O silêncio adoçou o nosso café

 

 

 

 

 

 

MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA


O silêncio Adoçou o nosso Café

poema dramático

manoel de almeida e sousa

março de 2023


Je me crois en enfer, donc j’y suis. – Arthur Rimbaud


a figura 1 desce do tecto (ou poderá entrar sobre uma plataforma com rodas) enverga roupa neutra. depois de uma pausa, não demasiado longa, abre o saco que carrega às costas – coloca-se dentro dele

esta acção será acompanhada pelo ruído de tráfego e num ambiente muito próximo do escuro total

dentro do saco, o corpo – da figura 1 – desenvolverá movimentos que serão sublinhados por interferências sonoras – movimentos ou paragem do saco como reacção aos ruídos de um automóvel que passa, gritos, explosões, uivos ou o ladrar de cães…

acendem-se gambiarras de “luz negra” por detrás de um ciclorama branco. uma luz frontal cresce. o som é cortado e o saco com a figura 1 pára bruscamente

a personagem sai – no rosto, uma máscara branca. retira do interior do invólucro 7 folhas de papel onde irá escrever 7 frases

cola as folhas numa parede da sala…


frase 1 – remei, remei… atingi as areias da praia

frase 2 – a guerra terminou. os contendores, tal como os arcanjos, têm necessidades escandalosas

frase 3 – eu não sou eu. não me lembro quem sou

frase 4 – o amor rebelde apoderou-se do meu arbítrio e a razão entrou em férias

frase 5 – o sabor amargo e despenteado oxida os cabelos e alguns prazeres

frase 6 – propomos uma orgía de endorfinas. a navegação é um galope selvagem, despiadado e indómito

frase 7 – seria uma excelente ideia lançar a virgindade na pia baptismal

 

II

 

da mesma forma que a figura 1 entrou em cena, entrarão duas cadeiras e uma mesa. a personagem, que permanece no espaço, senta-se e escreve

as luzes baixam até atingir um quase escuro total

 

voz nos bastidores – antes de ceder território aos sonhos, que ameaçavam invadir-lhe a mente, desenhou a imagem…

figura 1 – … estava no meio da sala. no escuro. mordia rodelas de toranja

voz nos bastidores – assistimos, longe daqui, a algumas saudações vagabundas

e

mui galantes

ao internar-se por entre a cortina de neve empunhando o osso triplo ligado à torrente, outras canções foram ouvidas. e, extasiados, corremos por entre as árvores implantadas na profundeza do sono

assim foi consumada a primeira história confeitaria-libélula

ah!…

o seu penteado irradiava certo pânico-desgrenhado onde os mais simpáticos abutres se deleitavam

bela é a negra paisagem encaracolada. é lá que cada fio de cabelo declara sua independencia; o cabelo que parte em demanda do caminho que é seu

era bonita

a luta

muito bonita

a luta

igual à opera

igual ao filme

figura 1 – e ele? foi baleado?

voz nos bastidores – estamos em guerra?

figura 1 – francamente!…

vou acender a vela. está escuro…

voz nos bastidores – é melhor não. podem detectar-nos. estamos ou não?

figura 1 – em guerra?… não sei. as informações são escassas e as palavras de hoje… aqui estão. amanhã poderão ter de se mudar

voz nos bastidores – podias ter ouvido tiros

belos tiros

a guerra também pode ter coisas belas

pode ter cavalos a pedalar bicicletas, pode ter uns lindos  chapéus de chuva telegráfico-embriagados

figura 1 – como?

voz nos bastidores – se não houver tiros…

figura 1 – na guerra?…

voz nos bastidores – melhor não acenderes a vela

voz da figura 3 – era fácil calcular que as chances de sair com vida daquele inferno eram mínimas

evidentemente!…

o peso dos corpos tornara-se um fardo. quase à margem do impossível

e, quando a noite inexorável os alcançou, foram forçados a decidir-se

foi quando aconteceu o apagão e… a poderosa nevasca em nada favoreceu os nossos planos

 

