Orlando da Costa, o escritor perseguido

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

Quem quiser saber a fundo o que foi o reino de trevas do regime salazarista (1933-1974) não pode deixar de conhecer a obra do romancista, teatrólogo e poeta Orlando da Costa (1929-2006), que, nascido na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo, em Moçambique, numa família goesa de brâmanes católicos, e criado em Margão, na Índia, viveu em Lisboa desde os 18 anos de idade, tendo exercido a profissão de redator publicitário. E que ainda hoje tem o seu nome ligado à história de Portugal, pois é seu filho António Costa, primeiro-ministro do governo português desde 2015 e secretário-geral do Partido Socialista desde 2014.

Militante comunista desde os anos da juventude, sua produção como literato sempre esteve ligada umbilicalmente àquela ideologia, embora seus versos, romances e peças de teatro arte e ideologia “resolvam-se num corpo único, harmônico”, parafraseando-se aqui uma observação da ensaísta brasileira Maria Lúcia Lepecki (1940-2011), professora universitária radicada por muitos anos em Portugal, sobre o seu fazer poético.

Para homenagear o que seria o 90º aniversário desse notável escritor, a Revista Vértice, de Lisboa, publicou, em seu número 192, de julho-agosto-setembro de 2019,  um dossier sobre a vida e a obra de Orlando da Costa, reunindo seis ensaios e sete prefácios e posfácios às obras do escritor, além de uma entrevista (pouco conhecida) dada por escrito ao padre goês Eufemiano de Jesus Miranda em 1988 e que veio a ser publicada em Oriente e Ocidente na Literatura Goesa: Realidade, Ficção, História e Imaginação (Goa, 2012).

Como introdução há o texto “Podem chamar-lhe Orlando”, do investigador brasileiro Everton V. Machado, doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Paris-Sorbonne/Paris IV (2008) e professor auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, profundo conhecedor da literatura indo-portuguesa, que faz uma apresentação dos demais textos.

II

Em 1961, Orlando da Costa publicou o seu primeiro romance, O Signo da Ira, que recebeu o Prêmio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa. À época, os exemplares foram apreendidos pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), organismo estatal de inspiração fascista do regime salazarista, tal como tinha acontecido com três livros de poesia anteriores: A Estrada e a Voz (1951), Os Olhos sem Fronteira (1953) e Sete Odes do Canto Comum (1955), reunidos depois em Canto Civil (1979).

De Signo da Ira, Maria Alzira Seixo, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, diz, em seu ensaio “A ficção de Orlando da Costa: inscrições narrativas da terra e do humano”, que este é talvez o grande romance da ex-Índia portuguesa na História literária portuguesa. “É um romance de amor à terra e de amores na terra, cantando a juventude e a inocência, deplorando o agro perdido e o vigor da criação estiolada, devido ao sofrimento e à maldade gananciosa”, diz.

Como observa Hélder Garmes, professor livre-docente da Universidade de São Paulo, no ensaio “Colonialismo e conflito cultural em O Signo da Ira de Orlando da Costa”, o romance trata dos curumbins, que, em termos de castas, equivaleria aos sudras, isto é, uma casta que se caracteriza por executar trabalhos braçais pesados na lavoura, trabalhos de limpeza, entre outras atividades pouco prestigiadas socialmente”.

III

O mesmo trágico destino viria a ter o romance Podem Chamar-me Eurídice, concluído em 1963 e publicado em 1964, apreendido pela Pide dois meses depois de lançado. O livro, que reflete a experiência de vida do autor na década de 1950, seu tempo na universidade, constitui “o retrato de uma situação típica dos anos 60, a repressão contra a chamada subversão universitária, levada até à violência extrema do assassinato pelos agentes da Pide”, como observou o crítico e historiador Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999) no ensaio “Os imprescindíveis nexos “mito-realidade” e “morte-transfiguração” num notável romance do underground antifascista português”, publicado à guisa de prefácio na terceira edição do livro (1985) e reproduzido no dossier de Vértice.

