O sol dos dias, de Taylane Cruz

 

Alexandra Vieira de Almeida

ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA
A tênue luz que margeia a sombra das palavras
em 
O sol dos dias, de Taylane Cruz


Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux. Contato: alealmeida76@gmail.com


No novo livro de contos da ficcionista sergipana Taylane Cruz, O sol dos dias (Penalux, 2020), temos 19 textos ricamente trabalhados pela tessitura do chiaroscuro. Sua técnica revela as epifanias e mistérios da vida em momentos aparentemente simples e cotidianos. O sol, ora aparece, ora se esconde nos escombros da noite, apresentando a regeneração e, ao mesmo tempo, as ruínas do humano. Como ela disse em suas entrevistas, sua delicadeza não é inocente. Há uma leveza mágica e feérica nos seus contos, que é ferida pela pele cruenta do mundo em todo o seu lado sombrio e perverso. A ingenuidade primeva e originária passa por desdobramentos de luz e caos, ao se quebrar nas ondas profundas dos abismos. O sol é um símbolo ambíguo, que dá a vida e queima, fere de morte as coisas, os animais, os seres, enfim. Simbolicamente, o número 19 é representativo, pois é a carta do sol no jogo de tarô. E o título do livro não poderia ser mais sugestivo e ambivalente, pois o sol dos dias não se refere apenas à manhã, mas também aos dias que correm na sua dinâmica de claridades e escuridões.

A sombra só existe devido a potência da luz, que cria seu oposto e, também, sua irmã. Na carta do sol no tarô de Marselha, vemos duas crianças que brincam alegremente, mostrando a inocência e a vivacidade. Mas tal sentido na obra de Taylane ganha um contorno ambíguo, pois se a carta for invertida, indica seu oposto, o lado mais sombrio da consciência humana, um sol negro que irradia sua força maléfica ao apresentar o ser humano, dentro de si, no centro de seu coração, como uma dupla imagem de vítima e algoz, humanidade e desumanidade. No belíssimo e instigante prefácio de Maruze Reis, professora de Literatura, encontramos a seguinte afirmação: “O sol dos dias é um livro iluminado, mas não espere o leitor que a apreensão dessa luz ocorra na superfície das coisas”. E na epígrafe de O sol dos dias, temos: “Porque eu já sabia que o amor é o sangue de todas as coisas”. Com essas referências, podemos esclarecer que o livro por ora aqui analisado, trabalha com os contrastes mais distantes, fazendo da luminosidade uma entrega para a cama da noite, com todos os seus reveses e enigmas.

Elegi sete contos para dar um panorama mais reflexivo sobre características seminais em sua obra contundente. São eles: Saravá, Riso, Colecionador de conchas, Ilha dos passarinhos, O dia em que quase matamos um cão, O sol dos dias e O pintassilgo. O conto de abertura do livro é epistolar, misturando os gêneros, dando hibridismo ao fator literário do texto. Logo no início do conto, temos: “CARA DONA EDILÉIA, pedi para dona Creuzinha escrever-lhe estas traçadas linhas, pois eu não sei ler tampouco escrever, mas isso não me impede de me defender”. Há a fusão da professora que escreve a carta, no seu aspecto de texto e a oralidade em primeira pessoa, endereçando uma história contada, em tom de crítica, revelando uma problemática leitura/escrita, que é sanada com a ajuda de Creuzinha. Há o relato da verossimilhança, pois as palavras ditas são transcritas exatamente como experenciadas na realidade vivida da personagem que não sabe ler e escrever. Um retrato do analfabetismo em nosso país, que deixa os desvalidos num terreno movediço da exclusão social. Mas o nome da relatora que não sabemos ainda, no seu tom de criar-se uma expectativa no leitor, dando-se na esfera do silêncio e do ocultamento, é inusitadamente revelado posteriormente, pois no seu pedido de desculpas, por ter sido ferida nos olhos por dona Ediléia, em tom acusatório, apresenta revelações que vão sendo iluminadas de forma crescente na sua urdidura solar, mas projetando a sombra da dúvida e da ironia.