III

 

um saco cai. rola na cena. de dentro sai a figura 3 após uma explosão

 

figura 3 – devo alertá-los de que não é aconselhável acender a vela

só o vento tem capacidade para filtrar os actos quotidianos que, presos à retina, perfuram a escuridão…

sim

pois sim

e, embora vos possa parecer incoerente, há bombas prontas a quebrar pratos

porque, os inimigos, ao apoderarem-se das nossas facas e garfos, impedem que degustemos o desejado repasto

a bicicleta é que vai passar

vai levar consigo a girafa-relógio para dentro das nuvens onde os túmulos se erguem – como crocodilos em saldo

o general, esse, chegará muito depois para melhor analisar e absorver os dados gravados na superficie dos ossos

e atenção!… foi o padre-melão que fotografou tudo. que deu à luz três lindas crianças-violino

estas acções – a do general e a do padre-melão – deverão ser servidas enquanto ouvimos o ruído ensurdecedor do carro de assalto ao atravessar o espaço no horário das 13:30

ser-se consciente da beleza não é demasiado difícil ainda que previna futuras crises agrícolas

sim. só o vento é mais forte que a garrafa que se esvazia

a luz faz-se sentir

e

não há saliva que a apague

não. não posso dizer que é linda a história

mas sim!…

bonita, bela e linda

e a dança?

pode-se dançar no quarto

pode-se andar no quarto

pode-se correr no quarto

também perto das casas, das árvores…

delicioso é acoplar-se, é sentir-se ensamblado, agarrado…

na nossa viagem de comboio só a música combaterá o tédio que cresce nos corações de borracha

ah!…

esse protagonismo quase nos humilha

 

a figura 3 saca um revólver e aponta-o para a frente

 

figura 3  – o meu sono derrama um liquido vermelho nas areias da praia

e

o mar ganha uma coloração especial

tão especial quanto a tua presença

uma vez ouvi: – o efeito de espelho provocará alienações cruzadas

as dúvidas invadem-me

e, muitas vezes, me pergunto se não serei o teu espelho

o teu desejo

o teu corpo

sinto-te como um bloco de gelo quando me toco

 

a figura 3 dispara. o seu corpo tomba no chão

 

figura 1 – “E avanti a lui, tremava tutta Roma

voz nos bastidores – terá dito Tosca depois de ter morto Scarpia…

o oceano onde me banho tem a cor do sangue

a erva húmida convida ao desejo

oh!… o sexo patético é, inúmeras vezes, aparentado com a arquitectura horizontal…

que digo eu?

figura 1 – o que sempre poderás dizer

sobre a grande metrópole – quando observada pelas lentes de uma câmara fotográfica

sobre o nome das coisas

sobre uma geografia de raiva

e

sobre os objectos

voz nos bastidores – era o mais hospitaleiro e cordial. era firme, dedicado, apaixonado, gentil, mas exigente

era confortável, muito confortável, quase ergonómico

por vezes indolente, relaxante, tolerante e surpreendente…

transportava consigo hábitos rigorosos, inexoráveis

atenção!…

muita atenção!

temos a informar que: – este sábado, no restaurante do costume, o cozinheiro assassinará a estátua de um poeta sobejamente premiado

não percam!…

a calma

inspirem lentamente para que o oxigénio vos chegue ao cérebro em horários justos e aceitáveis

 

IV

 

o espaço cénico está completamente escuro. ouve-se o ruido de máquinas durante algum tempo

segue-se o ruído de um helicóptero que passa – luz branca e intensa

uma explosão seguida de escuro total

 

voz nos bastidores – tão bonita a carta dirigida

ao rei de copas

e

à rainha de espadas

faz lembrar aquele chuveiro que se soltava dos dedos e, num salto, deixava-se cair violentamente sobre o  velho telephone

lembro bem o aparelho negro e o senhor que escreveu essa excelsa obra literária…

acho que procurava casa para umas férias agradáveis

sim

lembro-me bem dele!…

tinha um chapéu de palha novo, muito lindo

tão lindo…

com o chapéu, que he cobria a calvicie, fazia-me lembrar a célebre pintura do pássaro-arcanjo pendurado no cabide chinês

e aqueles lindos sapatos de pele de cobra?… ficavam-lhe tão bem…

ah!… é dos braços da natureza que transbordam os quatro limpa-chaminés e os 5 padres que emolduram retratos dos santos-seixos. aqueles que outrora se alimentavam de plantas carnívoras que nós, hoje, usamos para coçar as costas

é bem verdade… os padres só através da construção de molduras dedicadas aos santos poderão conquistar, com o auxilio dos seus lança-chamas, o paraíso

pois…

olhar através da ranhura de uma porta é fastidioso

devemos utilizar um só olho caso contrário… perdemos a perspectiva da cousa

além disso, devemos cambiar, de vez em quando, de olho…

para que a vista não se canse

nesse momento soará a marcha nupcial e, porque não, alguns disparos de artilharia

lentamente, mas com alguma urgência, devemos procurar a saída. é que, caso não nos apressemos, arriscamos ficar encorralados lá dentro

temos de fazer um esforço para podermos emergir – qual ilha onde o naufrago encontra refúgio e algum repouso