O terceiro romance de Orlando da Costa, Os Netos de Norton (1994), igualmente reconstitui as lutas políticas em Lisboa, desta vez abordando a geração que lutou contra os estertores salazaristas da campanha de Humberto Delgado (1906-1965), o “general sem medo”, que foi derrotado nas urnas em 1958 num processo eleitoral considerado fraudulento, passando pela “primavera marcelista”, liderada por Marcello Caetano (1906-1980), último presidente do regime salazarista, até o 25 de Abril, movimento que derrubou o Estado Novo, vigente desde 1933. Este livro lhe valeu o Prémio Eça de Queiroz, da Câmara Municipal de Lisboa.

Para Maria Alzira Seixo, estes romances já seriam suficientes para consagrar Orlando da Costa, mas o autor publicou ainda O Último Olhar de Manú Miranda (2000), que “exibe elevado grau de complexidade narrativa-descritiva (em simultâneo) que não tem sido assim tão frequente na ficção portuguesa”.  É um livro que narra a vida de Manú Miranda, que seria um alter ego do autor, mostrando como viviam e se relacionavam goeses e visitantes, a partir de uma saga familiar que passa pela colonização britânica, pela luta do líder indiano Mahatma Gandhi (1869-1948) e a Segunda Guerra Mundial, seus costumes, crenças e idiossincrasias e preconceitos, como observa Maria Alzira Seixo, para quem a obra pode ser considerada uma espécie de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (1509-1583), o livro de viagens português mais conhecido no mundo.

IV

Orlando da Costa é filho do goês Luís Afonso Maria da Costa e de Amélia Maria Fréchaut Fernandes, nascida em Moçambique. Ao contrário do que se lê no Wikipedia, Amélia Maria não descende de mãe francesa. Aliás, os Fréchaut não são franceses, mas, sim, mestiços moçambicanos, de origem mauriciana, e muitos ainda vivem em Moçambique e outros em Portugal.

Orlando casou-se primeira vez com a jornalista Maria Antónia de Assis dos Santos (jornalista Maria Antónia Palla), com quem teve uma filha, Isabel dos Santos da Costa (1957-1960), que morreu num acidente de viação, e um filho, o político António Costa. Divorciaram-se em 1962. Orlando casou-se segunda vez com Inácia Martins Ramalho de Paiva, da qual teve um filho, o jornalista Ricardo Costa.

Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, não conseguiu estabelecer-se como professor porque a Pide emitiu parecer negativo. Como publicitário, integrou durante vários anos a agência Marca, onde chegou a diretor-geral. Trabalhou, entre outras marcas, com a Ford, Volkswagen, Nestlé e Páginas Amarelas.

Foto: Facebook.com. Orlando da Costa (1929-2006): poeta, romancista e militante de esquerda

Durante a ditadura, chegou a apoiar a candidatura do general Norton de Matos (1867-1955) em 1949, mas desistiu antes das eleições em razão da falta de liberdade e de possíveis fraudes eleitorais. Por sua militância, foi preso três vezes pela Pide, tendo permanecido, na última vez, na cadeia de Caxias durante cinco meses. Militou no Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil e no Partido Comunista Português, organismo que serviu de 1954 até a data de sua morte.

Poucos dias antes de falecer, a 5 de janeiro de 2006, recebeu das mãos do presidente Jorge Sampaio o grau de Comendador da Ordem da Liberdade. É autor ainda das peças de teatro A como estão os cravos hoje? (1984) e Sem Flores nem Coroas (1971). Esta última peça igualmente remete para as memórias da presença colonial portuguesa no Estado da Índia, como observa Filomena Gomes Rodrigues, doutora em Estudos Portugueses pela Universidade Aberta em ensaio também publicado neste número especial de Vértice. O dossier inclui ainda textos de Mário de Carvalho, Daniela Spina, José Manuel Mendes, Luiz Francisco Rebello, Gonçalo M. Tavares, Rosa Maria Peres e Ana Margarida de Carvalho, além de um posfácio do próprio Orlando da Costa  para o seu livro Podem chamar-me Eurídice (1974).


Revista Vértice
Lisboa, série II, nº 192, julho-setembro de 2019, 144 páginas, 8,50 euros. E-mail: assinaturas@paginaapagina.pt Site: www.paginaapagina.pt
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