Logo no início da carta, vão se criando expectativas que surgirão de forma surpreendente, como nos seus outros contos do livro. Ela não mata a charada logo na primeira mordida das frases iniciais. O leitor irá desbravar uma floresta magmática que explode os sentidos após a fractação da luz em inúmeras cores e significados. A agressão, a violência se expõem numa linguagem apreensível. A mulher que pediu a escrita da carta para a professora cria um verdadeiro texto argumentativo, revelando a dissertação em meio á narração, fundindo os estilos, de forma rica e eficaz. Ela se justifica, dizendo que é uma pessoa idosa. Há toda uma delicadeza do gesto da personagem não tão simples assim, apesar da crítica social, num duplo jogo de discernimento e recursos implícitos. Apesar de ela não querer revidar, por outro lado, não se julga santa, não se santifica, apenas se humaniza e cita um trecho bíblico, na sua dimensão intertextual, alternando a parte do corpo, da face para o olho, pois esse é o leitimotiv da narrativa: o olho é metáfora para o enxergar os detalhes não percebidos por almas ignorantes. E a personagem carrega toda uma sabedoria das anciãs, pois apesar da idade, não é tão sacralizada, colocada na sua imitação de Cristo, tendo os defeitos que o humano carrega em sua consciência. Ela diz: “Mas também não ofereço o outro olho, não tenho vocação para Jesus”. Invertendo o sentido original do texto bíblico, a narradora parodiza o versículo essencial da compaixão cristã. A ironia fere a sacralidade do Amor Fraternal, pois apesar de não querer dar uma resposta violenta e física a sua agressora, não terá também o afeto por ela, quebrando o laço que as unia. Ressignificando a visão, Taylane nos mostra a parte frágil, a fragilidade do ser no corpo e na alma. Sem ser gentil, sua linguagem oscila entre a utopia, o sonho de mudança da outra e o sarcasmo. Apesar da linguagem do dia a dia, apresentada na carta, temos recortes líricos. A personagem principal, que é vitimada, é catadora nas ruas, e faz uma crítica mordaz à estrutura social numa linguagem simples e direta, sem floreios. É uma pessoa humilde e crítica, mostrando a sabedoria que vem da experiência na rede dos dias. Ela cita frases da outra na carta e a chama de dona, senhora. Isso seria uma respeitabilidade, por ser uma carta dirigida a uma destinatária, ou uma ironia ácida?

Numa passagem do conto, ficamos sabendo o porquê do título do texto, que nos despista, pois “saravá”, de acordo com o Dicionário Antonio Houaiss indicaria “salvar”, proveniente dos africanos escravizados de origem banta. O sol não ilumina desde o início, mas somos sacrificados pela luz a partir da projeção das sombras das palavras, que nublam o real sentido das coisas. Ela reflete sobre a pobreza afetiva de dona Ediléia, através das humilhações e espírito de grandeza. A catadora saboreia as coisas boas da vida, busca o prazer, o riso, a espontaneidade em meio à rigidez da senhora. As palavras utilizadas como “dona” e “senhora” também poderiam indicar sisudez e rudeza de Ediléia.

