a tristeza e o remorso percorrem-nos os ombros
como um pedaço de um qualquer metal maldito
pois a cidade violenta devora a sua própria cauda
como se fosse ainda existir centenas de anos.
É nas coisas reais que morres em cada minuto.
Neste pedaço de pão a que uns dentes ofereceram um sinal de fogo
nesta janela aberta como se aqui tivesse sido posta para um acto teatral
neste incrível Abril de vozes sonolentas
chamado muitas vezes a ultrapassar o tempo
É aqui que tu morres com as palavras por companhia
em cada hora de desespero organizado
nas vagas caravelas sulcando o mar oculto
para as ilhas para os momentos para os sonhos.
Não morreste pela razão das armas
como essoutro teu irmão Garcia Lorca
nem te foste pelo postigo octogonal
que Jacques Rigaut escolheu lucidamente
partiste, apenas partiste como um fruto demasiado maduro
como um ovo que se quebra no minuto habitual
como uma cama revolvida pelos espasmos da solidão
e que já nada dará nunca mais a quem a abriu.
Por isso Max para ti não tenho mais que um olhar longínquo
ou um breve uivo de raiva à altura do coração
para a tua fresca libertação
para a tua máscara e para o teu cinzel que soube construir
e desconstruir de seguida
todos os Napoleões do Deserto
mas mesmo assim dói
e persiste
porque ficámos mais sozinhos ante a solenidade e a ganância
e não mais nos dirás que a vida reside no segundo degrau.
Porque quase ninguém tem a coragem de brincar
como tu a sério dizias defronte ao teu chemin mistérieux, debaixo
da tua eternité des mondes
nós continuaremos com os nossos frágeis cigarros
lançando o fumo da nossa dor revoltada de encontro às sombras
que já se vêem surgir no tempo
do derradeiro arrepio
como um tremor na montanha distante
no mundo que permaneceu
nesse teu universo adivinhado
tantas vezes sonhado, no plenilúnio
pintado e escrito.
ns . in “Escrita e o seu contrário”