MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Como de uma obra de artes plásticas se diria, António Cândico Franco, na criação de Operação Papagaio, usou técnicas mistas. Daí uma obra muito complexa do ponto de vista formal, pois vai da lista ao documento burocrático, passando pelo decreto-lei e mais. Texto que afinal é algures designado como poema e, se lhe desse o nome de romance, também não ficaria muito longe da realidade. Tudo isto conflui num trabalho sobre aquilo que língua e linguagem dão à luz, daí o título, vindo do espaço romanesco da espionagem: um grupo terrorista leva a cabo a missão de exterminar papagaios, para o caso caracterizados por repetirem, como Eco, falas alheias, e sobretudo últimas sílabas.
O livro é muito original, tendo embora as raízes mergulhadas num remoto passado de vida universitária e catedralícia em que quem sabia ler e escrever eram os frades, habitantes dessas instituições primordiais, e os frades não se dedicavam apenas a aprender Latim e a rezar missas nessa língua, a copiar livros e a adorná-los com belíssimas iluminuras. Não, os frades são travessos, e parece que o gosto por essa travessura voltou agora. Tempos de medo e negrume chamam pela gaiata luz do riso. O livro de António Cândido Franco recorda-me um outro, chegado do Brasil neste milénio, em 2017, creio, assinado por Marco Lucchesi, com este título completo e tão extenso que o apresento como citação:
Catálogo da biblioteca do Excelentíssimo Senhor Marquês Umbelino Frisão Doctor in Utroque Jure Sátrapa do Larapistão Grão-Mestre dos Incunábulos Imateriais Pontífice da Imaculada Ordem das Traças Intérprete da Filosofia Urânia Judiciosamente Compilado pelo Doutor Lúcio Marchesi.
Obras lúdicas, porém nem todos as conseguem escrever, pois na sua base manifestam um grande capital de leitura, quer de livros quer de documentos de arquivo, em suma, são obras próprias de investigadores que muito pesquisam nas bibliotecas e que das bibliotecas trazem a experiência do labirinto que é a cultura.
Qual o fundo mais sério do divertimento de António Cândido? Eu diria que estamos todos nós, escritores sobretudo, entalados entre a nossa desde sempre legítima utilização da liberdade linguística, liberdade de criação, que pode partir da subversão da norma, e o desgosto, ou mesmo irritação, ao convivermos com o que se apresenta como ataque a essa norma linguística, subversão acrítica, inculta, do bem falar e do bem escrever que admiramos, a que aspiramos, e que para nós não é apenas o meio de comunicação por excelência, é também algo de muito mais fundamental, descrito na perfeição por Fernando Pessoa, ao declarar que “Minha pátria é a língua portuguesa”. Fica tão clara nestas palavras a dimensão política da língua, capaz de nos assegurar a identidade, como a sua dimensão humana, afetiva, de mamíferos que somos bebendo-a no seio materno, e daí também a profundidade a que chegou Natália Correia ao opor “mátria” a “pátria”. António Cândido segue nesta linha de extrema seriedade no entendimento da língua, usada em rebelião dos que a corrompem, além da sua função primeira de meio para comunicar. De um lado a subversão é criadora de literatura, de outro é caminhada para a estultícia. Sob a desordem satírica, uma ferida sangra, a mostrar um presente apocalíptico, no qual queremos sobreviver. No “Esclarecimento – sobre a pirataria verbal”, quase nos vemos Gaza, Ucrânia e o Planeta sacrificial, a clamar:
Roubaram-nos a terra e agora tiram-nos a palavra. Por isso nós lutamos pela terra, pela água, pelo ar e pela palavra, que é o fogo da vida. Não nos basta ficar vivos; não nos chega salvar a terra, a água e o ar; precisamos de continuar a falar através da palavra (p.67).
Com palavras escrevem-se livros e sobre eles não é muito otimista a visão de António Cândido Franco. Perfilho o seu alerta sobre uma literatura algo frívola que em maioria se pratica, cega para o que seria necessário como luta e afinal vem enroupado em trajes de bom corte, mas trajes de passeio em domingo ensolarado, quando a potes chove e troveja.
Excelente contributo político e poético de António Cândido Franco para o processo de salvação da língua e do que a língua cria, nestes tempos de miserabilismo intelectual e moral que nos chega pelas mãos de umas criaturas que não têm vergonha de se apresentar literalmente como fascistas, quer na cartilha, quer nos símbolos gestuais, quer nas negras fardas.
ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO
Operação Papagaio
Porto, Officium Lectionis, 2024