Por outro lado, a alma na pobre vitimada não é tão simples, parafraseando um conto de Flaubert, pois ela percebe o mundo poeticamente, apesar de morar na rua. Prefere a natureza ao artífício, pois a senhora adorava adornos e enfeites. Ela utiliza comparações e metáforas sobre as coisas da vida. Compara dona Creuzinha, a professora, que a trata com sensibilidade com a dureza de dona Ediléia. A utilização do nome da professora no diminutivo só vem reforçar essa intimidade e afetividade entre seres tocados pelo céu da humanização. A luz do sol encontra uma brecha no coração dos seres. A narradora da carta gosta de novelas, o popular, desfrutar das coisas pequenas e delicadas da vida. Em oposição, temos a arrogância da outra. A carta revela o jogo dual do espelho, a crítica e o conselho, na ânsia de mudança do outro. Além da citação bíblica, de ditos populares, temos a sabedoria da sacralidade oriental, com a imagem da flor de lótus, mostrando a sapiência que se esconde sob o véu da pobreza e humildade. Têm-se citações nos aspectos da ancestralidade, da família, do antigo. A anciã não se sente a dona do mundo, como a destinatária, que tem o domínio sobre o outro, num processo de exploração e opressão. A catadora reflete sobre a estrutura do sistema da sociedade, mesclando o ser e o social, o interno e o externo. Num rico paradoxo, a emissora da carta diz: “Palavras ferem, isto até eu que não sei ler sei”. Com um jogo de contrastes e analogias, usa a mesma palavra, para expressar sua sabedoria existencial, atingindo o coração e a consciência do leitor, num labirinto duplo de sensibilidade e conhecimento. Há momentos duros na carta, que cortam como facas, e flores abertas ao lirismo arrebatador. E a crítica mordaz de uma catadora de rua nos faz lembrar da grande escritora Carolina de Jesus. Mas é sempre pelo contato com o outro que a sabedoria se dá, que a luz do autoconhecimento se adentra nos poros do ser. Entre o oral e o escrito, o conto apresenta uma surpresa no final, ao leitor vislumbrar uma luz no fim do túnel, uma miudeza de sol, um raio solar de dentro da senhora Ediléia. No meio da crítica, somos arrebatados por momentos raros, doces e sensíveis. E há um aspecto da sacralidade presente na vida da anciã, que deixarei aos leitores descobrirem. Assim, temos o sagrado e a epifania, em meio ao cotidiano, como tão bem nos revelaram Katherine Mansfield e Clarice Lispector, dois gênios universais. E basta sabermos se a alma profunda da anciã irá revelar o motivo do murro no seu olho por dona Ediléia. A crítica dura e o desejo do bem são mesclados numa simbiose perfeita. O final tem a imagem da chave de ouro.

No conto “Riso”, a narradora inicia o enredo com esta frase: “Os beija-flores haviam sumido”. Numa tonalidade misteriosa, em meia-luz, o começo da história nos orienta pela diferença em meio ao habitual, um estranhamento em face da normalidade da vida. Os nomes incomuns em alguns de seus contos demonstram uma individualidade marcada pela originalidade, pela potência de unir as antíteses da vida. Aqui, o nome da personagem é Riso, mas, a partir do chamamento da patroa, sabemos seu nome em sua inteireza: “Risoneide, vem cá!” Temos a sutileza, a sensibilidade no início da narrativa, com a imagem da natureza em profusão e arroubo líricos. O tom de mistério surge através de um desaparecimento. Essa tonalidade pastel que se principia se choca com a voz e o grito estridente da patroa, um ponto obscuro e caótico, prendendo nossa atenção ao logo do enredo mirabolante.

Algo inaugural acontece naquele jardim, que traz um questionamento, uma dúvida. É um jardim de mistérios, com seu tom mágico e encantatório, tendo uma pitada de aventura investigativa. Riso decidi fazê-los voltar. Quer tirar o traço estranho ao familiar, ao conhecido, trazendo a luz de volta para sua existência, pois o desaparecimento dos beija-flores representa uma reviravolta na sua vida, se transformando em estaticidade, na sua placidez de estátua. O movimento de sua experiência costumeira é quebrado por um fato transformador e impactante que a acordará para um outro mundo. Quando menina, Riso foi chamada de feia e ela teve que conviver com isso, mas, por sua inventividade afetiva e poética, quis driblar o caos dessa constatação se enfeitando. Se no primeiro conto, temos o questionamento da narradora, aqui a dureza dos outros também corta e sangra a essência do ser, o Amor é pintado de sangue. O mundo do outro que os circunda é terrificante e sacode o interior e exterior dos seres e das palavras. Riso usa um disfarce, uma máscara, uma persona (enfeite) para matar a incompreensão do outro. Com sua inventividade, fazia-se bela. O tom é encantado. Mas mesmo com a externalidade dos adereços, Riso percebia que era dentro de seu coração que guardava o maior tesouro, as coisas mais belas.