 

ouve-se risos, sirenes, ruído de tráfico. depois, gritos e rajadas de metralhadora

a luz branca e intensa regressa

a figura 1 está de pé – segura a mesa pelo tampo a alguns centímetros acima da cabeça

a figura 3 (também de pé) acaricia um revólver

a figura 2, que até ao momento emprestara a sua voz nos bastidores, entra e queda-se ao lado da figura 1

as duas personagens (figuras 1 e 2) colocam a mesa no local de início. sentam-se nas cadeiras

 

figura 2 – foi assim. assim mesmo. não o vi o dia todo nem lhe falei porque…

figura 1 – o sector foi afectado pelo apagão

lembro-me. não havia quaisquer luzes

figura 2 – claro que saiu e eu segui-o. queria ver para onde ía

entrou no carro

ficou ali. sentado. sem se mover

não foi a lugar nenhum, trancou-se no interior do veículo…

figura 1 – foi quando te aproximaste

questionaste-o?

figura 2 – afirmativo!… mas ignorou-me…

agarrou uma garrafa de vodka e levou-a à boca

pouco depois, lançou pela janela do carro as cascas da toranja que guardara nos bolsos…

as imagens daquele dia deram-me volta à cabeça

sobrava pensar nada

e ele a cochichar frases misteriosas…

o seu olhar perdia-se na noite; sei que me observava e queria ser observado

figura 3 – só me lembro que envergou a máscara e a velha capa de limão

depois cortou pássaros-de-êxtase-consertado para melhor exercer aquela incandescente escrita com algas marinhas e gotas do sangue sacerdotal que tanto gostava

ah!…

só a santa flecha atrairá a chuva para além das guirlandas dos palhaços

mas atenção; o cabo da pianola é um fio flexível. desinfecta as turbinas do bordel enfurecido e grita: – quem quer pular sobre os grandes e pequenos anúncios de montmartre?

 

entra em cena uma bicicleta. a figura 3 monta-a e sai aos gritos – como louco

 

figura 3 – viva o excelso maquinista das sombras boreais!

glória à efígie do grande imperador, o que nos envia caniços de pescar coisas!…

e por favor, não irritem os caranguejos porque entre eles e o touro habita um lírio de inverno engarrafado

bebamos!…

 

escuro total 

V

 

luz. ouve-se o chilrear de pássaros. as figuras 1 e 2 estão de pé junto à mesa. a figura 2 senta-se

 

figura 2 – a cidade exala um agradável aroma a pneus em chamas

terá sido a profundidade de um olhar que reduziu tudo a cinzas?

figura 1 – as manhãs, ao abrir da boca, são escuras

adivinham dias sem nome

as noites não. as noites asfixiam as vozes quando o loiro vento dos mortos se aninha na planície de um secreto peito

figura 2 – um trilho de olhos emaciados decora carruagens meticulosamente desordenadas e, numa observação mais atenta

a possibilidade de participar resulta espinhosa

os trilhos podem exalar segredos…

 

a figura 1 senta-se frente à outra personagem em cena. ouve-se um apontamento de “space is the place” (de Sun Ra – Arkestra)

numa lentidão desesperante entrará a figura 3 (arrasta uma cadeira). por fim sentar-se-à entre as outras duas figuras

 

figura 3 – o mesmo chapéu

a mesma camisa…

o silêncio compartilhado adoça o nosso café. e aqui ficámos, sentados, sem quaisquer palavras a escorrer da boca

apenas risos

risos

escolhidos, vestidos e alimentados por táxis

risos

inconsoláveis como bilhetes de ida sem volta…

nestes dias cinzentos e sombrios, a pele nua não se mexe

nem na paz o pêssego será luz

ao olharem-me, com os olhos flutuantes, os mortos apontam o cravo que me perfurará o coração com seu perfume

caminharei…

com as botas cheias de esperança

ainda que amarga seja a manhã que me transportará contra a maré

figura 2 – sem vestígios de arrependimento, os grotescos erros converteram-se em triunfantes vitórias. lembras-te?

figura 3 – óbvio

tal como as pontadas de arte que nos perfuram o abdómen

tal como um fracasso

tal como o beijo do vento que nos fustiga o rosto

ele era hábil no lançamento de ossos à sorte. observava-os na mesa – espalhados

confirmando assim que sempre soubera manter a poesia no mais alto degrau do altar

os crimes são caros e o fim pesado… mas, por vezes, gentil

porque o mundo tem medo aos lobos

 

VI

 

as figuras iniciam movimentos desordenados no palco – poderá ganhar bom ritmo com um som (sugestão: jorge peixinho).