Nos seus contos, percebemos que Taylane faz analogias entre o humano e a natureza, revelando o processo de transformação entre os reinos: “Riso cantarolava, sibilava, rodopiava no jardim como uma borboleta bailarina”. E, no meio da narrativa, uma surpresa, a narradora se revela como personagem que observa Riso, escondida, em sua cobertura de mistério, o leitor ficará sem saber sobre o desvendamento dessa pessoa enigmática? Qual será seu papel na história? Riso utiliza artimanhas para conseguir trazê-las de volta, num jogo lúdico no meio natural, o jogo poético através da natura. A misteriosa narradora não é nomeada, criando uma abertura ao não dito no enredo. Nem todas as palavras podem ser nomeadas. Os vazios e silêncios também estão grávidos de luz e significados ocultos. É essa a mensagem que Taylane nos quer passar. Algo inesperado acontece, a interferência do ser misterioso com um ato surpreendente na história em que ela vai interferir e mudar o curso do fluxo fluvial da narrativa. O conto vem nos falar do sofrimento em meio ao encontro da felicidade, da suavidade em face do trágico e dramático, densificando cenas do dia a dia. O desfecho é de uma potência inusitada e original. O trágico, o riso, o sofrimento, a delicadeza, estão, aqui, imbrincados, numa cadeia sígnica polivalente. A flor tem todo um simbolismo sensível, a força interior, o dentro em sua atmosfera onírica.

No conto “O colecionador de conchas, nos deparamos com a relação do neto com sua avó. O personagem tem um intenso prazer de colecionar conchinhas, guardando-as num pote de vidro. Podemos ver nesta metáfora, o encontro entre o interior do sujeito e o mundo que o circunda. Num encontro entre interno e externo, as pequenas coisas fluem como gigantescas moradas no espaço de dentro, no coração insólito do ser. O uso de diminutivos é recorrente nas narrativas de Taylane, revelando a doçura e a afetividade no seu enfrentamento com o chão duro do real. A imagem dos potinhos com sortidas e coloridas conchinhas mostra a metáfora da própria composição de sua obra, ou seja, o eixo temático da unidade, um único objeto, em meio à variedade dos matizes. É como a luz projetando camadas palimpsesticas, desvendando os véus da diferença, em que no interior do fruto, encontrássemos o sumo, o cerne, a semente, em diversas cascas que têm tonalidades entre o claro e o escuro, o tenro e o maduro, o inocente e o adulto. Aliás, na sua obra, temos o ciclo das idades, indo da infância, juventude, maturidade e velhice. Em seus contos discernimos a essência e a aparências dos objetos, das plantas, dos animais e dos homens. Um fator inesperado para o olhar do menino faz ele se deparar, quando volta da escola, com um homem morto na calçada da casa. Ele poderia imaginar várias coisas diferentes e inusitadas, mas não isso.

O poder da imaginação une o consciente e inconsciente das personagens, num processo de florestamento dos sentidos latentes e expostos a olho nu. O questionamento do menino é perceber que ninguém tinha reparado no que ele viu. Isso me faz lembrar da novela A pomba, de Patrick Suskind, em que o personagem se depara com uma pomba em frente à porta de seu apartamento, um acontecimento aparentemente banal, mas pleno de epifania. Aqui, no conto de Taylane, o garoto enfrenta a figura de um morto, como ele fazia ideia. É algo estranho que nos arrebata, que nos leva a um estado de petrificação e, ao mesmo tempo, de algo que produz movimento no interior do ser humano. O menino é um fino observador, observa com detalhes as características do defunto. Nos seus contos, encontramos tanto a curiosidade e a observação de uma criança, quanto a sapiência de uma anciã. Os círculos das idades se tocam em um ponto comum. Pois é do humano que estamos falando, como o exterior impacta o interior. Só depois de um tempo, descobrimos o nome do menino, quando sua avó o chama e o acontecimento do defunto é revelador, metamorfoseia a serenidade do menino, em sua tranquilidade de colecionador de conchas na praia, como símbolo de trânsito, passagem, que o menino acorda para um susto, um espanto. O cadáver causa repulsa, nojo, repugnância e altera a leveza inicial do conto com o lirismo e a poeticidade de colecionar o belo. Assim, entre a leveza e o peso, as asas e as pedras, Taylane vai tecendo suas belíssimas histórias. O final deste texto é surpreendente, ocorrendo uma inversão, com um espelho transfigurado, uma reviravolta em que ficaremos impactados. O arremate é de uma grandeza perfeita e de uma beleza mágica, criando analogias, pontes entre os elementos da natureza e o homem morto que o menino encontra no chão a partir de seu poder de fantasia. As crianças, os jovens, os adultos, os anciãos, ou seja, as eternidades das idades se opõem ao tempo destruidor do inumano, da perda da aura enigmática pelo caos e desordem social.

Seguindo o estudo dos contos, temos “A ilha dos passarinhos”. Nele, inicialmente temos uma ciranda com um trecho de uma música em meio à natureza de uma ilha que era visitada por turistas. A letra da música indica o amor inocente entre as crianças, com um beijinho, um abraço. O mundo das brincadeiras, em seu viés de ingenuidade nos faz voltar à imagem do Paraíso reconquistado, como aquela ilha será descrita por um turista idoso, um desconhecido que mexe com os alicerces daquela região. O narrador diz: “Trocavam de par estalando beijos nas bochechas, abraçando como se possuíssem tímidas asas no meio da roda, enlaçados pela ingênua brincadeira”. Temos a questão das rodas, cirandas, o universo infantil em sua doce representação. Além disso, cenas do cotidiano se carregam da sublimidade, da grandeza, o ordinário e o extraordinário se tocam, perfazendo o voo dos pássaros azuis livres das gaiolas. Mas a natureza bela do lugar não bastava aos moradores. Era necessário a visita de estranhos para dar energia àquele lugar remoto. O outro, a outridade de que falava Octavio Paz, mostram que o ser não se basta a si mesmo, precisa de si e do diferente de si, para que a completude e a totalidade se presentifiquem.

Seria preciso uma novidade humana para renovar o apetite daqueles seres, dando-lhes vida, trazendo um diferente paladar para sabores variados. O prazer e o deleite, no entanto, se chocam com a morbidez e a violência, entrelaçando-se numa dança exótica, como imagem da consciência das pessoas. A ilha como metáfora do espaço da interioridade é assaltada subitamente pelo que vem da travessia, de fora, o estrangeiro. A ficcionista Taylane Cruz cria expectativas no leitor com a apresentação de personagens plenos de mistérios, o insondável na esfera da mente humana, o que desconhecemos, incita a nossa imaginação mais vibrante, mas que não sabe das virulências mais torpes. O sol aparece, aquecendo a ilha e as pessoas, num lastro iluminador das trevas abissais do que virá. O pai de uma das meninas da ciranda é que fazia o trajeto de barco, trazendo os turistas e nisso chega um “velho de chapéu marrom-claro e camisa branca”. Esse personagem é cheio de perguntas sobre o lugar, observações que deixo para a leitura dos receptores do conto.

E nesse texto, também temos a síntese do processo criativo de Taylane, que dá unidade à obra, a potência do jogo luz X sombra, uma metáfora que surge aqui da natureza para o humano, nos seus intercâmbios de pertencimentos e aproximações. Comparações inquietantes, que nos tira da zona de conforto: “águas escuras mas brilhantes”. Inicialmente, temos o olhar infantil do ancião, unindo o novo e o velho, o originário e a densidade poética: “É como ver o mundo pela primeira vez”. O mundo é ressignificado pela metonímia da ilha, outra figura de linguagem, que condiz a parte pelo todo. O mundo da consciência do visitante é revelado para o leitor na sua relação com a ilha e seus moradores. O processo de doçura e encantamento na história é abruptamente cortado no final do conto. O que era doce se transforma em algo agreste, terrificante, alterando o universo infantil, violando a inocência primeva. Há a virulência da agressividade que fere a pele da ingenuidade e do olhar primeiro do mundo. O conto nos vem falar do amor entre os seres, mas também do dissabor de um ato vil que mancha o puro com a impureza da indecência.

O conto “O dia em que quase matamos um cão”, a história começa com a luz da tarde e vai se sombreando a partir de um ato de vingança de meninos com relação a um cachorro que assusta e ataca as pessoas na cidade. O que vamos ter aqui são as “aventuras da infância”, num tom memorialista. Temos cenas do lar, com o “cheiro da broa fresquinha e do café que mamãe servia impreterivelmente à catorze horas”. E esse início ameno será rompido pelo chicote metálico da lei de talião, olho por olho, dente por dente. Os meninos querem encontrar uma solução para combater, num estilo de guerra mordaz, e utilizar uma forma cruenta de se matar o animal. Os nomes têm significados cruciais em seus contos. Aqui, um dos personagens, Tadinho, revela no diminutivo um véu que se oculta, a compaixão humana mostra um rico contraste em que ela é subvertida pela ironia dos aspectos mais agressivos do ser, inclusive já na infância, que não se apresenta em sua pureza. O narrador mostra os opostos “mosquito/luz”, o embate entre o dever, na educação, ter que fazer tarefas, e o chamamento para as brincadeiras.