 

figura 2 – sim. foi lindo

era lindo

figura 1 – porque era bonito

muito bonito

figura 3 – podíamos dançar

por aí

na sala

figura 1 – e era bonito

figura 2 – porque podíamos dançar

muito

figura 3 – sim era lindo

tão lindo

tão bonito

todos em coro – era linda, linda

era linda, era lindo

era lindo, era linda

figura 2 – não achas que sim?

todos – era linda, era lindo

depois da missa subimos a escadaria na esperança de um acariciar o órgão

figura 1 – a meu lado uma pecadora tentava-me; qual animal ferido em fuga…

figura 2 – foi nessa altura que resolvi dizer à condessa: – minha querida senhora dona rosário… veja como o hálito dos pássaros mal iluminados atrapalham os navios

e a condessa contemplando o marinheiro que, testando os nervos dos peixes, se desvestia suavemente – sem pressas – respondeu-me: – o farol gira. ergue-se. e assim permite que o comandante se purgue. há cataratas inodoras que atracam neste cais infestado de cadáveres

e disse eu: – mas hoje não condessa…

a condessa respondeu: – pois, não podemos ir ao teatro fui invadida pelas febres. deve ser da miopia-fresca, ou dessa escaldante amargura que me invade e oxida as unhas

ah!… estas mazelas deixam seus vestígios

pois é

a condessa eclipsou-se por entre o milharal… eu ainda ergui a voz para exclamar: – a nossa ida ao teatro terá que ser cancelada. a policia selou as portas. dizem que o espectáculo é impróprio quer para senhoras quer para cavalheiros

figura 3 – pensei uma imagem:…

– vários guerrilheiros passeando-se por entre cadáveres

os cadáveres de camaradas putrefactos e corroídos por vozes e orelhas aleatórias…

figura 1 – e se desses vazio ao vazio? janelas às viagens ilegais? amêndoas aos cigarros sem filtro? comboios aos jogos pendurados no destino?…

figura 2 – e a guerra? essa imensa guerra?

essa quase guerra tangível e serena. sólida

a guerra

que se aproxima de obsessivos ventos

que derrama lágrimas sobre o tempo da colheita

das lâminas embrulhadas pela morte

é. essa guerra flutua numa litania orgástica e irreverente…

figura 1 – como se caísse naquele precipício ou como se desmoronasse e aterrasse num leito de algodão

seria como perder o juízo envolto por uma sensação de  quase sanidade

extrema

seria como descobrir que o caminho áspero e tortuoso nos conduz ao nada

 

VII

 

 

ainda que pareça incoerente, a cena gela após explosões e rajadas de metralhadoras

as cabeças das figuras caem sobre os pratos e munidas de faca e garfo, as personagens, tentam iniciar a custo o desejado repasto

a figura 3, chega depois. analisa pacientemente os ossos deixados pelas outras figuras. dispara um tiro na cabeça – caiesta acção deverá ser acompanhado pelo ruído ensurdecedor de um tanque que atravessa ligeiro o espaço (onde se vislumbra um estendal de roupa) como se tivesse algum fim a atingir

algum objetivo…

 

uma voz gravada – a chave esmagou alguns dentes – um corpo no centro, um laço da estrada… só podem pertencer a uma família à procura de um cadáver ao amanhecer

as balas perdidas a multiplicar-se e a perderem-se nos espelhos, reproduzem memórias atávicas e alguns actos nupciais

no navio da propaganda, os serviços secretos cozinham e imprimem jornais com o auxílio de semáforos e algumas placas de sinalização

há vacas a lamber fósseis – há quem ache que tudo isso circula, sem problemas de trânsito, pelos vasos sanguíneos


notas:

– estas “cenas” envolvem três personagens. são três figuras que não deverão ser marcadas por género

 3 actores (?)

3 actrizes (?)

2 actores e 1 actriz (?)

2 actrizes e 1 actor (?)

– o autor não segue o chamado “acordo ortográfico”