Numa das passagens do conto, até as belas imagens e metáforas apresentam uma colcha de retalhos em que convivem o leve e poético com o endurecimento e a solidez da vida, como juntar num mesmo parágrafo, “as abelhas assanhadas”, “uma oficina mecânica cheirando a ferro e óleo”, “uma britadeira furando paralelepípedo” e “nuvens coalhadas no céu”. As crianças por imitação uma da outra se desbravam no ato de tentar matar o cão. Uma vibração, uma energia, algo em comum que une aqueles meninos num ato de violência. O cão levava o terror e o medo para a vizinhança. O animal é algo que incomoda, que fere o curso dos dias de uma localidade, ameaçando a todos. Tadinho, com seu nome cheio de ironia, é o iniciador do plano de vingança, o cabeça da turma. Assim, a ingenuidade não é algo pleno naqueles garotos. A vingança seria a melhor solução ou haveria uma outra forma de plano que não conduzisse aquele ato? O imediatismo é a forma que eles buscam se armar contra a ferocidade do pastor alemão. O animal até tinha atacado uma velhinha na rua. Eles querem revidar e o narrador até utiliza nas frases a palavra “redentor”, como se aquilo fosse salvar todos os moradores. Eles queriam se mostrar como verdadeiros heróis. Mas há o medo do menino em meio ao ato. Será que a crueldade inicial será revertida, invertida pela luz tênue da culpa e do compadecimento? E a tentativa de matar o pastor alemão é muito forte. Há uma linha divisória na personagem principal que toca a visão compassiva? Há um jogo de iluminação e anoitecimento no coração dos seres. A imagem da “vacilação do dia” é uma espécie de déjà vu, o início e o fim retomados na narrativa. Há uma fronteira entre as dimensões, mas ao mesmo tempo, encontramos a tangibilidade de extremos opositivos que se encontram na “hora perfeita”. Os sentimentos são antagônicos na consciência dos humanos, a adversidade em meio ao rio transparente da inocência primeva, intocada pelo caos e pelo sombrio.

Continuando, no conto-título do livro, “O sol dos dias”, há logo no início do enredo, o reino das comparações, um pintinho que nasce e rompe a casca branca como “um sol irrompendo a manhã”. Não é só o mundo humano e o animal que são comparados e contrastados, dentro da própria natureza, as analogias são possíveis, revelando uma teia mágica que a todos envolvem numa unidade em meio à diversidade. Antônia e a avó passam por uma experiência milagrosa, que seria um “instante de iluminação”. Nasceram vários pintinhos, e Antônia, uma menina, no seu espírito maternal quer cuidar e nutrir carinhosamente os bichinhos. Além de alimentar a mãe e a ninhada, ela os contaria um a um. Uma forma de organizar seu mundo e não deixar que nenhum deles se perdesse nos arredores da região. A abundância e a reprodução se revelam como verdadeiros milagres, um estado epifânico no mundo animal, em vez do humano, dando uma variação ao tema: “A galinha de Dona Marlene chocou uma ninhada de quarenta pintos!” E a intertextualidade mais uma vez comparece aqui através das histórias antigas, como a galinha dos ovos de ouro. A sensibilidade de Antônia se apresenta como a face mais humana da beleza. Um tesouro guardado a sete chaves. Taylane nos revela algo encantado, que traduz as fábulas milenares e as histórias de fadas: “Contava como se o dedo fosse uma varinha mágica abençoando cada pintinho”. Os usos dos diminutivos, aqui, representam a força afetiva da narrativa. A delicadeza da menina perante o horror do que se esfacela na ruína do mundo. A força protetora de Antônia é inigualável, só não se comparando a Deus, dando-lhe, o narrador o devido respeito. A visita de um casal com a filha causa uma estranheza, metamorfoseando o desfecho. Há uma ferida e um sangramento na pele suave do céu iluminado inicial, com a luz projetando uma sombra gigantesca nos muros dos olhos do leitor. O conto também discute as questões do medo e da submissão, contrariando a leveza do afeto de Antônia, em seu universo secreto e amoroso. Se apresenta aqui a dependência psicológica do outro, algo que o filósofo indiano Krishnamurti tão bem explicitou em suas palestras. Há as faces da aflição e da angústia que se chocam com a serenidade dos começos, como os ovos em sua potência de vida e morte, pois tudo o que nasce, quebra a casca, está fadado à morte. A crueldade e a tortura humanas versus a docilidade, a vítima e o algoz. Dessa forma, nos contos de Taylane, encontramos o seguinte questionamento: o coração de muitos poderia se modificar ou há pessoas irrecuperáveis? O poder da regeneração é possível? Aparece a metáfora da lágrima, a água, o mundo do sensível e da liquidez em face da solidez pétrea. A espada que corta o tecido tênue das palavras.

Concluindo a análise do livro neste ensaio, a obra se fecha com o conto “Pintassilgo”. Nele, temos a presença de ricas imagens e a efemeridade das coisas. Aqui num rompante, o início da narrativa não apresenta a leveza como nos contos citados anteriormente. O tema trágico da morte é logo anunciado para terminar, paradoxalmente, no ciclo da regeneração, pois o final do texto é poético, revelando a força redentora do mundo, o humano ressignificado pelo dom das letras equilibristas. No arremate do conto, vemos: “E como o amor tem a sua linguagem não foi preciso dizer mais nada”. A notícia dramática da morte da personagem Teodora de forma abrupta é retrabalhada com a potência do bisturi cirúrgico em cortar os excessos e trazer à tona a memória seletiva de ações mais impactantes na vida da personagem, que enquanto menino de doze anos, nutria um amor por Teodora, já adulta. A metáfora das pérolas e dos espinhos, a concha em seu caráter de dubiedade é retratada com beleza e precisão poéticas.

O narrador diz: “Teodora foi meu primeiro amor”. Algo não perspectivado no começo aparece subitamente na narrativa sem espera, sem pistas, sem iluminação, reverberando as sombras do ocultar por meio das palavras. A temática amorosa irrompe o crepúsculo da morte, amortecendo o caos mórbido do princípio. O narrador volta à infância com seu amor alimentado pelo alumbramento, algo que nos faz lembrar do poema “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira. Teodora é uma mulher feita e o menino nutre um “amor secreto”. E o narrador e ela se comparam pelo “bom coração”, imagem que será rompida ao longo da história. Invertendo os outros contos, por ora aqui analisados, que iriam do delicado à dureza, aqui temos a presença primeira da dureza para o mais delicado. Mas esses elementos se misturam na narrativa, ora apresentando recuos ou avanços um do outro. Numa potência quiasmática estrutural, Taylane densifica a relação entre os contrários. O narrador se lembra de um fato na infância cruel que choca Teodora, pois ela flagrou os meninos que matam um pintassilgo, arrancando-lhe até o miúdo coração, num ato de bestialidade. E Taylane também revela o poder do masculino até nesta fase juvenil. Os meninos gritam com deboche contra Teodora, enquanto ela revela compaixão. Temos a visibilidade do ato, o flagrante, projetando sua luz sobre as sombras dos meninos. O “bom coração” é uma figura irônica frente à delicadeza da personagem que celebra a vida e não a morte, mas aparece como morta na introdução do conto.

Portanto, Taylane Cruz é uma exímia ficcionista, apresentando aos leitores os meandros do interior dos seres em todas as etapas da vida, com a externalização do ambiente, da localidade e da natureza. As individualidades são multifacetadas. E a autora sergipana risca um fósforo na pele do sol, tentando nos trazer um alento, um feixe de luz no coração desumano dos seres, resgatar a humanidade, o sentido da poesia no caminhar íngreme e áspero da existência. Assim, a luz tênue do sol é urdida pelas sombras das palavras, que só existem a partir da iluminação que vai da escritora até atingir o centro oculto de seus leitores. Que sua obra se expanda e conquiste muitas consciências, dos bons críticos e dos leitores sensíveis.

 

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